Caos e Criação

(Carolina Zuppo Abed)

Caos e Criação

por Carolina Zuppo Abed

(Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Estudos

Comparados/Laboratórios de Criação – Escrita de Literatura e Teoria)

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Oficinas de escrita são lugares de testes, experimentos. Por isso mesmo, a palavra laboratório serve tão bem para designar esses espaços. Quando alguém se lança ao ato da escrita, opera com uma rede de saberes de ordem cognitiva, linguística, socioemocional e artística, num movimento dinâmico e contínuo, quase nunca linear. Exatamente pelo teor investigativo do desenvolvimento da criação textual, é natural aquele que escreve deparar-se com momentos de desordem. Mais do que isso, pode-se mesmo dizer que o percurso da produção de um texto compreende ciclos que se apresentam como um verdadeiro caos.

Gostaria de propor uma abordagem para a compreensão da atividade escritural que parte, justamente, da forma como transitamos entre a ordem e a desordem para chegar à construção de uma obra. Interessa pensar a criação literária como um processo dinâmico e complexo, cujo percurso não linear está sempre sujeito a perturbações. A ideia de que os atos criativos visitam zonas vertiginosas, embora pouco explorada nas teorias sobre escrita, não é uma novidade: o Zaratustra de Nietzsche já nos alertava que precisamos ter o caos dentro de nós para fazer nascer uma estrela bailarina[1]. O caráter muitas vezes caótico da produção de um texto, longe de ser um empecilho à sua realização, nessa perspectiva é visto como uma característica inerente à criação – e até mesmo desejável, uma vez que possibilita (re)configurações inaugurais dos elementos mais corriqueiros, que, num primeiro momento, tendem a se apresentar ainda muito colados às estruturas preexistentes.

É importante trazer para o debate uma teorização científica do termo caos, uma vez que se costuma compreendê-lo, no senso comum, como sinônimo de pandemônio, valorando-o negativamente. A partir do século XX, as ciências duras (e, na sequência, também as humanidades) passam a conceituar o caos como um sistema rico em informações, mais do que um sistema pobre em ordem[2]. Entende-se que caos designa um sistema cuja complexidade ultrapassa a nossa capacidade de compreensão devido à falência das abordagens tradicionais de análise – o que não significa a ausência completa de ordem, mas antes a presença de uma provável ordenação interna que escapa à observação externa.

Refletindo sobre o ato criativo, Agamben[3] observa que “nós precisamos olhar para o ato de criação como um campo de forças estirado entre a potência e a impotência, sendo capaz de agir e de resistir e sendo capaz de não agir e de não resistir”. O filósofo afirma: “ser um poeta significa estar à mercê de sua própria impotência”. Isso significa que, para criar um texto, aquele que escreve precisa transitar entre o fazer e o não fazer; entre o que ele pode e o que ele não pode; entre a expressão e aquilo que é impossível de ser expressado.

Para proceder à atividade criativa, nesses termos, é preciso que o autor procure manter-se o máximo de tempo possível numa situação de ambiguidade, oferecendo a si mesmo como campo de provas para o embate entre ordem e desordem, potência e impotência. É necessário vivenciar o caos, transitando pela zona de indeterminação e colocando-se à mercê de sua própria impotência como caminho para alcançar a potência. De outra forma, corremos o risco de recair numa repetição de configurações preestabelecidas; de reiterar modelos dados a priori em vez de elaborar uma proposição inventiva. Tolerar a desordem e conviver com ela para que emerja daí a matéria da criação.

Devemos nos lembrar, no entanto, que apenas o caos não é suficiente para criar; é preciso, também, certo princípio organizador que confira estrutura à obra, pois, como formula Fayga Ostrower[4], criar é dar forma. A proposta aqui não é a de abdicar de todo e qualquer esforço organizador; a questão que se coloca é a importância de que essa organização não anteceda nem substitua a experiência e o contato com a desordem. Isso porque, caso saibamos de antemão o ponto onde queremos chegar, é provável que nos limitemos a reproduzir ordenações e trilhar caminhos previsíveis, perdendo de vista as múltiplas possibilidades de estabelecer novos nexos entre os elementos e chegar a resultados inventivos e inaugurais.

Vivenciar o processo da escrita significa, então, saber absorver, fruir e entender o caos, sem temê-lo nem se perder nele. Isso requer um grande domínio, por parte de quem se aventura nos caminhos da criação textual, de seus conteúdos internos, especialmente da ansiedade que a experiência caótica pode ocasionar. Parece-me que a maioria das pessoas que não consegue finalizar um texto apenas não pôde contar com a compreensão de que se trata de um processo necessário para atravessar as oscilações do trabalho criativo e chegar à outra margem do processo de escrita, em que as ideias e palavras finalmente começam a encontrar seus lugares após um período de flutuação em águas escuras.

Por esse motivo, penso que a compreensão do caos como território de complexidades e da relevância que a desordem desempenha na elaboração de um texto seja fundamental não apenas para quem escreve mas também para qualquer professor de criação literária, pois faz parte de seu trabalho trazer para um plano visível e palpável a dinâmica não linear que se estabelece em qualquer ato gerador. Além disso – e principalmente –, garantir que seus alunos consigam sustentar a desordem, a complexidade, a ambiguidade e a indeterminação, sem as quais não é possível criar.



[1] NIETZSCHE, Friedrich. Assim falou Zaratustra. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998.

[2] HAYLES, N. K. Chaos and Order: Complex Dynamics in Literature and Science. Chicago: The University of Chicago Press, 1991.

[3] AGAMBEN, Giorgio. The Fire and the Tale. Stanford: Stanford University Press, 2017, p. 41, tradução livre.

[4] OSTROWER, Fayga. Criatividade e processos de criação. Rio de Janeiro: Vozes, 1996.