A Anomalia Murphy
Roger Barbato
Roger Barbato
Àquele que se foi,
Quando fui destacada para o pequeno vilarejo, perguntei-me, mais de uma vez, o quanto uma doutora em física quântica seria útil na investigação do desaparecimento de um garoto.
Meus companheiros do exército me guiaram pelas vielas irregulares que costuravam um zigue-zague até a praça central da pequena comunidade. Não muito longe dali, me apontaram uma pequena cabana de madeira, simples - um quarto e cozinha integrada. Cheguei a acreditar que só precisaria ficar ali até o final da semana, mas chamo o lugar de lar há pelo menos três décadas, e não pretendo ir embora tão cedo.
— A senhorita vai adorar o lugar — disse-me o dono do imóvel enquanto meu nariz se retorceu com o termo que parecia adicionar mais idade aos meus vinte e sete anos. — Estamos colocando todos os cientistas nas proximidades da praça, a pedido dos militares - Pensei em questionar como ele sabia o que eu era, mas a circunstâncias respondiam isso por si só. — A doutora vai ter uma visão privilegiada do chafariz.
— Foi onde o garoto sumiu? — perguntei.
— Foi, sim — confirmou. — Mas ninguém tá dando muita atenção pra isso, não. Ele nem tinha nome. Acho que já deve estar morto, à essas alturas.
Agradeci a recepção e me adiantei para me instalar no lugar. Esvaziei as malas, vasculhei os armários, instalei uma mesa de pesquisa improvisada na escrivaninha velha do canto. Então, tirei um momento à janela, àquela vitrine que expunha o local onde, dias antes, você desaparecera.
Ao longe, aquele chafariz desativado, com a tinta já descascando, era como um troféu que vangloriava o abandono do local. As árvores tentavam manter-se verdes plantadas em um solo de ervas daninhas que imploravam para serem arrancadas. Aproximei-me do pedestal que outrora jorrava água enquanto degustava o cigarro em minha boca. Alguns outros cientistas uniformizados descansavam nos bancos desbotados, mas não fizeram muito além de lançar-me um cumprimento com a cabeça. Estavam mais preocupados em guiar seu olhar, que cruzava as crianças estridentes brincando pela praça, para tentar absorver o que diabos acontecia com o a luz naquele ponto específico, em volta do chafariz.
Custei a perceber a anomalia que dançava seduzente no ar - apenas um olhar que já sabe o que busca conseguiria distinguir o fenômeno tão claramente. Uma ondulação vibrante e translúcida circundava a fonte, como uma barreira. Até cogitei ser apenas um efeito miragem, de refração de luz, mas ele não sumia à medida em que me aproximava. Aquela vibração era diferente, sintonizada em ondas ritmadas, tal qual um espelho d’água após ser baleado por uma pedra.
— O moço do exército disse que não era pra ninguém encostar — a voz de uma garotinha me interrompeu, fazendo-me recuar alguns passos do chafariz. Essa realmente foi a ordem dada a todos ali. As crianças diziam que viram o momento em que você se foi. — Quando o outro menino encostou ali, ele sumiu.
A verdade é que não fui enviada para cá para te procurar. Esse nunca foi o interesse das autoridades. Me destacaram para que, de alguma forma, eu pudesse explicar como uma anomalia como aquela conseguiria dar sumiço em uma criança, a plena luz do dia. Em certos dias, vi meu tempo se perder enquanto encarava aquele fenômeno, buscando uma explicação fora do alcance de qualquer um dos cientistas ali. Os aparelhos falharam em tirar medidas daquela vibração: osciloscópio, contador Geiger, amperímetro... nenhum deles arrancou qualquer informação da anomalia. Por que ela é um problema, antes de tudo, impalpável.
Diz-se que, em 1949, o engenheiro Edward Aloysius Murphy, descreveu a lei que levaria seu nome após uma falha de medição de equipamentos que deveriam registrar a tolerância da biologia humana à gravidade. “Tudo o que puder dar errado, dará”, é o que dizem. No entanto, essa citação sempre me pareceu uma escusa à incompetência humana. Os testes de Murphy só falharam pois o técnico responsável não extraiu o máximo do equipamento que tinha em mãos.
Para a filosofia, tal frase foi um prato cheio aos frustrados, mas a física prefere funcionar apesar das emoções e abraçar a entropia do universo. Esse coeficiente, que mede caos e a disrupção de um sistema, sempre será positivo, as coisas dando certo ou não. Murphy foi apenas um descrente que não sabia lidar com as incertezas.
Foram as incertezas da matemática que me conquistaram. Mais especificamente com suas probabilidades; a linha tênue que permite que números rabiscados em um papel imprimissem um lapso do futuro, ou do que ele poderia ter sido. E se não fosse, os números indicariam também. Depois de anos no academicismo, comecei a confiar mais nos algarismos que em minhas próprias certezas. As letras pareciam funcionar melhor em uma equação do que na boca dos profetas. O “sim” é acompanhado de um símbolo de porcentagem, e o “não” é um zero absoluto. Pelo menos eram, até o dia em que observei o velho rabugento adentrar aquele fenômeno com um guarda-chuva em mãos.
Naquele dia, nomeei essa aberração da realidade de Anomalia Murphy.
Dias antes de a sua primeira carta chegar, as barreiras faladas impostas pelos militares se romperam, e a desconfiança dos curiosos do vilarejo, pouco a pouco, mutou para curiosidade. Se antes as mães puxavam suas crianças pelos braços para que se afastassem do velho chafariz, agora elas encorajavam o estranho calor que a anomalia implantava no cérebro de quem a atravessasse, como cócegas na parte interna da nuca. Eu e os demais cientistas preferimos manter a cautela e apenas observamos enquanto os mais absurdos testes eram feitos na peculiar ondulação da luz, e garanto que pouco nos surpreendia. Até que, numa manhã seca e ensolarada, o velho rabugento afundou os dois pés na areia pisada da fonte abandonada e ergueu o cabo do que levava em mãos.
Quando as primeiras gotas de água brotaram da parte interna do guarda-chuva, meu zero absoluto ficou incerto sobre sua soberania. A imagem daquele senhor, prostrado sob o tremular da realidade e segurando sobre a cabeça a lona que, por cima, bloqueava os raios do Sol e, por baixo, enxarcava sua pele idosa, fez minhas mãos formigarem — não pela cena inusitada, quase cômica, mas pela impotência dos números de descrever tal situação. Ali, o amor pelas incertezas matemáticas vacilou, se contorceu para a descrença. Posteriormente, quando a sua primeira carta apareceu na gaveta vazia de uma pequena cômoda, ele virou terror.
Os gritos e suspiros de fascínio daqueles que, embasbacados, assistiram aquela cena, tomaram o ar e pareceram vibrar na mesma intensidade da anomalia, em uma interferência de frequência. A euforia que seguiu os dias seguintes, com os moradores abusando da sorte e tentando incontáveis absurdos para arrancar dali uma reação incalculável, forçou o exército a sitiar o local. Se experimentos com o inimaginável eram o próximo passo a ser dado, que os pés fossem dos cientistas.
Não fiz muito. Minhas teorias tendiam a buscar algo tangível, racional. O máximo que consegui foi adentrar a área circular com um cigarro aceso na boca e soprá-lo ao invés de tragar. As voltas de pólvora do fino cilindro de papel regeneraram, acompanhando o recheio de fumo, enquanto o cigarro aumentava de tamanho, até se mostrar completamente novo, como se nunca aceso. Em seguida, expeli pela boca uma fumaça que nunca tragara, de cor amarelada e cheiro de nicotina, enquanto sentia meus pulmões respirarem sem peso, limpos.
Uma tomografia de dois dias depois mostrou que meus brônquios estavam intactos, tal qual antes do primeiro contato com a droga.
Registrar as observações se tornou uma atividade difícil para nós. Muitos desistiram nos primeiros dias. A exigência era de que compreendêssemos aquele fenômeno o mais rápido possível para evitar alguma reação inesperada que pudesse ser prejudicial. E isso me parecia impossível, se é que impossível é uma palavra pertinente ainda.
— Prever o futuro é trabalho para os videntes — comentei com um colega de pesquisa. — Conjecturá-lo cabe aos artistas. O papel dos cientistas é projetá-lo, mas como fazer isso? O que somos quando apenas nos resta remoer a incerteza e lamentar a imprevisibilidade?
— Somos amargurados — disse-me. — Controladores, até. Assumimos que a matemática é a linguagem universal, mas só a consideramos tal pois nunca nos deram uma resposta que ela não pudesse ler. Ou quantificar. E quando isso acontece, somos desesperançosos.
E isso fomos, por mais severos meses, até aquele fatídico novembro, na tarde que marcou a chegada de sua primeira carta, na segunda gaveta da pequena cômoda de madeira colocada na tangente da Anomalia Murphy.
Roger Barbato é escritor e jornalista, formado pela Universidade do Vale do Paraíba (UNIVAP). As palavras tornaram-se sua companhia muito cedo, no começo da adolescência, quando encontrou nelas o caminho para uma fantasia que parecia inalcançável. Desde então, dedicou-se a procurar todos os universos escondido cujas histórias anseiam por ser contadas. Seu trabalho de graduação, o romance Barrete Vermelho (atualmente em processo de revisão e edição), foi um resgate do folclore nacional, numa tentativa de combinar a linguagem jornalística com a narrativa do realismo mágico — trabalho este que lhe trouxe à tona que uma boa história não é sobre o que se conta, mas sobre como se conta. A Anomalia Murphy é seu primeiro projeto voltado à ficção científica.