OFICINA ORBITAL

The Fluke/O Asaro

Jacques Stern




Sendo apenas humano, o acaso não conseguiu registrar fatos. O asaro. Alguns por demais preocupados achavam que ele estava louco. Eu nada sei.


Com este texto de abertura impresso na capa, a narrativa de Jacques Stern, única publicação feita por ele (em 1965), dá notícia também de sua vida e autoria. Um volume invisível, hoje apenas mencionado por aqueles interessados em W.S. Burroughs e no laboratório que o escritor de Nova Express ergueu em torno dos cut-ups, concebidos juntamente com Brion Gysin. Os pick-ups (como Deleuze preferia nomeá-los) pulsam em Stern (com quem Burroughs dialogava intensamente antes da formulação cut/pick-up), uma vez que se mostram como proposição experimental decisiva para quem busca os elos entre literatura, ciência e tecnologia com um vivo sentido cartográfico nas órbitas de espaços/mentes/nocionais esferas (influentes, inclusive, no desenho conceitual traçado pelos autores cybers, décadas depois dos inventos desenrolados desde The Ticket that Exploded!).

Traduzi The Fluke – (2018, Editora Córrego) – com o título de O Asaro, movido pela matriz de possibilidades escriturais lançada por esse livro citado e saudado por Burroughs como o melhor de sua geração, antes e depois de ter sido lançado Naked Lunch. Ali – integralmente, no embalo de sua leitura –, irrompem uma explosão de magma, corpo, existencialidade, memória, paródia do literário e uma incursão por zonas fronteiriças, jamais antes desbravadas, envolvendo vida-terrestridade-linguagem-planos numinosos-reescrita de uma vida.

Stern – um arquimilionário do ramo dos Rotschild, estabelecido desde a nobreza ancestral europeia até a implantação de um império de financistas mundiais – apresenta um itinerário desconcertante, totalmente fora do esquadro familiar, dos enquadramentos de classe e dos perfis culturais. Um livro e um homem sem rosto – capazes de metabolizar Beckett e Céline, numa só tacada, repassando a gênese do humano através de um fluxo complexo e a um só tempo faiscante de inteligência, poder de interiorização, potência imaginativa. Sob o signo de uma imagem intrincada – the fluke – a fornecer elementos aquáticos, plenos de animalidade serpenteante, à maneira de um pacto com o acaso e a estranheza, concebido enquanto forma de expansão e descoberta.

The Fluke. O Asaro, fascinação e construtivismo permanentes, ao avesso da dissolvência e do desaparecimento. Um livro a ser seguido, esteja onde estiver, exponencial mesmo quando lançado na ausência (de autoria, da história literária e dos jogos mais evidentes com o tempo e a cultura). Insemine! Dissemine! Este é um lance de experiência integral e de sorte!

Mauricio Salles Vasconcelos


Acabo por encontrar outra cama grande.. Bem sozinho, o processo começa de novo, durando algumas semanas, alguns meses no máximo.. Nove, se eu tiver sorte e cuidado.. A cama não é suficiente! Não para uma esticada mais longa.. Tais assuntos são complexos.. Exigem privacidade.. Não; nada mais do que privacidade.. Uma ermida.. Para ser bem prático; algo essencial ao jogo com o que há de mais grave.. Uma pessoa coleta provas em um período muito curto de tempo.. Dá seu lance, a decifração leva um tempo maior.. É um estado de infinitude.. Muito tempo deve ser dedicado a esquadrinhar o todo! As imprecisões devem ser eliminadas, tanto quanto possível.. É o que há por demais.. Fardos! Toda a paciência.. Mais o que virá.. Talvez.. um montante de incríveis oportunidades.. Embora as pessoas tenham uma maneira bem própria de interromper.. Devem ser persuadidas a desaparecer. Uma espécie de expulsão! Pisoteios! Para tal propósito prestam a maior atenção; preocupadas pessoas com o próprio silêncio; sua falta de sociabilidade. Desde a soleira, devem estar de fora, com a atenção atraída para outro lugar. Deixam você em sua cama e seu silêncio.. Vá agora.. Muito agradecido.


Contudo, privacidade nunca é completa.. Além do mais, seria algo muito especial.. Qualquer forma de contato acaba sendo removido.. Alguma coisa se mantém, entretanto. Ouve-se um barulho, às vezes sem haver a menor conexão.. Uma pessoa vê objetos, por vezes nota um jornal.. Embora a apresentação possa ser falsa, ou inconsequente, imprecisa; no entanto, se grava na mente. Nunca deixa de causar uma impressão – por mais pequena que seja.. Assim, as invasões de espaço persistem.. Algumas sendo mesmo bem-vindas.. Despistadamente.. Por isso mesmo são apontados um e outro arranhão, ora um ponto uma linha ora ora, tudo para preencher a cama com mais lances, anotações a mais. Sem esses fragmentos, não haveria pilha, ou haveria? A maioria das interrupções não é bem-vinda (no entanto) porque interrompe as tentativas de jogar. É preciso pegar um telefone, escrever uma carta ou assinar um cheque; só para citar algumas interferências.. Estas coisas eu administrei muito mal, embora muitas vezes tenha sido obrigado a fazê-las. Eu as faço menos agora.. Mas ainda.. Pois têm pouco interesse e causam muito desperdício: tornam bastante improvável o posto de eremita que pareço ocupar...Uma desamparada esperança...Assim como tudo o que resta.


Um tipo peculiar de interrupção foi especialmente irritante. Não é que houvesse intenção, certamente. Queria dizer o contrário. Por infelicidade, o que havia de atenção amigável foi mal dirigida.. Bem mal.. Qualquer pessoa podia ver que não seria fácil qualquer persuasão ou aliciamento.. Continuamente, aparecia, sempre ressurgia até voltar como um mico de baralho.. Sempre nos momentos mais inadequados: na hora do banho (raramente), quando se come (com mais freqüência), no ato de cagar (copiosamente). Embaraçante, como costuma ser esse tipo de intrusão, aquela mulher nunca deu dentro num palpite.. Nunca.. A criatura poderia sorrir e trazer um prato de sopa; ou talvez uma carta; ou simplesmente chegar até aqui para fazer perguntas: o sem-sentido mais óbvio acerca de minha saúde ou de como está o clima.. Senão, o comentário sobre a duração do meu sono.. Muito desnecessário.. Mas se você não apaziguasse sua curiosidade imediatamente, ela lamentaria com um grunhido, de fato exasperante.. Então a gente responde com pressa.. Qualquer coisa.. Como não fizesse diferença.. Quanto mais rápido, melhor.. Mas ela tinha seus truques.. Vai e expele seus males e dores; a sua solidão.. através de metáforas – metáforas populares.. sentiu a chuva nas pernas, a umidade nos arcos, o calor no peito, o frio no nariz e as vezes ao redor das pontas dos dedos.. Ela era um barômetro vivo; um mapa meteorológico caminhante.. Ao menos, ela pensava assim.. Depois de puxar de volta as cortinas, os comentários seguiriam um após o outro. A situação da coceira e de qualquer doença dependente do estado geral do clima desse dia.. Ai! Deus sabe por quê? Mas parecia insuportável para ela suportar essas evidências corporais.. Tanto que reclamou também da responsabilidade.. Sem que nada fizesse a respeito disso; ela não podia realmente.. Mulher insuportável .. Acabei por deixar esse quarto e cama; embora minhas ideias estivessem adequadas aos seus tamanhos; ficar de fora de todo pânico.. Fui para bem longe de suas inquirições, morto de medo de que ela pudesse estar me seguindo.. Ela, não.. Nem minhas esposas.. O que é uma coisa boa.. Ainda que todas elas possam, você sabe? Sim, uma.. eu tinha esquecido! O passado.. Foi muito vergonhoso.. Ela quis dizer apenas o melhor, veja só.. Em nome da fé! Por obra da revelação! Empurram você aqui e ali! Você tentou usá-la um pouco.. como um escudo.. idiota miserável que você era e é! Um protetor, de verdade! Pelo contrário! Mais preocupações do que nunca! Tire de mim a cama, a pilha de coisas, o meu todo, etc., o suficiente, diria; mas, com o meu "escudo", os envolvimentos tornaram-se ridiculamente complicados. Alguém tinha que estar em guarda todos os instantes.. Faça uma cópia de mim! Até o impossível! No minuto em que uma coisa se resolve, há algo mais a ser cuidado.. Banal? Com toda certeza, em toda sua duração.. tempo esgotado todavia.