ROMANCE VIRAL E GUERRA CIBERNÉTICA

 Duas obras de Tiago Cfer

(Pedro Magalia)

PEDRO MAGALIA é graduado em Letras, ensaísta com artigos publicados na revista Cisma e tradutor dos livros O Menino Proletário 3 Narrativas, de Osvaldo Lamborghini, e À Santidade do Jogador de Jogos de Azar, de Héctor Libertella.

Mais propícia do que nossa época para a recepção de dois livros lançados quase que simultaneamente neste ano por Tiago Cfer, impossível. Mutações da Escrita na Época do Vampirismo Pornográfico e Gradiente Spectrum complementam-se, aplicando-se teoria e ato de escrita numa forma de linguagem inovadora. São livros urgentes que permeiam toda a crise humanitária que estamos vivendo. Uma crise de identidade antes de tudo. Por um lado, ainda continua valendo a lógica da Guerra, calcada pela herança da crença nos Estados-Nações, que leva os povos a se odiarem. Por outro, as pessoas “livres” para o consumo, transformam-se em jogadores, acionistas das empresas que dominam o mercado financeiro e nos vendem produtos para sugarem nossa autonomia, construindo suas identidades em falsos princípios monetizadores e que as isolam em núcleos de autoritarismos. Onde estaria o lugar e a função do professor-narrador de Gradiente Spectrum em uma sociedade onde o sinônimo de aprendizagem passou a ser responder a burocracias? A possibilidade da autonomia se esgota diante do passivo e reduzido papel do “espectador masturbatório”, dominado e paralisado para investir e consumir.

 

Sob a perspectiva da moral capitalista em decadência e do isolamento pandêmico, em um mundo onde a indústria se volta contra a Natureza e os recursos naturais, para a aniquilação do próprio Ser num sentido ontológico mais amplo, principalmente se pensarmos a longo prazo, tendo em vista os inúmeros desastres químicos que vimos acontecer no Brasil nos últimos anos e diariamente em vários lugares do planeta, atualizados pela perspectiva da guerra nuclear, que ficou evidente pelo exemplo Rússia vs. Ucrânia, o ensaio de Cfer começa com o despertar do leitor:     

É quando o espectador desconfia de si. Feito o viciado que desperta de sua narcose, a figura ensimesmada pressente: demônios e vampiros não são os outros, mas linguagens: actantes que impõem regras e manias de todos os tipos à sua própria existência. Introjetados nas bases do corpo social, esses vírus disseminam a ideia epidêmica de que a espécie humana guerreia e se reúne para conquistar uma unidade que garantiria sua conservação (Cfer, 2023: 13).

É assim que se funda, por meio do cinema, segundo Cfer, um novo gênero: o “vampirismo pornográfico”.

O que se chama, com todos os prefixos, neoliberalismo, capitalismo, transfunde-se em políticas vampirescas distribuídas numa incontida economia farmacopornográfica mundial. Uma produção fílmica como a de Jean Rollin testemunha esse sintoma que permeia o cinema pós-guerra: o das produções estéticas que extraem seu sustento do sangue do mundo tráfico de drogas, corpos, sexo, objetos, marcas e perfis (Ibid.: 26).

No Brasil, podemos encontrar um paralelo no cinema de Rogério Sganzerla, notadamente no filme A Mulher de Todos, um libelo feminista contra a Ditadura Militar. A cena em que Ângela Carne e Osso devora um pescoço até escorrer vermelho e olha para a câmera sadicamente antecipa a alegoria da morte reinventada em filmes de Rollin como Fascinação.

Os livros com os códigos de lei do juiz de instrução sobre a mesa de uma sala de audiência vazia estão repletos de imagens pornográficas, é o que verifica Joseph K em O processo. Kafka entrevê o paradigma da pronografia tornada metonímia dos litígios do século em que escreveu. (Idem).

Assim constata Cfer em seu ensaio. Neste sentido, pela égide da filosofia foucaultiana, o mundo do Juízo não precisa mais ser representado pela alegoria da Moral no papel de Reino ou da Igreja, mas está encenado, protagonizado e catalogado pelo próprio indivíduo que passa a ser um agente regulador do seu próprio corpo. Todos esses mecanismos de repressão foram claramente construídos ao longo dos séculos, principalmente durante o século XIX, como demonstra Foucault em História da Sexualidade: Vontade de saber. Através do corpo disciplinado pelo próprio indivíduo, que acredita ser natural o direcionamento do desejo. Com isso, o Estado se infiltra no âmago das relações humanas como um Grande Pai, através de biopoderes aos quais devemos obediência e rezamos por sua moral castradora/punitiva e, ao mesmo tempo, (auto)reprodutiva/reprodutora, moldando nosso corpo mental pelo medo ou pela culpa (o eterno dilema da sodomia, por exemplo) e nosso corpo material, tanto pelo policiamento (exército, indústria, burocracia), como pelo gangsterismo (terrorismo, milícia, crime organizado em facções), mas principalmente pelo vício, como define Cfer ao falar de O Vício: “(...) E o nosso vício é único alívio que encontramos.”[1], a principal fonte de riqueza da indústria de bens de consumo.


A indústria da guerra promove, então, o aniquilamento da Vida e das múltiplas possibilidades éticas e étnicas de existência, operando do campo mental para o campo material; no campo mental apregoa o ódio alheio e fortalece as crenças que justificam o Mal, no campo material está o próprio cadáver exposto e desprovido de seus órgãos, sentidos… As demais indústrias, como a pornográfica, guiam-se pela mesma lógica. O desejo está regulado e controlado: a masturbação, como o ódio e a fome, pagam impostos para as fábricas, usinas, para a plastificação dos corpos-alimentos, dos desejos-devires. Como observa Peter Pál Pelbart, em seu livro Vida Capital, sob muitos aspectos ainda estamos dentro de um grande campo de concentração, porém ele não saiu dali, dos escombros da Segunda Guerra, nós entramos em tal domínio, nos locomovemos por aí como o trem que leva o narrador-protagonista de Gradiente Spectrum aos produtos de sua mente, produzidos e reproduzidos na larga esteira de produção que é a cidade por onde caminha com seu corpo individualizado.


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Após um período de isolamento viral, que nos obrigou e legou um estado altamente virtualizado, produzido por um vírus que, de previsto e fictício, tornou-se real, como se não bastassem todas as cenas de sofrimento banalizadas pelos cadáveres recolhidos em caminhões pelos televisores, os servidores do Horror estavam se preparando para sair das telas e sugar o sangue dos inocentes. Em 2023, o fato histórico da Guerra Fria deixou de ser um conceito, mesmo que sempre se ostentando materialmente pelas bombas armazenadas, posadas nas fotos, testadas no Iêmen, na Palestina, na Síria, passando a ser um instrumento não apenas de manipulação, mas também de demonstração de que sempre é possível ser mais cruel, levando os Estados Unidos e muitos países europeus a enviarem as armas para o palco de sangue ensaiado na Ucrânia, fato que já estava praticamente prenunciado desde 2014 com a ocupação e anexação da Crimeia.


Ninguém faz uma bomba para não usar, isso é lógico, mas a questão é contra quais corpos e para quais fins. Relatos de estupros de mulheres e crianças ucranianas mostram como o Ódio construído, há tanto tempo armazenado nos subterfúgios dos extremismos mentais na sociedade, não coube mais nos próprios corpos, configurando-se assim como um anti-desejo, punindo o corpo alheio e privando-o da autonomia do desejo. O corpus do político se transmutou numa informe instituição reguladora dos seres vivos em combate.


Qualquer impulso contra a autonomia de um Corpo Sem Órgãos (tanto no sentido ontológico, como ético, no campo das ideologias e materialmente nas corporalidades) transforma o mundo herdeiro de um século XX arcaico na carburação e explosão diária de bebês sob a máscara assassina do nazismo, do sionismo e do terrorismo, representada  pelo Estado como alegoria de um grande vampiro sanguinolento e imortal.


Assinala Cfer acerca do “vampirismo pornográfico”:

Trata-se da edição comportamental americana concomitante às crises e guerras televisionadas do petróleo. Detonações sem sangue, destruição/reciclagem de corpos e culturas apresentados e transmitidos como imagens povos, hibridações coletivas ganham matizes espectrais em telas e valas - para o entretenimento audiovisual nas grandes ou pequenas mansões do império televisivo. (Op.. cit.: 26).

Neste sentido, o corpo adquire uma moral fluída, que se aproveita do romantismo niilista como modus operandi do indivíduo moderno para transformar também a liberdade e os direitos em mercadoria. Só é livre quem consome. A vida vira uma máquina da produtividade industrial.


Se, por um lado, os efeitos do capitalismo atual provocaram uma guerra química altamente globalizada, paralisando a ação do professor-personagem de Gradiente Spectrum em sala de aula, por outro foi o escape para que a linguagem se subverta, transformando-o em narrador de si mesmo, configurando um leitor que se mobiliza por essa “revolta paralisada”:

A rolagem de feeds de notícias das redes sociais em função contínua, seja por cinestesia induzida, ou por vício dos dedos, não diz mais nada para esse corpo que antes fora uma espécie de terminal de informações e que, agora, assume um lugar de incompreensão dissociativa. Esse corpo não opera nem assimila os automatismos que o põem em circulação, imóvel, com milhares e milhares de corpos pactuados com a ilógica da destruição em curso. Ele não entende mais o que os aparelhos querem dele, ondula e serpenteia em movimentos mínimos, se espalha sobre a cama até a desagregação do que se pode entender por homem-branco-máquina-mortífera. Ele de repente se desloca, escapa das contabilidades. Será que seu movimento parado e sua informidade telepática tornaram-se a própria condição de um corpo capturado, encarcerado em casa? (...) Tem algo ainda não dado na sucessão crescente de posts em reportagens das mesmas fontes ramificadas e fragmentadas ao infinito. Mas o quê? Está nas mensagens? Nos aparelhos? No corpo em paragem, amorfo, anacrônico a todas as formas de transmissão? Os olhos não se atêm mais às telas. As miram, mas não as veem. Cegos de tanto ver (Cfer, 2023: 44-45).

É assim que, nas palavras de Cfer ensaísta, “A ideia de que uma rede textual complexa imanta e inter-relaciona todos os seres existentes e não existentes entrega ao romance contemporâneo seu papel de mediação e prospecção sem fim da vida.”[2] Por isso,

Os papéis de espectador, entretanto, se mantêm bem regulados às variações do consumo em séries ininterruptas de histórias, narrativas, ficções advindas de uma hiper-realidade acelerada, numerosa em situações e jogos modeladores. Exausto com o fluxo de imagens, mensagens e informações ao qual é convocado a responder dia após dia; desiludido com a capacidade de mudar o ritmo e o teor desse fluxo padronizador de decisões coletivas, sempre sob o influxo de uma overdose contínua, ele cede ao status que programadores de redes sociais, designers de algoritmos e vigilantes de dados lhe reservam, como se ainda concedessem para ele um último e exclusivo papel no espetáculo da vida: o de consumidor pornográfico, telespectador masturbatório (Cfer, 2023: 15).

A doutrinação dos corpos é o pressuposto para que uma guerra se inicie. Uma mente doutrinada pela falsidade aniquila seu próprio corpo e o do próximo em vão, aniquilando a possibilidade de ser livre, de vivenciar uma vida orgânica sem a moral de qualquer tipo de castração. Dessa forma, se dá a nova reificação dos corpos, presos nas nuvens das redes sociais, sob um mapa irregular de bitcoins estendendo-se ao longo do mapa material que são os recursos naturais da sobrevivência na Terra, capitalizada pelo indivíduo financeirizado.


Sobre/sob esse mapa a subjetividade humana se equilibra com muita dificuldade pelas linhas romanescas, ao intensificar os devires da escrita. Assim, à maneira de um flâneur contemporâneo, o narrador-personagem de Gradiente Spectrum inicia sua peregrinação pela cidade pós-apocalíptica. É preciso beijar o vampiro para falar dele, é preciso se imiscuir na máquina para descobrir quais comandos são acionados, num infindável jogo de paradoxos.

Interessante, como, não por acaso, foi durante o período de isolamento a constatação global de que o mundo tornou-se revestido pela malha cibernética para que o indivíduo seja encontrado, visto, catalogado sem a necessidade de sair de casa. Isso se reflete no narrador, que se vê transformado de professor a uma espécie de “gestor de ensino”, cuja finalidade não é mais exatamente ensinar, mas sim avaliar e se deixar ser avaliado por seus “superiores”, sempre fiscalizado, enfim.


O ato solitário da escrita configura um erotismo no “escuro”, no “silêncio”, muito diferente de qualquer estímulo visual ou sonoro: “(...) O desespero e a paciência incerta do profeta, manifestos contra a neurose das explicações necessárias que ratificam a filosofia especulativa, incidem como disparadores do erotismo na palavra.”[3] Nesse sentido está a potência do gesto criador da palavra, entendida como erotismo, revelando-a como impossível oposição ao “prazer trágico”, pela leitura que Cfer faz de Kittler a respeito de Nietzsche.


A linguagem é tão errante como um refugiado e pode explodir como uma bomba acoplada no corpo, uma sílaba desemboca na outra e ninguém está a salvo de uma revelação ou destruição: “A sequência infinita de cortes e rupturas entre apresentações e representações de mundo ao longo do tempo só vêm afirmar a natureza transitória e irreparável da linguagem e da palavra, sua errância generalizada.”[4].


O mundo apagado e antecipado pelo Eclipse de Antonioni ronda nossa subjetividade como um espectro que desnuda qualquer possibilidade de agir contra esse domínio, senão o ingresso na dinâmica criadora de explodir, ou implodir, e dilacerar-se em palavras.

 

As palavras são apostas, fichas que se compram para se lançar ante as forças da morte. Ironicamente, a (re)ação do livro só começa quando o narrador é afastado de vez de sua profissão e passa a exercer ocupações marginalizadas. Por um lado, o vírus paralisou os privilegiados, mas quem o contrai, quem tem a coragem de dizer o que ele é e se expor à morte, à finitude, torna-se a exata propagação viral, desnuda o funcionamento do sistema em que os poucos agentes responsáveis por essa paralisação/continuidade desenfreada só a garantem pelas engrenagens exploratórias desse funcionamento segregacionista. “Desde que fui descoberto portador do vírus fatal, a linguagem em estado selvagem, e exonerado da minha função no departamento da educação, trabalho aqui nesse semáforo, nesse cruzamento da avenida JK.” (como se lê em Gradiente Spectrum, p. 54).


Escrever é um ato de coragem: “Quando é que começaremos a perder a vergonha de tudo?” diz Bobak no final da narrativa. É viralizar-se, tomando o veneno como antídoto, na produção de uma linguagem infiltrada na linguagem vigente, alterando os rumos dos longos caminhos que se perfazem pelas escolhas egoístas dos donos do poder, que também vão querer mais, Sempre mais!


Gradiente Spectrum, então, pode ser entendido como uma versão virótica da vida contemporânea, reclusa e solitária, um instrumento de memória e deslocamento num tempo extra-instituído e normatizado externamente, à maneira dos primeiros livros que instituíram o gênero “ficção-científica”, porém com algo mais, pois escrito simultaneamente à espécie de ficção real a que fomos e continuamos submetidos pelo estado caótico que se configurou e se apresentou nos anos mais recentes do século XXI. Neste sentido, as duas obras se complementam, questionando os limites da ficção/realidade, trazendo um diálogo com a História e com a própria realidade literária construída historicamente. 

REFERÊNCIAS:

 

CFER, Tiago. (2023), Gradiente Spectrum. São Paulo, Córrego.


CFER, Tiago (2023), Mutações da Escrita na Época do Vampirismo Pornográfico. São Paulo, Edições Ar Livre.


FOUCAUT, Michel. (1993 [1976]), História da Sexualidade, volume I: A vontade de saber [La volonté de savoir. Histoire de la sexualité I]. Rio de Janeiro, Graal.


[1] “Vampirismo pornográfico” in. Mutações da Escrita na época do Vampirismo Pornográifco, p. 33.

[2] “O romance Como é” in. Mutações da Escrita na época do Vampirismo Pornográifco, p. 47.

[3] “Vampirismo pornográfico” in. Mutações da Escrita na época do Vampirismo Pornográifco, p. 34.

[4] “Vampirismo pornográfico” in. Mutações da Escrita na época do Vampirismo Pornográfico,  p. 27.

Publicado em: 08 dez. 2023.