QUATRO NARRATIVAS

DIRCE THOMAZ

Foto de José Nabor

Atriz-criadora, dramaturga, diretora, arte-educadora, mestranda no DIVERSITAS Núcleo de Estudos das Diversidades, Intolerâncias e Conflitos USP-SP e licenciada em Letras-Português. Fundou em 2000 o Centro Cultural Maria Thomazia de Jesus e a Invasores Companhia Experimental de Teatro Negro. Escreveu e atuou na peça Eu e Ela: Visita a Carolina Maria de Jesus (apresentada de 2017 a 2022). Participou de inúmeras encenações e filmes. Sob a direção de Antunes Filho, protagonizou o espetáculo Xica da Silva (1988). Integrou a montagem de Os Negros, texto de Jean Genet encenado em 1991 por Mauricio Abud.

LÁPIS apresenta quatro narrativas inéditas da artista e escritora, em que se revela sua potência recriadora do cotidiano popular, tendo como base um diálogo inventivo com a oralidade e as matrizes primordiais do conto.

Até Quando Minhas Pernas Aguentarão?

Já não sei por quanto tempo estou a caminhar? Lembro-me que o dia havia iniciado com uma pequena penumbra, anuviado. Percebia uma pequena neblina a cair sobre o solo macio que pisava sem forçar. A impressão era que eu flutuava no espaço. Uma leve brisa soprava meu rosto, em minhas narinas. Um forte aroma de ervas me confundia os sentidos. O frio era pequeno. Eu o sentia com leveza devido aos movimentos empenhados, passos rápidos e longos. Esse método que adotei quase sem pensar, com o passar do tempo foi se modificando sem que eu tivesse controle sobre ele. Sem ter a noção de quanto tempo estava caminhando, aos poucos a neblina foi se fazendo ausente, dando lugar a um novo tempo, novos ares. O tempo que não me deixava ver um palmo além do nariz foi se descortinando à minha frente e um cenário rústico, montanhoso surgia a cada passo impresso no solo sem deixar rastro. Mas o aroma de ervas continuava a me espreitar e eu ainda não havia o identificado! Um céu límpido surgia no horizonte perdido, e, eu ali desconfortável com passos mais curtos agora, mas ainda firmes, ciente de que pretendia chegar em algum lugar do passado ou do presente ou quem sabe de um futuro longínquo. Estava meio aturdida por caminhar por não sei quanto tempo. E nesse momento sentia um sol ardido queimar as minhas costas. O jaquetão de couro vermelho desbotado pesava 5ks. Porém preferi ficar com ele, por imaginar que o mesmo era uma proteção contra o clima hostil insistente em me perseguir. Cada vez mais pedregulhos em meu caminho e para minha angústia mais montanhoso o solo se apresentava. Parecia querer competir comigo e se tornar um empecilho para que eu não chegasse onde pretendia chegar, mesmo não tendo definido lugar algum. As montanhas se acumulavam à minha frente. Quanto mais andava, mais montanhas iam surgindo. Elas eram estranhas! Tinham caras de seres humanos horrendos de um período pré-histórico, talvez! Eu tentava desviar o olhar delas, mas às vezes senti-as tão próximas encurralando-me como se quisessem impedir meus passos, minha passagem. Parecia uma perseguição. De onde elas vieram? Por quem me tomam? Estava caminhando tranquila em terra plana. Pensava. Será que é real? São montanhas mesmo? Quando isso aconteceu não tinha dores, porém meus pés estavam um pouco dormentes, pensei em parar, no entanto continuei a caminhada agora bem mais lenta! Peguei a moringa que estava dentro da mochila embrulhada em um pedaço de estopa natural, desembrulhei, e com muita sede ao pote a levantei para virar o primeiro gole do líquido sagrado na boca. Para minha surpresa só uma pequena quantidade de água barrenta saiu da pequena moringa cor de terra já gasta pelo tempo. Virei a mesma com desejo animal, arregaçado. A água, turva, quente desceu seca pela garganta que pareceu estar ferida pelo tempo quente. Mal deu para molhar os lábios secos, partidos por dores irritantes. Passei a costa da mão direita na boca e percebi que ela veio com sangue. Sangue a minar dos meus lábios carnudos! Pensei o que faço agora? Percebi o sol se pondo, raivoso. Sabia que eu estava sofrendo. Mas sem dó nem piedade me sapecava cada vez mais. Foi ficando carrancudo, porém sem perder a nobreza de astro rei. Foi tomando uma cor nunca reparada antes. Aliás, diferentes cores, um roxo meio amarronzado, esverdeado cor de bosta de cavalo, misturado com um lilás furta-cor estonteante capaz de me inebriar. Sentia me cambaleando, mas cravava meus pés no pedregulho que parecia segurá-los. Nesse momento olhei para eles. Percebi que as minhas botinas tinham se transformado em sandálias. Estavam abertas com os dedos sujos, com unhas grandes, numa aparência centenária expostos no tempo/espaço.

Pensei, vou parar! Mal meu pensamento ia se completar, ouvi uma gargalhada cínica, perversa, com uma dose de deboche vinda do fundo remoto inimaginável. Nesse exato momento percebi o sol se transformando em natureza cruel. Já havia se despedido por completo.

E agora? Pensei. Como vou caminhar na mais completa escuridão? Com fome, com sede, com sono e cansada! Pensei, vou recostar um pouco em uma dessas montanhas e esperar que a lua surja de repente e que não seja o quarto minguante. Mal eu pendi o corpo exaurida de um cansaço nunca dantes sentido. Senti uma força estranha a tentar me deixar no lugar em que eu estava. Estupefata, pensei. Não estou só. Já tinha imaginado isso, mas pensei é coisa da minha cabeça, agora eu senti uma força a me repelir de verdade. Justo no momento em que me encontro mais frágil.

Muito assustada, coração batendo forte como se quisesse sair em disparada do peito apertado, quase dilacerado de dor, pensei por um instante o que fazer, agora sob o sol posto?

Recompus-me. Abri os olhos lentamente e para minha surpresa me pareceu que a lua era cheia! As montanhas haviam aumentado! Olhei firme para as montanhas e me lembrei das palavras de minha mãe que dizia para eu não ter medo e sim ter fé. Como louca começou a falar um mantra e segui montanha arriba dizendo “Não mexe comigo, eu não ando só!” Quando mais falava parece que as montanhas em coro me respondiam. Não mexe comigo que eu não ando só.

Antunes Filho e Dirce Thomaz,

Ensaio de XICA DA SILVA

O Andarilho das Sobras

Há muito tempo já estava desconfiado, desde que chegou à cidade em surdina de mansinho. Era meio ressabiado com tudo e com todos. Fazia suas compras uma vez por semana e o todo tempo ficava trancado dentro de casa. Quando alguém batia ficava quieto como se não existisse ninguém morando ali. Ele se valia dos moradores da frente que sempre atendiam a porta. Isso era um facilitador na sua vida. A pandemia para ele foi um evento perfeito! Dizia a todos, “estou em Home Office. Não posso receber ninguém, pois atrapalha o meu horário”.

A dona da casa morava na frente, para ela aquele inquilino era o sossego em pessoa, não atrapalhava, pagava direitinho. Isso o que importava, nem queria saber de onde vinha o dinheiro, ela dizia, dinheiro nunca foi limpo. Nem o dinheiro da igreja. Ele corre de mão em mão e entra e sai de qualquer lugar. Se pudesse fazer uma seleção faria, mas o mundo sempre foi assim, desde que o mundo é mundo. Desde a época dos meus pais. Não gosto de implicar com a vida de ninguém, assim ninguém implica com a minha. E está explicado. Não quero ninguém se metendo na vida do seu Neko. Imagina, dona Cecília veio me perguntar se seu Neko escreve com K ou com C? Eu disse que não sabia. Ela pediu para eu verificar no recibo do aluguel que ele me paga. Disse para ela. Que ignorância a sua! Sou eu quem dá o recibo. A língua é um veneno dependendo da boca que ele sai. Fere como uma navalha, tem a velocidade da luz. Fala aqui e logo está lá do outro lado da rua. Seu Neko só escuta e dá uma risadinha possante por trás da máscara. Antes ele usava chapéu e óculos de grau, agora com a pandemia está com o bonê. A máscara veio auxiliar muita gente à toa, até quem não gosta de escovar os dentes come e sai correndo sem lavar a boca, com os dentes cheio de feijão, arroz e verduras. Ninguém vai ver mesmo, até sem dentadura pode-se sair de casa.

Depois que a vizinhança começou a encher o meu saco dizendo que sou viúva e sozinha, que é ruim alugar para um homem estranho como seu Neko, fiquei um pouco cismada. Mas meu filho está separado e mora na casa do meio. Eles dizem: mas seu filho sai muito cedo e volta depois das 22h, se esse camarada quiser fazer alguma coisa ruim pra senhora seu filho nem vê.

As pessoas são terríveis, para auxiliar a gente são péssimas. Dá pra contar nos dedos quando você precisa, mas sabem atazanar nossas vidas. São ótimas futriqueiras.

Mesmo achando que elas exageravam, comecei a prestar atenção nas atitudes do seu Neko pela janela da sala que fica na parte de cima da casa, sem querer querendo comecei a vigiá-lo quando saía para as compras uma vez por semana. Sempre às quartas-feiras. Leva uma sacola pequena e quando volta a mesma não está completamente cheia. O Máximo que ele fica na rua é uma hora. De vez em quando aos domingos de manhã dá uma espiadinha no bar que fica na esquina, 4 casas depois da minha. Dou graças a Deus, odeio bar. Mas ele fica por pouco tempo e volta mais rápido do que foi. Parece que vai sondar alguma coisa. Outro dia ele veio tão rápido, quase correndo, por perceber que havia um movimento estranho na rua e que muitas viaturas estavam passando. Entrou tão depressa, a vizinha levantou suspeita. O carro de polícia passou logo atrás e um deles desceu, veio até o meu portão. Sem perceber que estava olhando da janela, agora com a cara à mostra, não mais à espreita. Perguntei, o que o senhor deseja? Ele respondeu, nada demais, apenas ronda rotineira. A senhora conhece a pessoa que entrou aqui. Sabia que era ele, seu Neko. Mas se revelasse e ele estivesse a ouvir, ia saber que estava espreitando ele. Inverte a pergunta. Alguém entrou aqui em casa? O policial respondeu categoricamente que sim. Com a cabeça e depois em voz alta. Ele disse sim, no quintal da senhora. Perguntei como era a pessoa, ele descreveu um homem magro, estatura média, com jaquetão escuro, quase preto, máscara e boné vermelho. Eu lhe respondi. É meu inquilino. Ele me perguntou, a senhora tem certeza? É claro que eu tinha, mas como ia dizer que vi se não estava na janela por inteiro a espreitar como uma ave de rapina pela fresta da janela.

Disse, vou verificar. Ele respondeu é bom a senhora olhar tudo tim-tim por tim-tim. Estamos atrás de um fugitivo perigosíssimo há dois meses e tivemos informações que ele poderia estar nessa região. Em minutos, a porta da minha casa estava como o portão de um estádio de futebol com gente em todo canto. Crianças, mulheres gravidas, paridas, de dieta, amamentando, velhas, velhos, desocupados que vivem jogando esnuk, futebol nos campos lamacentos e bêbados do dia-a-dia. Era gente que não acabava mais, pendurada nas janelas, no portão, nas grades, os profissionais de companhias telefônica, de luz, caminhões de gás entupiram a rua! Pensei como esse povo chegou aqui? Ninguém tem nada pra fazer em plena sexta-feira à tarde por volta das 16h45?

Desci, abri a porta da cozinha e fui até o portão falar com a polícia. O policial me disse, com sua licença, abra o portão que vou entrar com a senhora. Eu lhe respondi, mas o senhor não pode entrar na minha casa sem autorização. Ele respondeu, mas se for a pessoa que estamos procurando a senhora está correndo um sério risco. Respondi-lhe que tudo bem. Um ficou no portão, o outro entrou comigo. Fomos no quintal, olhamos tudo, a casa do meu filho estava intata. Fomos para a casa do inquilino. Surpreendentemente, tudo lá estava escancarado. Ele sempre fecha a casa, mesmo quando está lá dentro. O Policial disse é aqui que a senhora aluga? Respondi que sim. Ele perguntou quem mora aqui. Disse, seu Neko. Ele o chamou pelo nome. Seu Neko. Ninguém respondeu. O policial então chamou mais alto, com uma arma enorme como aquelas dos filmes americanos, nem sei se era um fuzil ou uma metralhadora. Senhor Neko. Senhor Neko. Foi o senhor que entrou aqui agora. Uma voz respondeu. Sim, por quê? É que vimos uma pessoa entrar aqui correndo. A voz respondeu, correndo não. Apressado, trabalho e ganho por hora, tudo marcado. Eu, quieta, tentei distinguir aquela voz. O policial disse, o senhor pode aparecer aqui na porta. Por favor. Ele respondeu, só um minuto. Num piscar de olhos, apareceu na porta da casa que eu alugava um rapaz jovem, com camiseta regata, larga e comprida do tamanho dos seus cabelos. Alguém que eu nunca tinha visto na minha vida. Quase sem voz, perguntei, foi o senhor que entrou correndo pelo portão agorinha? Ele repetiu, correndo não, apressado. Tomei um banho e vou trabalhar agora. O policial falou tudo bem senhora.

Eu disse, valha-me Deus! Tudo bem. Pensei comigo mesma. Eu aluguei a casa na pandemia, mal sabia a cara do meu inquilino que só conhecia ele de boné, com jaqueta e com máscara.

O policial saiu e a multidão foi se deslocando cada um para seu canto.

Voltei pra dentro de casa, fechei a porta e as janelas, minha casa é bem segura com grades gigantes e trincos reforçados. Fui até o quarto dos fundos e tive a impressão que ouvi um barulho na porta, voltei rápido, vendo que a porta estava só com o trinco, sem a trava que havia acabado de colocar. Abri a porta e olhei para os fundos do quintal. Vi claramente seu Neko com a tradicional jaqueta, boné e a máscara preta abrindo a porta da casa. Feito um raio entro para dentro. Nesse momento deu um apagão em todo bairro.

Surto de Memórias

Enfastiada, com tudo o que estava acontecendo no país. Independente da sua vontade, se viu em desespero. Como faria se o inimaginável resultado fosse sacralizado? Como viveria, pensou, se uma coisa dessa fosse possível acontecer? Pensava com seus botões. Vou me isolar. Olhando para o alto de seus 1.70m, se imaginava subindo bem alto num lugar onde não pudesse ouvir nem assobio de gente grande, nem ruídos de bichos maldosos, nem cantar de pássaros ao amanhecer. Mas de uma coisa tinha certeza. Queria conviver com a natureza, como nos tempos de crianças. Lembrou de sua mãe que lhe contava histórias dos tempos Di África. Tempos que as histórias só traziam felicidades na boca de mãe. Com sua saia de listras rodada, de babado com rendas na berrada. Tinham muitas crianças que gostavam de ouvir a mãe jogando palavras ao vento. E nós ali, catando o que podia para deixar elas presas na caixinha da nossa memória. Surgiam crianças de tudo quanto é canto. Pareciam formigas. Umas mais miúdas, bem esquisitas, com as perninhas finas que mal conseguiam girar na roda, ia e vinham, como mãe queria conduzir. Umas graúdas, troncudas, que brincavam serias como se estivessem trabalhando. Mas era brincadeira. Tinha umas grandes que nem pareciam crianças, bem bundudas, era a tal da tanajura. Ficavam assustadas, a mãe, porém deixava entrar na roda.

Confesso que não gostava muito. Quando minha mãe contava a história da árvore de baobá com raízes profundas, que crescia mais do que um prédio. Parece que a terra se abria! O lugar se transformava numa terra sagrada, com muitas árvores milenares de tudo que é jeito. Com raízes profundas. Umas carrancudas, outras alegres, sorriam, choravam, outras gemiam, com flores, frutos, altares de tudo que é jeito. Brotavam das raízes da árvore que rachava a terra vermelha fazendo rasgo no chão, era bonito de ver. Onde a terra se abria surgiam crianças com cara de formiga e formiga com cara de criança grande. A mãe abria um sorriso cheio de dente que não cabia na boca e começou a crescer como as árvores. Umas crianças também cresceram com as formigas. Chovia e fazia sol ao mesmo tempo. Outras continuaram brincando na terra, como tatu nos buracos, correndo sem parar...


O Cartaz

Amanheceu ali. Pregado no muro do supermercado. As letras eram simples, garrafais para que qualquer pessoa simples, desprovida de bom vocabulário pudesse entender. Toda semana o supermercado tinha uma promoção importante. Essa semana era de hambúrguer. Em época de vacas magras isso faz toda diferença. As pessoas desciam do ônibus e já entravam no supermercado. Uma confusão se formava entre a multidão, alguns queriam hambúrguer de uma marca que não estava na promoção. E começou uma discussão que acabou na gerência. Bem de frente ao supermercado tem um ponto de ônibus numa rua mal sinalizada, mão dupla e asfalto caindo aos pedaços. Todos que liam o tal cartaz desciam e entravam no supermercado. O Gerente desesperado por não estar dando conta de atender a demanda, mandou o funcionário responsável pela publicidade anunciar que a campanha promocional de hambúrguer havia terminado. Anunciaram no microfone que não tinha mais hambúrguer. A discussão foi ficando mais acalorada. Mas os clientes encontravam o produto nas geladeiras. Como se o anúncio informou que os hambúrgueres tinham acabado? Sem promoção, a briga continuava pelas informações erradas. Era um tal de puxar hambúrguer da mão do outro e correr atrás do gerente chamando-o de mentiroso. Tem hambúrguer sim, como o cartaz está escrito que acabou?

O gerente gritou com o funcionário da promoção, ele disse: eu só anunciei.

Doze horas se passaram e as pessoas continuavam no mercado tentando garantir sua bandeja de hambúrguer, cercavam o infeliz gerente que caminhava de um lado para o outro para se livrar dos clientes. A cada minuto parecia desfalecer.

Dirce Thomaz, em EU E ELA: VISITA A CAROLINA MARIA DE JESUS

Publicação: 15/05/2023