ANTÓNIO JOSÉ FORTE
O Mais Belo Espetáculo De Horror Somos Nós
ANTÓNIO JOSÉ FORTE
O Mais Belo Espetáculo De Horror Somos Nós
O grupo teatral Núcleo Experimental da Palavra idealizou uma montagem da poética do português António José Forte centrada apenas no texto do autor, sem nenhuma interferência verbal a não ser a que provém da pauta contagiante produzida por um escritor atuante nos anos 1950 e 1960 em companhia de um grupo formado por nomes como Herberto Helder e Mário Cesariny, denominado Café Gelo. Destacado por Helder na antologia Edoi Lelia Doura: antologia das vozes comunicantes da poesia moderna portuguesa (Lisboa: Assírio & Alvim, 1985), António José Forte foi levado à cena de modo vigoroso, com um sentido visceral de atualidade, ao mesmo tempo em que têm sublinhados sua época e seu projeto, décadas antes da libertação da ditadura salazarista, a mais longa da Europa no século XX.
Henrique Athayde e Veraldi, atores da mencionada peça, conduzem com desenho de voz seguro e impactante um espetáculo tão dinâmico quanto provocador. No ambiente proporcionado por A Porta Maldita, onde foi realizada (setembro e outubro de 2025) a tradução cênica do poeta de Uma faca nos dentes, as cenas se desenrolam de modo itinerante, trazendo em cada Ato uma inventiva concepção de espaço, tempo e textualidade. A montagem de poesia, com direção de Veraldi, se redimensiona, para lá do recital, possibilitando um ingresso pleno de nuances em uma obra densa, tingida de traços surrealistas e veemência político-existencial.
A teatralidade se potencializa ao efetivar o cruzamento com o universo escritural de um nome essencial da contemporaneidade literária de nossa língua, ainda desconhecido no Brasil, merecedor da mais ampla difusão. Do mesmo modo que a poeticidade encontra na esfera cenoplástica obtida pelo Núcleo Experimental da Palavra uma forma de incisão inteiramente renovada, capaz de promover novos enlaces entre experimentação estética e dramaturgia.
Sob um prisma radicalmente poético, frise-se, o teatro se mostra revigorado, mostrando-se dotado de força para manter a pujança cênica através da emissão direta de um texto de literatura.
MSV
SINOPSE DA MONTAGEM
O Mais Belo Espetáculo De Horror Somos Nós
Em um país dominado pelos militares, dentro de uma casa abandonada onde cada cômodo esconde segredos obscuros de um Estado ditatorial, dois personagens antagônicos travam uma luta implacável de poder entrelaçada por amor, ódio, poesia e sangue. Prepare-se para ser provocado e questionado ao testemunhar o surrealismo sombrio de O Mais Belo Espetáculo De Horror Somos Nós, uma livre adaptação da obra poética de António José Forte pelo Núcleo Experimental da Palavra.
FICHA TÉCNICA
Direção e dramaturgia: Veraldi
Elenco: Henrique Athayde, Veraldi
Mixagem e operação de som: Madame Osso
Produção: Encruzilheiro Cultural
Apoio: Mauro Monteiro, Melissa Rueda
Fotos: Jonathan Skynav
TRECHO DA PEÇA
4º ato: não se pode confundir
música.
sai música.
luz.
H2 (ATOR) está do outro lado do vidro.
H2: Já não há tempo para confusões – a Revolução é um momento, o revolucionário todos os momentos. Não se pode confundir o amor a uma causa, a uma pátria, com o Amor.
H1 (ATRIZ) se aproxima do vidro.
H2: Não se pode confundir a adesão a tipos étnicos com o amor ao homem e à liberdade.
H1 escreve no vidro: 4º ATO - NÃO SE PODE CONFUNDIR!
H1: Quem ama a terra natal fica na terra natal; quem gosta do folclore não vem para a cidade.
H2: Ser pobre não é condição para se ganhar o céu ou o inferno. Não estar morto não quer forçosamente dizer que se esteja vivo, como não escrever não equivale sempre a ser analfabeto. Há mortos nas sepulturas muito mais presentes na vida do que se julga
H1: e gente que nunca escreveu uma linha que fez mais pela palavra que toda uma geração de escritores.
H2: Os profetas, os reformistas, os reacionários, os progressistas arregalarão os olhos e em seguida hão de fechá-los de vergonha. Fechá-los como têm feito sempre, afinal, e, em seguida, mergulharem nas suas profecias. Olharem para a parte inferior da própria cintura e em seguida fecharem os olhos de vergonha. Abandonarem-se desenfreadamente à carpintaria das suas tábuas de valores, brandirem-nas por cima das nossas cabeças como padrões para a vida, para a arte, para o amor e em seguida fecharem os olhos de vergonha às manifestações mais cruéis da vida, da arte e do amor.
MAS NÃO IMPORTA, PORQUE EU SEI QUE NÃO ESTOU SOZINHO
H1: MAS NÃO IMPORTA, PORQUE EU SEI QUE NÃO ESTOU SOZINHO no meu desespero e na minha revolta. Sei pela luz que passa de homem para homem quando alguém faz o gesto de matar, pela que se extingue em cada homem à vista dos massacres, sei pelas palavras que uivam, pelas que sangram, pelas que arrancam os lábios, sei pelos jogos selvagens da infância, por estandarte negro sobre o coração, pela luz crepuscular como uma navalha nos olhos, pelos que se aproximam de peito descoberto ao cair da noite…um a um mordem os pulsos e cantam!
(H2 cantarola.)
H1: sei… pelos animais feridos, pelos que cantam nas torturas.
Por isso, para que não me confundam nem agora nem nunca, declaro a minha revolta, o meu desespero, a minha liberdade, declaro tudo isto de faca nos dentes e de chicote em punho e que ninguém se aproxime para aquém dos mil passos
EXCETO TU MEU AMOR
H2: EXCETO TU MEU AMOR
H1: minha aranha mágica agarrada ao meu peito cravando as patas aceradas
H2: no meu sexo e a boca na minha boca
H1: conto pelos teus cabelos os anos em que fui criança marco-os com alfinetes de ouro numa almofada branca
um ano
H2: dois anos
H1&2: um século
H1: agora um alfinete na garganta deste pássaro tão próximo e tão vivo
H2: outro alfinete
H1: o último
H1&2: o maior
H2: no meu próprio plexo
Guarda chega para levar H2, este resiste. (suicídio?)
H1: MEU AMOR
conto pelos teus cabelos os dias e as noites e a distância que vai da terra à minha infância e nenhum avião ainda percorreu
conto as cidades e os povos os vivos e os mortos e ainda ficam cabelos por contar anos e
anos ficarão por contar
DEFENDE-ME ATÉ QUE EU CONTE O TEU ÚLTIMO CABELO
H2 sofre um golpe.
silêncio. tempo.
H1: Falamos tanto ou tão pouco que de repente o silêncio que se fez foi essa patada no peito de que guardamos a marca quando agora choramos, quando estendemos as mãos carregadas de dedos mortos, sonhamos tanto que mais de uma vez tivemos de matar, que mais de uma vez nos estoiraram os olhos sob a pólvora das lágrimas e as tuas mãos voaram estilhaçadas, jogamos tanto que para não nos perdermos arriscamos tudo, vai saindo da sala para o corredor, lentamente, para dar tempo de o público segui-lo.
até tornarmos a morte uma coisa nossa, tão nossa que é ela que anda agora vestida com a nossa pele e os nossos ossos, escorregando pelas paredes de cabeça p’ra baixo ou subindo pelo interior dos bicos, olhando do alto o sangue que ficou no centro, entre os carris, passando de cadafalso em cadafalso com os lábios furados pelas unhas, com a cintura roxa das dentadas da noite, da miséria dos dias.
para diante da porta do corredor.
Para que vocês fiquem à vontade, basta que vocês estejam sempre sob o poder metamórfico da palavra, sob o poder súbito e transformador da palavra.
abre a porta.
NÚCLEO EXPERIMENTAL DA PALAVRA
O Núcleo Experimental da Palavra (NEP) surge do impulso de investigar a palavra como fonte de criação, explorando um território onde poesia e teatro se encontram.
O núcleo propõe um espaço de investigação cênica em que a poesia é ponto de partida e de chegada, fundamento e matéria viva da cena. Para o NEP, tudo já foi dito pela poesia; cabe ao teatro reabrir essas palavras e fazê-las pulsar novamente no corpo e no tempo presentes.
O primeiro experimento do núcleo, "O Mais Belo Espetáculo de Horror Somos Nós", marca o início dessa trajetória. No entanto, a pesquisa que o sustenta vem sendo construída desde 2022, com as montagens de "Ao Nível do Mar", a partir da obra de António José Forte, e Canção da Estrada Aberta, inspirada nos poemas de Walt Whitman. Em 2023, o espetáculo "Consultas Autônomas" levou ao palco os versos de Guilherme Ziggy, ampliando o diálogo entre palavra, corpo e rito cênico.
O Núcleo Experimental da Palavra se afirma como um espaço de criação e experimentação, em que teatro e poesia se fundem na busca por novas formas de dizer, ouvir e habitar a palavra. Formado por artistas de diferentes trajetórias, o grupo investe na pesquisa contínua da linguagem poética e na sua potência de atravessamento, promovendo ações artísticas e processos que exploram a palavra como instrumento de pensamento, presença e transformação.
INTEGRANTES
Cofundadora do Núcleo Experimental da Palavra, diretora teatral, poeta e atriz. Dirigiu a peça O Sintoma – Por uma vida sexual irrefreável (texto de Mauricio Salles Vasconcelos, em recriação, no masculino, do monólogo de Molly Bloom no Ulysses, de Joyce), no Espaço Quinto dos Infernos, em 2018; dirigiu e atuou no espetáculo Seiva – Canto Lírico e Poesia, no Salão Nobre do Theatro Municipal, em 2022; dirigiu e escreveu a peça Ao Nível do Mar (surrealismo baseado na obra do poeta português António José Forte), no Janela, em 2022; dirigiu e atuou no monólogo Canção da Estrada Aberta (Walt Whitman), no Janela, em 2022; dirigiu o espetáculo Lorca Em Cena (canto lírico), no Salão Nobre do Theatro Municipal, em 2023; atuou na peça Consultas Autônomas (Guilherme Ziggy, surrealismo), nas livrarias Lop Lop e Ria, em 2023; atuou no movimento Trickster, com texto próprio, O Direito de Sonhar, no Teatro Garagem, em 2024. Atuou nos filmes: Desaparecidos, de David Schurmann; Ateliê da Rua do Brum, de Juliano Dornelles; Maior Que O Mundo, de Beto Marquez.
Cofundador do Núcleo Experimental da Palavra, é um multiartista paulistano formado em artes cênicas na Universidade Anhembi Morumbi, e que desenvolve seus trabalhos autorais desde o ano de 2000 através de exposições de arte, publicações literárias, espetáculos teatrais e shows de música autoral, onde mistura diversas linguagens artísticas.
Como compositor e intérprete lançou em 2021 o álbum ANTROPOLÍRICO que reúne parte de sua produção musical e poética que está disponível nas principais plataformas de streaming. Autor do livro de poemas intitulado "O CANTO DO BODE" que reúne textos e ilustrações produzidas ao longo dos anos. E membro fundador do movimento Bruxaria.
Instagram: @henriqueathaydeoficial