OFICINA ORBITAL

A insurreição da Flor 

(Natalia Barros)

Após a publicação de Nuvens ornamentais, Natalia Barros faz espraiar em seu terceiro livro – A insurreição da flor (São Paulo: Demônio Negro, 2022) – uma poeticidade orientada pelo franco uso da prosa para melhor potenciar a um só tempo um sentido de precisão, de minúcia devotada às menores coisas (correspondente às minúsculas dobragens de signos/linhas sobre linhas), combinado à mais vitalista abrangência. Tomada por poéticas e teorias convergentes com um senso de mundo (escandido por Jean-Luc Nancy há mais de três décadas), ativado simultaneamente por uma sintonia com a terra, o numinoso, o imaterial (dos vegetais ao elementais, ao alcance do plano mais invisível da nomeação ante a multiplicação de realidades), Natalia Barros trilha um território mobilizador de referências deixadas à mostra (de Goethe a Coccia, de Duras a Maria Gabriela Llansol) ao compasso de suas incursões singulares.

Há algo de reconfiguração dos referendos de leitura e cultura em sua escrita. Quanto mais se nota o acolhimento de repertórios percutidos em produções do presente, nos campos da literatura e dos diferentes saberes. Na mesma proporção que o traço receptivo das realizações de Ponge (para ficar em um exemplo mais visível através de proemas) pode ser percebido, há um andamento feminizador da palavra não adstrito a uma inserção temática nos nichos do mercado atual de livros e tendências.

A insurreição da flor busca o diverso no modo de compor um projeto  em visível mutação quando se leem os livros anteriores da autora. Há aqui – no jogo sempre dotado de invenção a par de uma gritante interioridade – uma disposição sensível, muito bem conduzida, para experimentações revoltas a uma tópica, à simples reverência a uma dicção lírica.

Entre a multifoliada rosa planetária e o real polifacetado do tempo corrente – entre o afloramento crescente das subjetividades e o brutalismo reiterado da macropolítica –, Natalia Barros reinventa os espaços e os lugares onde se faz insurrecta a poesia. O curioso, em sua criação, é o dado de que o enfrentamento da matéria liricizante – flores, frutos, firmamentos, contemplações no aberto (tão caro ao romantismo de Hölderlin apreendido por Heidegger) obtém um contorno sinuoso, algo labiríntico. Traço observável por força da mescla em prosa, capaz de erguer indesviáveis recorrências de ser/linguagem num dimensionamento sempre surpreendente. Ao ritmo de um encontro construtivo, sem perda da sensorialidade, com o que ainda se chama Natureza em correspondência vibrante com a elaboração de formas expandidas pelo que ainda se conhece como Literatura.


NÃO QUERO TER EXPERIÊNCIAS. quero a vida. manifesta nos dias, na vida que suporta-nos. o domingo finda e sei que tenho que passar pela madrugada do não saber. pela noite, onde almejo a calmaria, sono, sono sossegado, sono dos inocentes, dos que estão antes das coisas ditas. vou pisar devagar no sono e na solidão da filha. vou pisar devagar, enquanto ela viaja neste domingo e sinto uma falta grande de domingos de antes. a solidão é um cavalo indomável que, por vezes, come na minha mão. tenho que ficar ao pé da santa cruz, quieta demais. quase em estado de religião. com cuidado para que não se torne rigidez. quem se interessa pelo diário alheio? que regras alheias tem afinal a literatura? a quem interessa? lembro-me vagamente da existência de um anel. da necessidade que o anel se faça. uma luz vibrante. conexão. algumas pessoas listam as coisas que devemos ou não falar. alegria pode, tristeza não. a solidão é exigente. procuro discernir na rota de colisão dos afetos. preciso atravessar esta noite. uma amiga disse que, quando amamentava, existiam duas personalidades, a do dia e a da madrugada. durante a noite ela pensava que precisava fazer a travessia. também preciso atravessar a madrugada e me sentir acolhida como um bicho que dorme nas mãos amorosas de alguém. falei de literatura para vários adolescentes que me olhavam perturbados, garotos que mal escrevem. disse-lhes: mantenham o estranhamento vivo, mantenham uma pergunta maciça no centro da testa, que fique mesmo sem resposta em sinal de alerta. eles cavavam o poema, eles cavavam porque era como podiam amar. nós escavamos juntos. nós imaginamos juntos afinal. e a hora é de cuidado, pés delicadíssimos no chão. existe um abismo ao redor, um inevitável abismo ao redor. resta saber da qualidade do sobrevoo. da potência do vazio. que a gente não coloque mais terra no buraco onde estamos soterrados de significantes, de teorias sobre, de desvios da terra, do núcleo da terra, onde o fogo ainda age. nós que nos movemos às cegas. duro ofício de comportar-se. de caber em si e transbordar. a morada de dentro é sempre alheia. estamos em estado de visita nessa casa. não há outro lugar possível. a morada de si desperta a porta aberta. o sol na janela. a madrugada que devo atravessar sem o alento da claridade. respiro. lembro de respirar. exercito a respiração dos afogados. dos que sabem o gosto do sal. mesmo que os náufragos se escondam em legiões bárbaras, posso reconhecer a viagem sem volta dos que estão à deriva, como juncos soltos no lago.

OS DIAS são uma grande turba de escuridão & obscurantismo, mas algumas luzes estrelares vibram. onças e jaguares estrondam com seu rugir a lona do grande picadeiro mítico com sua política de aparências & construções podres. rajadas no ar de alegrias, ainda que estranhas ao ninho das serpentes, cruzam o espaço com olhos dos que querem saber e não abrem mão de si. ainda somos pássaros em migrações transoceânicas. na nossa incansável imaginação jesus é um xamã yanomami. uma rosa negra é uma rosa mercurial é uma rosa em movimento ascendente. que a rosa de fortuna e humor seja aqui em pindorama. pela sombra, chuva e sol. algumas coisas não estão em extinção. há labaredas acesas dentro da salamandra – arco do coração. não vamos parar de remar nesse rio, com as amazonas em flor e vitórias régias. esse perfume atravessa o tempo. o que transforma é real e não acontece fora dos corpos. tudo tem atrito: da areia ao diamante, o tempo encarna.

A TRANSFORMAÇÃO DAS PÉTALAS

 

 


Se aproxima agora a época,

uma segunda época da flor.


(Goethe)

                        

 


a matéria das pétalas está no grau mais elevado de pureza: a afinidade maior das pétalas e de todos os demais elementos. à passagem de uma pétala verdadeira aparece a pétala em flores: polipétalas. rosas aparecem dentro das pétalas perfeitas. seja no centro, seja na borda, mais ou menos perfeita, a pétala aproxima-se da forma, em pétalas. pétalas de todos se transformam em pétalas. uma flor além de muitas pétalas desenvolve a fecundação, quando órgãos se expandem como pétalas de máxima potência e de máxima sublimação. da contração à expansão, a natureza sempre faz esse caminho dando somente um passo: a insurreição da flor.

PASTEL DE VENTO

 


na minha mão um minúsculo pastel de vento. uma coisa mínima que contém vento. quero ler o livro das mutações em que o vento é lembrado. o livro do apocalipse está muito gasto, tudo nele está grifado, citado. cheio de marcas, postites e dobras. páginas já lidas e esquecidas. em abril os ventos são rápidos e gelados. o sol laranja prenuncia o inverno. os lixeiros continuam passando na rua: segundas, quartas e sextas. é difícil deixar o lixo em dia, os quatis, em bandos, remexem tudo. o caminhão passa em alta velocidade, faz um enorme ruído e a terra treme. os lixeiros estão sempre sorrindo e correm atrás do carro, que desloca mais ainda o ar. o vento no pastel de feira não tem nada dentro. um vazio é um movimento de possibilidades. respirar é o que posso fazer. ventar dentro. os pulmões estão na linha de frente. é uma ação conjunta: criar atmosferas. o ar que cabe dentro do pastel de feira é uma reserva do mundo dentro e fora de casa.

DENTRO DA NOITE existe uma vereda para percorrer até o sonho. às vezes, aparece um círculo vazio, um halo que puxa para dentro e para baixo, os olhos não conseguem permanecer fechados. algumas vezes chamamos esse lugar de insônia, outras, de ficar acordados na madrugada. não é possível entregar-se sempre, totalmente à noite, uma excitação nos ronda. justo onde devemos descansar a mata adensa. bem aí, o pássaro canta, tanto e tão sozinho que parece querer se comunicar. senão por que esse piado no centro do mundo? as ideias se apresentam, mas não se sustentam, estão gravitando entre dois reinos, no entressonho. não há muito que fazer nessa selva escura e úmida. quanto mais a gente se mexe, mais se emaranha nos galhos. pela manhã – a luz é excessiva – nada aconteceu. não fosse na pele o cheiro de húmus e nos cabelos gravetos minúsculos que se entrelaçam quase imperceptíveis. o dia segue. a lembrança insone do canto permanece numa partitura molhada que tenta se secar ao sol, com cuidado para não desaparecer.

O LÁPIS PRETO

 


diante do lápis possível desenho. sobre a mesa descansa o caderno. ouço o trovão rugir dentro de uma grande nuvem. o lápis lázarus na escrita ruína da mesa móvel. o lápis isomórfico de madeira. objeto maquinante. lápis em suspensão de pensamento. lápis fábrica de palavras. lápis parado. ponta deslizante. tudo sinal: madeira árvore e papel folha. o lápis sabe ouvir a tempestade sem se mexer. imóvel é um sedutor. promete lembrar, registrar. objeto invenção de memória. como um gato descansa na mesa. sabe que é visto. objeto de desejo. aparenta solidão. faber castel: fabrica fortalezas. 6b poroso. objeto leve. grafite. pronto para disparar. pode dizer o não dito. aponta lapizador. página branca que a paixão obriga a marcar, gravar, rasurar. lápis nunca. lapistosfera. contra o branco atávico. transforma o silêncio num silêncio mais fundo. nomeia. lápislábios te escuto marcar a página. a grafia lápis casular. escrevo a lápis. a chuva escreve no chão.

A ROSA

 


Ó noite, toma as pétalas das rosas na mão,

mas deixa o carpelo firme da rosa a perecer no ramo.


(Hilda Doolittle)

     

 


dá-me a rosa do real. é um milagre que respiremos, é uma fome de ar. não há nada mais íntimo que o real. de tudo o que pode ser impresso, viver é uma marca que se expande na pele. em cada canto familiar o rosto da infância se alarga. um homem ao perceber que estava morrendo pediu um espelho. ó senhor, dá-me um espelho, para que eu veja a rosa real.