OFICINA ORBITAL
Eu falo
(seleção de poemas)
ALICE QUEIROZ
ALICE QUEIROZ
Paulistana. Escritora e livreira. Bacharelou-se em Letras pela USP. Participou de várias antologias, publicando seus textos em diversas revistas virtuais. Eu falo (2022) é seu livro de estreia.
Intrigantes, inquietantes, os poemas contidos no referido volume primam pela reviravolta de prisma na agenda feminina/feminista mais encontradiça. Põem em primeiro plano uma perspectiva de focagem passível de ser formulada, nos termos de Valerie Solanas em seu Scum Manifesto, como a dimensão da “mulher que falta”. Justamente, uma lacuna (escavada com grande intensidade na poética de Eu falo) indesviável do humano (seja para homens seja para mulheres), para lá das demarcações de gênero.
Tendo em dissecação o sexo, a discursividade Gender, os estereótipos do masculino, Alice Queiroz atinge a virada de chave pós-lacaniana, muito bem discorrida por Avital Ronell em seus testes de cultura e cognição contemporâneos. Torna insidiosa a concepção de um falo fêmea. A jovem poeta insufla um propósito de feminização disseminador, de um modo tão incisivo, quanto competentemente construído em versos breves, dotados de elaborada ritmia, escapando assim da desgastada pauta do feminismo ainda em vigência no mercado e na política literários de hoje.
EU FALO.
Eu = FALO
Surpreende, suspende ditames minoritários, palavras-de-ordem culturalizadas, corporativadas. Impacta, com grande potência poética, os interditos da cultura e da palavra. Inova, por força de sua fulguração intelectiva e propositiva. Sem perda da pregnância do dizer, à altura do corpo.
MSV
Priapo
Quem com o
falo fere
com o (próprio)
falo será
ferido
*********
Ideal de beleza
Liso
simples
e direto
feito flecha
sem medo
que mira
reto
virado
pra frente
regular
mas repleto
de vincos
e veias
teso
do sangue
que vibra
por dentro
médio:
nem fino
nem grosso
nem grande
nem pequeno
que caiba
inteiro
ao fechar
meus dedos
rosado
em especial
na cabeça
brilhante
e redonda
como o topo
de um farol
aceso
e que endureça
sem nos
vermos
só de ouvir
meus passos
no tapete
só de ver
minha boca
aberta
insolente
devoradora
faminta de carne
sedenta de porra
e que endureça
sempre
na agonia
do desejo
sem nos
tocarmos
sem receber
sequer um olhar
sequer um beijo
só de lembrar
como o deixo
mole e seco
exaurido
e satisfeito
esse é
meu ideal
de beleza;
se não for
desse jeito
também aceito
qualquer outro
que satisfaça
um paladar
exigente
marginal
um homem sem tirar nem pôr
mais tirando que pondo
mais amoroso que tirano
um que não me deixe na mão
me guie pela mão na calçada
moça distraída, ensimesmada
alheia aos carros rasgando a avenida
um homem que faça nas coxas
de vez em quando por pura preguiça
e para me poupar das estocadas
um que não me deixe na mão
me guie pela mão na calça
para sua ereção em plena praça
só para me ver corada, um pouco brava
um homem que não sai de cima
lambe como gato acostumado
ao fluido nem doce nem salgado
um que não me deixe na mão
me dê a mão e os membros todos
seu dedo do meio, curto e grosso
à meia-luz de uma quitinete alugada
um homem com a boca suja
para eu ouvir a putaria abreviada
não censurada pela norma culta
um que não me deixe na mão
porque sabe como a mão pode tocar
desde a punheta mais vulgar
até meu sexo sensível após o gozo
terra úmida
mãos de homem
ásperas mudas
pelos meus cabelos
grandes nuas
pelos meus seios
tépidas duras
pelos meus pelos
enquanto me acaricia de leve
solene toque sem toque
penso em quando se masturba
no mover bruto
sem qualquer emoção
extraindo seiva
como quem rega plantas
penso em quando se masturba
e me excita ainda que
singelamente comedida
eu não diga que nas suas mãos
desejo sobre tudo florescer!
acordar a cada manhã
marcada pelo parir do sol
pelo cheiro da terra úmida
descalça ir até o jardim
e cuidar mais do regador que das flores
Falicismo
o pênis é deus
o homem matou deus
a mulher o reviveu
Estereótipo
“Mulher não gosta de pênis,
mulher gosta é de dinheiro”
Dinheiro eu tenho
nem pouco nem muito
o suficiente
Então para que eu
vou querer algo
vulgar sujo comum
e que todo mundo tem
uns de mais outros de menos?
Se for assim prefiro algo
comum sujo vulgar
que muitos têm de normais
uns de menos outros de mais
algo até mesmo banal
que eu nunca vou ter
Contenção
Sobre as meias ¾ sob a saia
de uma colegial japonesa
que volta à noite para casa
(um sonho de estrelas múltiplas
o grito em um beco alucinado
um delírio de dedos e tentáculos
o sopro esfumaçado de dez armas
um pesadelo de espasmos em fileira
o choro de uma virgem aos pedaços)
Há um altar que venera pés descalços
no genkan larga a bolsa deixa rastro
ao chegar sem pernas sem a alma
********************
Contre tous
Igual ao seu já vi centenas
e ao mesmo tempo nenhum
o que muda é essa qualidade
comum a todos: sua natureza
dolorosamente ambígua
e se o (in)utiliza como servo
dominado culpando-o por seus
erros e outros pequenos pecados
em nossa sociedade brasileira
e em quase qualquer sociedade
se não fizer isso é homem
e se fizer isso ainda será
embora eu o questione:
quem é você? imaginário de poder?
de grana de gastos de grandeza
de excessos extremos excedentes
um patético apoplético impotente
que vive em função do máximo de tudo
topo do mundo da cadeira do chefe
à presidência – por que não?
mas no fim é só um homem
existência vaga de constante moleza
e breves horas épicas e ébrias
de onde nasceu a sua sina?
do berço da igreja da mídia
da mesa da sala ou do balcão
do bar da esquina? das escolas
das rodas de punheta dos puteiros
onde se obrigam meninos a se
deitarem com mulheres cínicas?
esqueça os filmes de sexo:
com eles você só aprendeu
a ser monstro máquina ou martelo
e ao invés de erguer construção
destruir durante horas
e sem nenhum alívio
para consolo de segundos
ferramenta de um submundo
de humilhação e de estupro
patrocinado pela pfizer
esqueça os filmes de ação:
com eles você só aprendeu
a ser sozinho contra todos
herói sem nome com carro blindado
sem ajuda nem companhia
exceto a pistola ou a espada
tiro porrada e bomba
nas musas siliconadas
a depender da produção milionária
que lucra com o seu fracasso
esqueça enfim o que te disseram
esqueça tudo exceto: seja homem
não foi isso que você ouviu a vida toda?
hoje mesmo e sempre seja
sem faltar nenhuma parte
cabeça coração corpo
e até falo – quando bem colocado
seja amoroso e honrado
seja imperfeito
seja fraco.
Expiação
Cresci ouvindo mamãe dizer
que “o nosso corpo é nosso templo”
que mulher tem que se dar respeito
só com amor, só depois do casamento
Eu só lembro que me ensimesmava
ouvindo meu Dimmu Borgir no talo
coberta de negro feito uma freira
de igreja gótica depredada na Noruega
Bem calada no calor da madrugada
evocava nua a dança a marretadas
do blasting beats do rouco gutural
e profanava meu templo puro, devagar
régua
nem 1cm de mim será teu
nem 1cm de axila, de seio
da sombra embaixo da saia
nem 1cm de memória
da mistura do agora com a saudade
nem 1cm da sandália
da senha do celular, das redes sociais
nem 1cm do cabelo
do cenho, do sorriso, dos passos rápidos
nem 1cm do gato, do quarto
da casa dos pais, dos trajetos, das viagens
da firma, da academia, da terapia
nem 1cm de quem acha que sou
como é minha bunda, pra quantos dei
do quanto chorei semana passada
nem 1cm da primeira vez
dos ex, dos casos, dos beijos, dos amassos
nem 1cm do quanto de pele
está coberta ou à mostra, da idade
nem 1cm do vibrador
da dor, do ciclo menstrual
nem 1cm meu será teu
ou dessa régua pela qual se mede
e certamente
não me cabe