OFICINA ORBITAL 

LABOR DE SONDAR 

Lu Menezes


A partir do lançamento de Abre-te, rosebud! (1996), Lu Menezes vem sendo lida e estudada com o merecido destaque, tendo-se em pauta a vertente curiosamente inventiva que a norteia, repertoriada por referenciais explícitos da literatura, das outras artes, da ciência e da filosofia. O que se consolida através de uma conjugação única de elementos integrantes da cultura, do conhecimento, com o crivo tão minucioso quanto desconcertante de seu projeto poético.

Bordaduras, bordejamentos – A autora maranhense radicada no Rio há décadas faz uso reiterado de fiações provindas do toque ultrassensível da feminilidade, a um só tempo alusivas ao mundo das artes visuais, de modo a conduzir palavras e coisas ressignificadas pela linguagem a uma disposição autorreflexiva do labor escritural. Algo que não permanece apenas na esteira gráfico-plástica de uma analogia com a visualidade a contar do matérico verbal. Há o dado da sonda – tal como consta do título do conjunto de sua produção poética publicada em 2022, Labor de sondar [1977-2022] –, encampado de forma producente, interveniente, a abrir sua concepção textual – inevitável, insidioso se mostra o verbo exclamativa e imperativamente relacionado com o Rosebud wellesiano, em Citizen Kane: Abre-te! – para o ingresso num universo de incidências espácio-temporais crescentemente reveladoras. 

A passagem de 45 anos na laboração de uma escrita centrada na poesia faz evidenciar os traços de um longo tempo, entresséculos, tomado como trajeto que se intensifica e, também, se desdobra. 

O sentido do fiar – costurar, cerzir, descoser, refigurar – acaba por soar como artesania nada previsível de um trabalho feito com as mãos (frisando-se o somatismo do escrever, exercido, pois, com todo o corpo). Nada tem do “inefável” tantas vezes acoplado ao feminino (passível de render a exegese provocadora de Ana Cristina César sobre a poiesis atribuída à mulher). 

Desponta, na reunião de um trabalho de literatura dado à mostra por Labor de sondar, o senso, muitas vezes brutalista, de uma desmontagem. Em poemas como o já antológico “Quiasmos” – eletrificante até hoje, depois de sua publicação há quase 30 anos no livro de 1996 –  e em muitos outros (“Onde o céu descasca”, “No fundo e na superfície”, “Poíesis”, “Seios feios”, “Newton e o Natal”, certamente no exponencial “Corpos simultâneos de cisne”, para dar alguns exemplos), a voltagem de dissecação/decupagem/decomposição se engrena. Interfere na forma de se fazer e ler poesia hoje. Sim, a poiesis não subsiste sem o elo objetal (tão bem exposto por H. Oiticica quando de seu salto a partir do geométrico para a matéria somática de imagens, muito além da cisão sujeito/objeto, não-feitas apenas para ver e desfilar o emolduramento numa galeria, ainda que possam contar com tal âmbito de exposição e fomentação).

Irrompe, assim, no volume em que o ideário da Obra Completa a início indicia a culminação do ofício da escrita, a investigação inquietante a instigar planos nascentes (possível de aproximação daquele infindavelmente mobilizante, siderado no real simultâneo-orbital, Glove Trotter, de Cildo Meireles, artista, aliás, a quem Lu dedica o primeiro dos seus livros, O amor é tão esguio). Ganham relevo linhas-percursos em intensa formulação, compreendidas à maneira de takes impressivos e inseminadores de andamentos descontínuos, nos quais verdadeiros dínamos de plasticidade e verbalidade se combinam e também bifurcam-se num intrincado jogo de implicações, misto de disrupções. Onde as formas do falso – (“F” FOR FLOCOS”), de novo Welles, em “Neves de verão” –, o simulacro, comparecem para suspender divisas na desbravação de portais/passagens do que significa e dá a conhecer a poesia. 

Labor contém como premissa uma contínua abertura propositiva. O ato de sondar engatilha, já, uma incursão.

Lu Menezes não se abstém de penetrar no cerne paratático-paradoxal de ser/não-saber indissoluvelmente incorporado ao fazer linguagem. Laborar poesia aponta para uma sondagem de distâncias e durações. Não ao acaso, sua instalação gráfico-verbal na contemporaneidade mais gritante do que pode proporcionar um “gênero literário” permanece em modulação sempre móvel, quanto mais se firma na dinâmica inseparável de grafar/ver/desmontar. 

Concentrações, dilatações/Disseminações, contrações – Desenha-se um compacto/conjunto exploratório do sentido mais percuciente do que é literatura na hora de agora. Sob o signo do que há afora (para lá da letra e do letramento, em descarte da mera estampa da imageria) na incursão por sua “luz tenaz”, num só movimento, a mais imperceptivelmente veloz –

Tudo o que se passa e faz girar a ideia-de-tempo no interior de mais de quatro décadas de labor e sonda, inextricavelmente associados de um modo intercambiante, surpreendente sempre. 

Mauricio Salles Vasconcelos

Foto de Masé Lemos

Seguem 13 poemas de Labor de Sondar (1979-2020). São Paulo: Círculo de Poemas, 2022. 

Quiasmos

 

    A Coney Island of the Mind

       H. Miller/ L. Ferlinghetti

 

   Na mente de alguém se detém

um pombo de carne e osso pousando

     em pétrea cabeça de anjo

 

           e homens

em homenagem à morte comendo

       crânios de açúcar-candy

 

Uma Coney Island, uma Cascadura, uma

        Cascamole da mente

 

        — a própria mente —

 

         invaginário lugar

onde é possível lembrar que se esqueceu de tudo

 

        — na mente de alguém

      canibalescamente se detém

 

 

 

Distâncias não mensuráveis III

 

I — Vias lácteas

 

Essa dona de casa

abriu bem mal no café matinal

uma caixa de aveia.

E ao varrer

o chão constelado de farelos...

lembrou-se de via TV

ter visto na véspera o milky way

— nossa galante galáxia espiralada

com seus bilhões das mais longínquas

humanas ancestrais...

não-transbordadas de alguma

cósmica embalagem, e sim

como a gente

nascidas em “berçário”,

alcançando como a gente

pré-extinção, “idade avançada”;

sem falar que somos feitos

“de massa estelar”, guardadas

as ofuscantes diferenças

as evidentes e aquelas

infinitamente impensáveis.

Assim, ainda que de tão

arbitrário ângulo espreitadas,

uma parente menos distante

de estrelas que de caixas de Quaker

essa mulher se sente.

 

II — Distâncias

 

São agora seis da tarde.

Um cão ao longe late,

é seu Angelus, mas ela

não adivinha o que ele anuncia.

Veio pra perto, aliás,

o anjo que late.

Bastante perto pois perante

a Via Láctea

a distância entre tudo

não se contrai?

 

                   ***                       

 

Ambígua luz elétrica

que apaga as estrelas

e cruamente acompanha

— como em Hopper —

a solidão... mas forja

com generosa ironia

na noite das favelas

          enxames

de faiscante beleza.

 

 

Onde o céu descasca

 

No interior

da pizzaria pintada de azul com nuvens

um ponto

onde descola a tinta, onde o céu descasca

denuncia

o sórdido teto anterior

descor

de burro quando surge

E é só

o que delicia certo solitário comensal

— esse ponto no qual

extramolduras

o apetite de um Magritte por superfícies

          genuína companhia lhe faz

 

— Genuína companhia...

num simulacro de céu, tal ninharia?

Yes!, no mínimo mais

que a fatia no prato,  

            o pedaço de teto nu e cru

            — amostra menor do limbo,

  do franco, fiel, frio limbo —

            duraria, oh sim, duraria

 

 

 

                Eu desejava

 

Eu desejava acordar cisne

amanhecer sarada — e portanto intentei

 

conjurar a feiura fazendo a leitura

de uma dezena de contos de fadas

 

Achei

que da Bela Adormecida,

da mais encantada beberam

Borges e Buñuel

 

Medos secretos

aos montes medrando

 

achei que nobre ou plebeu

 

qualquer mortal padece

o desconforto da ervilha sob a pilha de colchões

 

E achando mundos e fundos

achei-me entregue

aos contos de nada

ao de um monge —

iluminado quando um dia

ouviu seu açougueiro responder a um freguês

 

 

No meu açougue TUDO é ‘o melhor’

Não há aqui nem um pedaço de carne

que não seja ‘o melhor pedaço’

 

 

Do Flamengo ao Lamego

(A Francisco Alvim)

 

Com pressa, semi-ignoro o promissor

tom azul-suspeito do táxi tomado na praia do Flamengo...

Dentro, conspiram pó assediante aliado a insofismável

odor de cocô.

Pelo retrovisor do carro sujo como o diabo gosta, vejo o suspeito

olho direito do motorista suspeitando

da minha suspeição...

 

Preciso sobreviver — finjo não farejar — e ouço, então:

 

— Hum... que tempo esquisito faz nesta tal de primavera aqui no Rio...

Não tem os cheiros do Algarve e de Trás-os-Montes, aqueles

que vêm do mato quando se passa pelas estradas de lá.

— Bela primavera essa...

— Chi, o Algarve fica cheio de amendoeiras floridas!

— Do que o senhor tem mais saudade na natureza portuguesa?

— De m’lão e p’ss’go. Do m’lão de casca de carvalho

e do p’ss’go grudado no caroço porque

o de caroço separado não tem graça nenhuma.

— É saudade, com certeza...

 

— Ah!, de todas as estações, e de quando

o outono acaba e uma árvore do Lamego

fica depenadinha e vem o inverno

e cobre de neve.

 

 

      Tesouro

(A Ivan Marquetti)

 

Embaixo de árvore ao sol,

no colo amoenus desloco

um livro que as sombras das folhas

anseiam

             ensaiam ilustrar

 

    É de Saussure

 

    “Trata-se de

              um tesouro”,

           ele diz sobre a Língua,

 

    e sublinho

          as palavras um tesouro

 

remissíveis a amigo desejoso de achar

 

      “qualquer bobagem”, qualquer

                   coisa que seja

 

 

seja lá o que for,

              “contanto que um

                       tesouro”


Branco

 

Branco que te ouço                      branco-silencioso

no mais intocado lugar do fim gelado do mundo

onde nenhum pombo branco na neve nunca ecoou

 

 

Corpos simultâneos de cisne

 

Branco ideal e branco real

o mesmo cisne no espaço

                                de um saco de sal

 

ocupam

mas eis

  transmigrante

 

lei que em mantimentos transfez

obsoleta

                   ampulheta: um cisne de sal

 

                             segue o curso

                               do tempo

 

                   e míngua

 

até ser somente

 

  de plástico transparente

 

 

                Instante

 

   Instante gigante,

         instante espaço do instante

         onde ilocável fonte fornece

               rara água erradia

           tão rala que o coração

                 bebe de quatro

             nu como um cavalo

 

 

      Viviam dentro

 

Viviam dentro da casa da fazenda abandonada

ossos de um boi que ignorava

haver abrir para invadir e abrir para fugir

 

Há abrir e há abrir mas o Amor é tão esguio —

ele consegue passar

pelo mais ínfimo olhar

 


                Neves de verão

 

 

                           I

                  (“F” FOR FLOCOS)

 

Falsos flocos de neve

                em árvores e arbóreos

        pulmões de pessoas

           a fábrica de algodão do subúrbio

                  degringolada grudou

 

 

                                  II

                    (NEVE SOBRE PAPEL)

 

Et je connais la neige,

                    Autant que ma chair même,

                  Son froment me protège

                  Contre les chairs que j’aime...

                                                        Jules Laforgue

 

 

        Na loja quente da cidade quente,

                           atrás

             de uma xerox acionada

               por suadíssimo rapaz,

 

                           verás

            parede que copia o frio,

            cheia de chalés suíços

         em chão de neve sobre papel

 

  — Neve de calendário no Brasil,

           que além de sorvete

            de coco ao céu

  da boca de quem resfrie o olhar,

 

   a própria Distância promete

        a quem a mira e cobiça

      morrer, cobrir-se com ela

   como galhos, pedras, telhados

 

Luz tenaz

 

Pensar que no nascer do Universo

flutuações térmicas infinitesimais

eram tudo o que havia

num mar de nada

num vazio oceânico, além

de certa luz audaz

viajando sem parar

desde lá, há 13

bilhões de anos.

 

Pensar também que com fatais

aumentos de temperatura

a nossa prematura

morte na Terra decretamos.

 

Mas essa luz tenaz

prosseguirá viajando.