Nil França é professor, ator, fotógrafo e produtor cultural. Possui graduação em Letras pela FFLCH-USP e em Artes Cênicas pela ECA - USP. É Mestre em Letras e atualmente doutorando em Artes Cênicas, ambos pela Universidade de São Paulo.
Abaixo se reproduz trecho do romance em desenvolvimento e de título provisório Margens, originalmente pensado como uma dramaturgia para três atores.
Quando cheguei nesse espaço de 28 metros quadrados com poucas janelas e horas contadas de luz natural entrando desviando-se de outros prédios tudo me pareceu pequeno. Tão pequeno que não dava pra deitar no chão de nenhum cômodo sem esbarrar em alguma coisa. Olha que tentei, e depois de meter o cotovelo na estante durante uma tentativa frustrada de uma rotina de calistenia e sentir um choque do cotovelo direito até o ovo esquerdo, percebi que ali era só pras rotinas de comer, dormir, me jogar no sofá. Tão pequeno que não daria nem pra praticar uma dancinha ridícula ou ensaiar um passo pra convidar uma mina na próxima festa. Mas 28 metros é até bastante espaço pra se cair estatelado e morto. Não que seja minha intenção. Ainda que a chegada ao final de cada dia não seja lá muito diferente. O pior é estar só com pensamentos sem espaço nem pra pensar. E isso é quase um câncer. A multiplicação desenfreada de coisas podres em um espaço pequeno. Não de células, mas de ideias sem futuro na cabeça. Às vezes saio por aí. Reviso a cidade, os lugares tomados pela especulação e pelos prédios feios. Nessa hora tudo parece mais lento porque igual. Nessas horas imagino o Jão na esquina de casa esperando eu dar as caras. Meus pais não gostavam dele desde. Desde. Ele ficava com aquela cara de quem olha pra qualquer canto procurando alguma coisa. E pá, de repente ele encontrava. Era o primeiro a perceber câmeras de vigilância e se alguém estava olhando pra ele. Por bem ou por mal. Sempre sabia se uma mina tava a fim ou se no mínimo deixava uma brecha. Talento que nunca tive. Se eu estivesse em uma sala rodeada de monitores, focalizando e dando zoom, era capaz de ainda duvidar do que as câmeras me mostrassem. Já o Jão talvez até antecipasse cada coisa que fosse aparecendo, já o vi fazendo isso quando assistíamos qualquer coisa numa televisão velha de tubo que ele tinha em casa e que sempre pensei que pesava uma tonelada, até vê-la sendo jogada pela dona Antônia num dia em que o pai do Jão chegou bêbado em casa. Jão dizia que todas as fotos, filmes, já estavam feitos e que dava pra vê-los antes de aparecerem se prestasse atenção no que aparecia no canto do olho. Eu só acho que ele via demais.
Um dia o Jão pediu um trampo para o Yamashida, um meio-japa que uma galera chamava de boliviano pra irritá-lo. E nem japa ele era também, era sei lá de que geração, de pai Manoel e mãe Fátima. Mas o japa que não era japa era ninja e malandro e depois de se lascar com um sem número de trampos se meteu com fotografia, sabia do rolê, foi se dando bem, abriu um estúdio e fez uma grana. Jão quando soube dessa história colou no japa que não era japa e pediu um trampo. Disse que queria aprender, mas também não podia abrir mão de uns trocados. Tinha uma bike e sangue nos olhos. Fazia entregas, pegava materiais, ajudava o japa e ia aprendendo, com o tempo foi pegando trampos menores que o patrão não queria e depois de uma cota comprou uma moto hondinha usada. Todo mundo ria e cantava um jingle do comercial da época. Jão confirmava e dizia que não dava pra gastar muito com gasolina, e que precisava estar no olho do furacão. Que era: chegar rápido em picos onde estava rolando alguma coisa e vender as fotos para algum jornal. A ideia pode parecer bem merda hoje em dia. Mas deu certo. Isso lhe rendeu um trampo naquele jornal quando ele era motoboy numa época de menos motoboys e de quando se lia jornais. Jão pegava as pautas de uma agência e ia cortando a cidade em sua motinho de 110 cilindradas. Mal sabíamos que terminaríamos todos cortando São Paulo em algum momento de nossas vidas. Anos depois, Jão foi trocando de moto e as cilindradas foram crescendo exponencialmente. Não me pergunte quanto porque nunca manjei de motos, ou carros, ou motores. Quando o jornal foi indo mal das pernas e isso foi até rápido, ele era um dos poucos fotógrafos que restou e era chamado pra cobrir tudo, de inauguração de praça a violência policial contra manifestantes, de rebelião em casa de detenção a eventinho de gente rica. Num desses trampos menores, mandaram ele para umas fotos de um professor escritor que tinha ganhado um prêmio. Tenho um exemplar do livro dele aqui que ganhei, ainda no plástico. A jornalista já estava lá e era amiga da filha do cara, olha só. No final daquele dia encontrei Jão num bar da Liberdade perto de onde ele morava agora e estava com uma cara que talvez eu só tivesse visto quando tínhamos 15 anos. Entre uma cerveja e outra reclamava que o trampo já não estava tão legal quanto antes, que pensava em voltar a estudar, de repente fazer jornalismo já que já estava no corre ou cinema para colocar umas fotos para andar. Pedi pra ver as fotos e ele me passou a câmera quase distraído, como se estivesse tentando resgatar um pensamento. Mesmo por aquela telinha sem-vergonha era inegável que o cara tinha olho e talento. Exceto talvez por uma foto dele mesmo, meio torta, meio desfocada, mas na qual dava pra ver quase um sorriso. E Jão não era de sorrisos. Daria para contar o dia a partir daquelas fotos: pela manhã, caminhão travado baixo um viaduto porque não respeitou a altura máxima, depois do almoço prefeito inaugurando nova academia da guarda civil, à tarde as fotos do professor lá, da biblioteca, da entrevista e… da filha do cara. E aí entendi o sorriso. Um retrato de galeria, daqueles para serem expostos gigantes, pra você olhar nos olhos da retratada porque ela também olhava para ti. E a mina era linda. Tinha descoberto então o porquê daquela cara e daquele sorriso.
Conheci Beatriz meses depois quando ela me mandou mensagem dizendo que o Jão tinha sumido. Ou Paulo. Era assim que ela o chamava.
Todas as imagens são de autoria de Nil França