Contos de Maria Clara Martho Betti

Formada em Letras pela FFLCH-USP, ensina redação e escreve sobre literatura e cinema no blog Querido Clássico

Descompasso

Não sabia ao certo que horas eram. Na correria para sair de casa, deixara o celular em cima da mesa, e só percebia agora que tateava o fundo da mochila sem encontrar o aparelho. De todo modo, sabia que estava atrasada.

Não tinha certeza se corria ao sair do ônibus ou se fingia estar calma, não queria que olhassem para ela, a camiseta manchada de suor, o rosto quente e vermelho. Apertou o passo, tentando manter a compostura, entrou na estação, desceu as escadas rolantes e esperou que o trem chegasse. Acima dos trilhos, um relógio digital confirmava sua sentença: não chegaria ao trabalho a tempo. As crianças ficariam sem aula e os coordenadores se zangariam pela falta de comunicação. Se ao menos tivesse lembrado de pegar o celular, poderia avisá-los.

Talvez, se fosse muito rápida, conseguisse fazer com que o atraso fosse aceitável. Cinco, dez minutos, no máximo, e ainda daria tempo de fazer uma revisão antes da prova da semana seguinte e de passar alguns exercícios para os alunos. Pegou o trem, foi caminhando até o vagão que ela sabia ser o mais próximo do elevador, fez a baldeação para mudar de linha já sem se importar com sua aparência. Não olhou para o lado quando uma senhora tentou lhe vender balas de eucalipto nem parou para comprar o pão de queijo de todos os dias. Faltavam duas estações e oito minutos para o começo da aula. Se ela corresse até a escola, ainda poderia chegar na hora. Ficou feliz consigo mesma nunca fizera aquele trajeto tão rápido antes.

Saiu da estação e virou a esquina, ouvindo um som familiar. Dois minutos para tocar o sinal, era só descer a rua que chegaria à escola. Mas, na calçada, alguém tocava sua música favorita. Um garoto com um violão e uma bela voz. Precisou parar. Ficou ali, olhando, até que a música acabasse. Com calma, procurou a carteira, entregou-lhe um trocado, quis elogiá-lo ainda e pedir que tocasse mais uma. Àquela altura, o sinal já soara havia algum tempo.


Ao shopping center

Já estava ficando difícil mover as pernas. Não havia relógios nos corredores bem iluminados, mas ela podia apostar que vagava diante das vitrines havia mais de duas horas. Era o ritual de sempre.

Costumava fazer esse trajeto acompanhada: ela, Aline e Camila. Trabalhavam juntas e acabaram ficando próximas. Toda semana, às sextas-feiras, iam ao shopping, pediam lanches, tomavam um sorvete e, se tivessem dinheiro para isso, assistiam a algum filme. Se não desse, contentavam-se em passear lentamente diante das lojas, olhando, desejando, sonhando com o dia em que poderiam comprar tudo que quisessem.

Isso foi antes. Agora, Márcia ia sozinha ao shopping para ver as vitrines. Tornara-se um hábito e, em vez de frequentá-lo somente às sextas-feiras, podia ser encontrada ali quase todos os dias, no fim de tarde. Era como sua segunda casa. Preferia o barulho das multidões e a familiaridade das luzes artificiais do que seu apartamento.

Aline e Camila não apareciam mais lá desde que Márcia fora promovida. Na época, criou-se uma tensão súbita que ela não conseguiu reverter, mesmo se oferecendo para pagar o sorvete e o cinema para as duas. Falavam-se, agora, só quando necessário, e as amigas (talvez ex-amigas?) preferiam ir ao happy hour da firma a passear com ela no shopping.

Mas era o ritual e, para Márcia, era sagrado. Mesmo com o salário novo, mantinha a tradição de devorar os produtos apenas com os olhos, ir de loja em loja, repetindo algumas vezes o processo, subindo e descendo as escadas rolantes, andando em círculos, até que as luzes começassem a se apagar e ela se visse obrigada a ir embora. O que queria não estava ali, mas as boas memórias traziam-na de volta todos os dias.

“Essa é a loja preferida de Aline”, pensou em voz alta, passando pela terceira vez por uma vitrine repleta de sapatos. “Ela adoraria essas botas”. Não era a primeira vez que via o par de coturnos eles estavam expostos havia alguns dias , mas o pensamento sempre voltava. Considerou por um momento a possibilidade de comprá-las para a amiga quer dizer, colega de trabalho, “amiga” agora parecia uma palavra forte demais , ou então poderia presentear Camila com um par de brincos que sempre quis e que agora estavam na promoção. Mas seria inútil, concluiu, talvez elas não entendessem o que queria dizer com aquilo, podiam achar que estava se exibindo. Possivelmente continuariam a evitá-la e, quando isso fosse impossível, a chamá-la desgostosamente de “chefe”. Já podia imaginar como revirariam os olhos ao dizerem isso.

Era inútil, e Márcia já tinha tentado se tranquilizar em relação àquilo. Semanas atrás, achara que a felicidade estava num aspirador de pó; depois, acreditou que sua vida dependia de um kit de maquiagem importado. Só entendeu que não era daquilo que precisava quando o apartamento já estava cheio de tranqueiras e o coração continuava vazio. Não sentia o impulso de comprar mais nada. Mesmo assim, continuava a andar pelo shopping como quem acha que a salvação está num par de sapatos.

Passou na frente do cinema, sentiu o cheiro da pipoca, pensou ainda em ligar pra Camila e perguntar como estava sua mãe, que tinha caído da escada meses antes. Mas não adiantaria de nada.

Distraída, Márcia não percebia os olhares curiosos que a circundavam. Os sussurros espalhavam a notícia da mulher solitária que pensava em voz alta, conversando com alguém que não estava ali. As crianças riam quando passavam por ela e percebiam sua caminhada manca de cansaço, mas não eram notadas. Márcia passava a fazer parte do cenário, e enfeitava os corredores, atraindo visitantes interessados em contemplá-la da mesma forma que ela contemplava as vitrines.


Ordem

Era algo sobre o que não falávamos e, por não falarmos, era fácil fingir que não víamos até que, contrariando todas as regras nunca ditas, um de nós quis juntar-se àqueles que fingíamos não ver, alegando estar cansado de nossa mudez ; então, sem emitir nenhum ruído, escrevemos as regras e as distribuímos entre nós para evitar que elas fossem quebradas novamente, quebrando também nosso divino silêncio.


A descoberta

Do andar de cima da casa nova, conseguia ouvir a goteira incansável da torneira da cozinha. A imensidão da casa, o vazio dos quartos, que de início pareciam perfeitos, logo mostraram ser mais do que conseguia ocupar. Sentia a necessidade de expandir-se, de preencher todos os cômodos com sua presença, de marcar aquela casa como sua, transformá-la num lar, mas via só paredes, móveis, estantes vazias, sua imagem pequena refletida no espelho que nunca vira outro rosto além do dela.

Antes pensara ser o bastante. Durante as décadas que vivera encolhida entre os três irmãos, a mãe e o pai, acreditava que, assim que estivesse sozinha, sua essência se espalharia, preenchendo todos os cantos do mundo. Ansiava por saber quem era, longe do olhar dos demais. Mas estava sempre acompanhada. Os parentes iam se somando, as tias apareciam sem avisar e demandavam atenção exclusiva e imediata.

Como vão os namoradinhos? perguntavam, mas os namorados não existiam, ela mesma talvez não existisse: era só mais uma invenção, mais uma filha de seus pais, dividindo o mesmo quarto, a mesma cama, as mesmas roupas.

Nunca estava sozinha. Faltava espaço. De início não se incomodava, mas quando seu corpo começou a se aquecer, a contorcer-se no meio da noite e até, sem aviso prévio, durante o dia, começou a fazer falta ter um refúgio onde pudesse se investigar.

A porta do banheiro não tinha chave. Nenhuma porta da casa tinha chave (a não ser as portas de entrada e dos fundos, por questões de segurança). Dentro de casa, não havia motivo para se esconder da família. Fingiam saber tudo uns dos outros, por vezes se viam nus, era inevitável. À noite, quando o único som que ouvia era o gotejar ininterrupto da torneira, conformava-se em enfiar a mão na calcinha e se tocar, silenciosa e fascinada, em meio à pequena multidão de irmãos adormecidos. Nessa época, começou a pesquisar imagens de casas grandes, altas, onde poderia viver como quisesse, onde suas coisas não precisassem ficar suprimidas numa prateleira do armário compartilhado.

Mas sozinha na casa nova, anos mais tarde, ainda conseguia ouvir a torneira pingando no andar de baixo. O espaço era amplo e ela se assegurara de que todas as portas tivessem chaves. Nenhum dos parentes jamais fora convidado. Era seu espaço, ainda que vazio.