MUTAÇÕES DA ESCRITA NA ÉPOCA DO VAMPIRISMO PORNOGRÁFICO (PARTE 1):

EXISTÊNCIA SEM PAPEL

Tiago Cfer

1º MUTAÇÕES DA ESCRITA NA ÉPOCA DO VAMPIRISMO PORNOGRÁFICO - EXISTÊNCIA SEM PAPEL1



Tiago Cfer é escritor, pesquisador e tradutor. Seu ensaio

Desabrigo-mundo: Narrativa Século XXI será publicado em 2022.



O que se toma por relação ou dualidade de

princípios é, de fato, alastramento do ser, que

é mais que unidade e mais que identidade; o devir

é uma dimensão do ser, e não o que lhe advém

segundo uma sucessão que seria sofrida por um

ser primitivamente dado e substancial.

(Gilbert Simondon)



É quando o espectador desconfia de si. Feito o viciado que desperta de sua narcose, a figura ensimesmada pressente: demônios e vampiros não são os outros, mas linguagens, actantes que impõem regras e manias de todos os tipos à sua própria existência. Introjetados nas bases do corpo social, esses vírus disseminam a ideia epidêmica de que a espécie humana guerreia e se reúne para conquistar uma unidade que garantiria sua conservação.

Lábios de sangue (1975), de Jean Rollin

A fonte capital do indivíduo financeirizado – estágio mais avançado da febre civilizacional – é o sangue, a seiva da vida. Por mais abstrata que possa parecer, essa frase diz algo sobre os efeitos da lógica geral das economias de consumição, despesa e endividamento característica das culturas ocidentais. Sobretudo quando acrescentada aos dados de que a pornografia protagoniza a indústria cultural desde os anos 1970, e também o tráfico internacional, sendo o vampirismo provavelmente o gênero mais explorado pelo cinema ao longo do século XX.

Num mundo em que governanças sustentam-se com o pânico coletivo, políticas de prevenção/interdição dependem do exemplo da morte e da miséria produzidas por essas próprias políticas para dar lições e decretar intervenções que mais lhes convêm, num círculo vicioso cujo diâmetro se perde na linha do horizonte, os caminhos para a arte e o pensamento só podem se dar para fora dos conceitos fundamentais com os quais até o momento representou-se o sujeito político, dos quadros sociais predominantes que estes conceitos constituem. Eles despontam dos olhos furtivos de um espectador que observa as imagens da realidade à medida que – por estranhamento – deixa de lhes pertencer. É dos olhos intempestivos dessa figura em desajuste com seu próprio tempo, espécie de espectro vivendo entretempos, que surgem os primeiros reflexos da vida que virá.

Os papeis do espectador, entretanto, se mantém bem regulados às variações do consumo em séries ininterruptas de histórias, narrativas, ficções advindas de uma hiper-realidade acelerada, numerosa em situações e jogos modeladores. Exausto com o fluxo de imagens, mensagens e informações ao qual é convocado a responder dia após dia; desiludido com a capacidade de mudar o ritmo e o teor desse fluxo padronizador de decisões coletivas, sempre sob o influxo de uma overdose contínua, ele cede ao status que programadores de redes sociais, designers algorítmicos e vigilantes de dados lhe reservam, como se ainda concedessem para ele um último e exclusivo papel no espetáculo da vida: o de consumidor pornográfico, telespectador masturbatório.

Tomado pela sede de devoração/colonização do corpo e da mente coletivos, imerso em uma aldeia global anômala que perdeu os gestos e a música que deram ritmo ao que foi compreendido como civilização ocidental, o espectador, desconfiado de seu estado, deseja subverter a desobediência pacifista que revolucionou o século passado: “Vocês podem até tirar o meu cadáver, mas jamais deterão meus gestos.”

Ele atravessou a guerra contra os órgãos. Agora, é o combate por um gesto no teatro de fantasmas que predica seu desespero. Debate-se por forças capazes de transtornar o instante de sua aparição – sempre programado, registrado, tornado imagem de um mesmo filme de horror indelével que constitui a realidade. Esforça-se por um gesto em fuga das lentes que vasculham e exploram minimamente o oceano informe ao qual foi lançado.

Na vida tornada cinema (depois) da crueldade, a desconfiança ainda cumpre um papel vital para o espectador. Exausto, o consumidor de pornografia desperta numa vontade louca de dar forma à sua indignação diluída em pixels, imagens de mundo, álcoois. A via contra-efetuadora de seu estado se abre desse pressentimento antigo, presente de modo embrionário na filosofia de Descartes2, e que na segunda metade do século XIX ganha o contorno de uma desconfiança existencial radical com a literatura de Dostoiévski (“Observava os rostos dos mortos com cuidado, sem confiar em minha impressionabilidade”3), abrindo veios para uma existência extremada, examinada e experimentada numa ciência em absoluto desabrigo, movida por uma obsessão sexual pelas formas de leituras e escrituras do mundo, tal como ocorre com a filosofia de Kierkegaard, Emil Cioran, e que nos anos 1950 define de um certo modo o homem revoltado de Camus, dessa suspeita rescaldada que se metamorfoseia ao longo da história, o espectador imagina ser possível esboçar um modo de existência espectral desenganado com as desgastadas figurações apocalípticas da ação humana. Sua conjectura, ao invés de corroborar a indiferença ou o cinismo vigentes, ensaia uma liberação da ira, uma desdoma da revolta contra o atual estado de hipnose e afobação cotidiano.


O processo (1962), de Orson Welles


SEM PAPEL

O governo do Estado pretende subir sua papelada burocrática – cidades de arquivos – para as nuvens. ESTADO SEM PAPEL é o nome do portal. Isso significa que documentos vão para a reciclagem enquanto governos migram para a virtualidade. Reciclagem seria o disfarce ecologicamente correto para os autos de incineração passados?


Papel-máquina

Em certa medida “já somos todos ‘sem documento’ (...) triturados por tantas máquinas no instante em que alguns se apressam em proclamar o fim de uma história ordenada não apenas pela autoridade do livro, mas também pela economia do papel”, escreve Derrida em “As máquinas e o ‘sem-documento’”, abertura de Papel-máquina. Em seguida, apresenta as questões que orientam este livro: “o que se passa? O que tem lugar, justamente, entre o papel e a máquina? Qual a nova experiência do ter-lugar? Qual é o destino de um acontecimento? Qual é o destino do seu arquivo quando o mundo do papel (o mundo feito de papel ou que a globalização deve ainda ao papel) se vê submetido a tantas novas máquinas de virtualizar? Há acontecimento virtual? Arquivo virtual? Seria isso tão novo? Uma “cena da escrita”, inédita, ou um outro “mal de arquivo”? O que isso nos faz pensar da relação entre o ato, o atual, o possível e o impossível? O acontecimento e o fantasma, ou o espectral? A favor de que novos direitos? A favor de que nova interpretação do “político”?”4


Fuga manifesta

Um espectro ronda o planeta, é o espectro do refugiado5. Não se trata de um paradigma, mas de um modo de vida. Ou ainda, de um modo de ser-atrás-da-vida. Se não está nas embarcações ou marchas em fuga de um território ameaçador, nos êxodos por uma terra habitável, o espectador assiste nas telas de sua residência provisória migrações planetárias, degelos, guerras e deslocamentos por todo o globo. Ele passa os dias exposto às ondas e radiações mais violentas que o mundo já assistiu ao vivo.


Gesto

Agamben diz que o cinema é o sonho de um gesto. No filme de Abel Ferrara, The Addiction (1995), o espectador vê escapar das vampirizações existenciais do universo acadêmico uma fórmula luminosa: “Para olhar o que seremos no final, ficamos diante da luz, e nossa verdadeira natureza é revelada. A autorrevelação é a aniquilação do próprio ego.”

O filme continua sua ação no espectro – espectador revelado. Vaga pela Terra tomada por multidões. Migrações de indivíduos desolados carregam suas próprias sombras.

Quais os gestos dos que se retiram, dos que ainda não foram completamente capturados pela televigilância? Como a vida em fuga de Estados apodrecidos se constitui materialmente? O que vem à luz com o êxodo sem papel que acontece bem agora? Em que lugar você está?

(continua)

NOTAS

1 Esse texto surgiu após o encontro “Depois de 2020: Vida/Arte/Política” organizado por Mauricio Salles Vasconcelos. Participei, ao lado de Georgette Fadel, Luis Serguilha e Tiago Mata Machado, dessa conversa que partiu do ano de 2020 como baliza retrospectiva e prospectiva para a arte, política, vida. Tiago, cineasta, curador e crítico de cinema, trouxe para o diálogo, num viés agambeniano, o “lugar do refugiado” como paradigma para se pensar a política de agora em diante. Daí me veio o pretexto para o presente ensaio. A gravação do encontro está disponível neste link: https://www.lapislaboratorio.site/encontros/depois-de-2020-vidaartepol%C3%ADtica

2 Ensaios e anotações do jovem Descartes demonstram preocupações com “vestir uma máscara, uma persona” (noções que orbitam o Larvatus Prodeo), traçam a imagem de um ergo larvatus, sum larvatus antecipador do cogito. Cf. o ensaio de David Wills, “Automatic Life, So Life: Descartes”, presente no livro Inanimation – Theories of Inorganic Life. Minneapolis: University of Minnesota. Press, 2016.

3 “Bobók” in DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Diário de um escritor (1873) – Meia carta de um sujeito. Trad. Moissei e Daniela Mountain. São Paulo: Editora Hedra, 2016, p. 88.

4 DERRIDA, Jacques. Papel-máquina. Tradução de Evando Nascimento. São Paulo: Estação Liberdade, 2004, p. 14.

5 Em “Para além dos direitos do homem”, Agamben considera que “o refugiado é, talvez, a única figura pensável do povo no nosso tempo e, ao menos até quando não for realizado o processo de dissolução do Estado-nação e da sua soberania, a única categoria na qual é hoje permitido entrever as formas e os limites de uma comunidade política por vir”. Cf. AGAMBEN, Giorgio. Meios sem fim: notas sobre a política. Tradução de Davi Pessoa Carneiro. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2015, p. 24.