ELE

ARTE COMO DISPOSITIVO DE FECUNDAR NOVAS REALIDADES

Níke Victorino Krepischi dos Santos – Estudante de Artes Visuais na USP. Artista interessada na produção de estética e pensamento a partir do corpo com seus múltiplos relevos e leituras topográficas.





Pretendo neste texto discorrer um pouco sobre a importância das artes visuais e das linguagens poéticas para a visibilidade de corpos, das histórias epistemes trans e a potência de propostas que colocam em xeque as estruturas cisheteronormativas que fundamentam a sociedade em que vivemos.

Aqui penso a arte como uma linha de fuga daquilo que organiza a realidade e os discursos que a estruturam, como uma expressão que escapa do ensejo racional reorganizando outras áreas da percepção e fecundando outras possibilidades de mundo. Para isso, vou me debruçar sobre peça ELE, criada por Oliver Olívia, uma pessoa não binária transmasculina, performada pelo mesmo e por seu companheiro Lucas Miyazaki, um homem cisgênero. Uma peça que aborda os ecos e tensionamentos que a transição do Oliver gerou dentro da relação deles e a negociação de conceitos como identidade e masculinidade.

Acho importante mencionar ainda que este será um texto contaminado, com uma escrita afetada, nem um pouco dissociada do meu corpo travesti ou das minhas experiências pessoais. Inclusive, é justamente delas que eu parto para me aprofundar teoricamente na proposta do ensaio. Nas palavras de Sofia Favero, que será retomada mais adiante, “...a neutralidade não nos cabe. Pois sim, a escrita tem sentimentos. Sim, o texto é corporificado.” (FAVERO, 2020: 19).

Entrei em contato com a peça ELE em 2022, por ocasião da mostra de trabalhos de teatro e performance “FarOFFa do Processo”, quando recebi um convite do Oliver que era monitor de uma disciplina na qual havia me matriculado no departamento de artes cênicas. O trabalho acontecia em uma sala pequena da Oficina Cultural Oswald de Andrade. As grandes janelas que iluminavam o espaço haviam sido cobertas por uma grossa cortina preta vedando toda entrada de luz e ar fresco. Uma projeção em branco iluminando a parede – também branca – do fundo da sala e mais algum fresnel de luz difusa compunham uma atmosfera fechada e intimista, juntamente com o espaço de ação no mesmo nível do público. As portas e janelas fechadas naquele quarto apertado de luz branca difusa eram a condição de acesso à intimidade de Lucas e Oliver.

Lucas entra em cena e realiza uma série de exercícios físicos até começar a suar. Em seguida, Oliver caminha em direção a ele e ambos começam a se esfregar, o que, enquanto uma travesti que se relacionou majoritariamente com mulheres cisgêneras ao longo da vida, me tocou como uma tentativa desesperada e sufocante, na medida em que é falha de se apropriar da masculinidade que aquele corpo cisgênero parece possuir de forma tão legítima. Um esforço de se apropriar das moléculas de testosterona que aquele corpo expele através do suor na tentativa de hackear biocódigos e absorver essa masculinidade por vias cutâneas.

Esse momento evolui para uma pegação muito violenta e ofegante e um sexo bem explícito no qual Lucas penetra Oliver com seus dedos até seu orgasmo. A cena congela, as pernas de Oliver estão abertas voltadas ao público e Lucas está sobre ele. Resta suor, respiração pesada e uma frase projetada na parede: “Acho que aqui é um bom lugar para começar”. E de fato, que começo. Somos de súbito implicades naquela relação e na discussão de gênero que a atravessa. Para mim, um começo angustiante, onde tesão e disforia, angústia e prazer explodem expondo a ferida sem enrolação. Até agora, existem duas masculinidade em cena, mas ainda sentimos que uma veio antes da outra, uma possui certo domínio legítimo sobre seus códigos, que é a masculinidade cisgênera, enquanto a masculinidade trans não binária de Oli é a cópia, a tentativa mimética de apropriação daquilo que aparentemente Lucas possui.

A peça continua e ambos os performers atravessam cenas que aos poucos dissolvem essa imagem inicial, a ideia de que há uma essência masculina, uma masculinidade original ou mitos como “nascer no corpo errado”. Essas próximas cenas se aproximam muito daquilo que conceitualmente ficou conhecido como programa performativo nas artes plásticas, no qual “um conjunto de ações previamente estipuladas, claramente articuladas e conceitualmente polidas” é ativado enquanto motor de uma experimentação” (FABIÃO, p.4). Cada cena tem uma ação clara, uma “regra de jogo”, para criar certa imagem e experiência. Uma das cenas mais fortes começa com os performers colocando no centro do espaço de ação um balde com água, um sabão de coco, uma toalha e duas giletes. Nessa parte da peça ambos se vestem com uma calça de alfaiataria, camisa social branca e paletó, mas ainda descalços e com os primeiros botões da camisa abertos para manter o tom íntimo e informal. É quase como se estivéssemos dentro da casa de Oli e Lucas assistindo a uma série de experimentos e investigações sobre como incorporar esse masculino enquanto constructo social. Essa apresentação já enuncia o princípio das próximas ações que ocorrerão até o final da peça, o espelhamento. Ambos se ajoelham frente a frente, Oliver molha o sabão na água do balde e esfrega no rosto do Lucas na região da barba. Em seguida, Lucas faz o mesmo com Oliver e erguendo uma das pernas, ainda mantendo um dos joelhos no chão, eles começam a barbear um ao outro. Essa cena extremamente linda e terna já nos desloca daquela colocada inicialmente. Aqui, não vemos uma relação unilateral, onde Lucas ensina Oliver a se barbear, mas uma relação de troca. Um aprende a fazer a barba do outro, um aprende com a masculinidade do outro. Essa imagem subverte a própria estrutura de pensamento cissexista que deslegitima nossos corpos e vivências nos colocando como um Outro a partir de um referencial de “normalidade” cisgênero. Aqui não há esse referencial, pois ambos são subjetividade e alteridade, ambos são detentores de um conhecimento sem hierarquias epistemológicas.

Duas cenas ainda mais radicais chamam atenção. Na primeira, os performers se utilizam do mesmo sabão e água para deixar as mãos escorregadias, sentam-se de pernas abertas, com o mesmo paletó, calça e camisa, posicionam um dildo sobre a virilha e começam a masturbar-se rapidamente. Ao mesmo tempo que a cena é apreendida como um clássico do repertório de imagens da masculinidade cisgênera, a masturbação de uma prótese e a simulação dos efeitos habitualmente associados ao orgasmo ataca esse imaginário do prazer cisheteronormativo como uma contraprodução de prazer, enquanto prática contrassexual que subverte a noção de masculino. Segundo Paul B. Preciado, no “Manifesto Contrassexual” (2000), o dildo é disruptivo

porque mostra que a masculinidade está, tanto quanto a feminilidade, sujeita às tecnologias sociais e políticas de construção e de controle. O dildo é o primeiro indicador da plasticidade sexual do corpo e da possível modificação prostética de seu contorno. (PRECIADO, 2014: 78)


Essa cena vai, portanto, além de reiterar um velho código da masculinidade cisgênera, pois, ao contrário, debocha deste código com a introdução do dildo ao sugerir que ele é tão artificial quanto um objeto de plástico. O dildo aqui ainda faz alusão ao packer, objeto utilizado por muitas pessoas trans-masculinas. Sendo assim, a construção da masculinidade passa a ser atravessada por experiências específicas de uma masculinidade transviada.

A segunda cena que quero agora mencionar radicaliza o que já foi enunciado na cena da masturbação com os dildos. Ela é a última imagem da peça. Oli e Lucas estão sentados em cadeiras voltadas para a frente da plateia com uma caixa transparente de plástico no colo. De dentro dela tiram um algodão e o molham em álcool para esterilizar a parte externa de um dos braços. Tiram em seguida uma seringa e uma ampola e, após um tempo de preparação bem confuso para o público, eles aplicam em si o que quer que estivesse dentro daquele frasco. A cena, eventualmente apelidada de “plot twist queer” por Oli e Lucas. É bem chocante e nos deixa meio atordoades.

Se ambos os corpos já trocavam entre si formas de performar gênero, isso é levado às últimas consequências nessa cena, na qual a alusão à administração de testosterona sugere a possibilidade de moldar não somente comportamentos, mas a própria composição química do corpo como meio de acessar a masculinidade. Aquele desejo enunciado na primeira cena de se apropriar da molécula da testosterona se concretiza, mas não como conformação aos modelos pré-ditados com os quais convivemos diariamente, mas como possibilidade de construção de uma nova existência generificada.

O que mais impressiona é o espelhamento da ação por Lucas, que não parece injetar a testosterona por qualquer outro motivo que não seja o mesmo de Oliver. Agora é o corpo trans que estabelece um código. A cena criada, aponta o dedo para a fragilidade do sistema ideológico binário homem/mulher, não somente porque um corpo com vagina se apropria dos códigos da masculinidade experimentando na prática o caráter performativo, teatral, biotecnológico, ou se quiser, ficcional do gênero, mas também porque esse corpo com vagina contamina o corpo cisgênero masculino também. A masculinidade nessa relação vira uma espécie de jogo de “o mestre mandou”, no qual cada rodada um participante contamina os demais jogadores com uma instrução, um código a ser emulado. Vemos que a masculinidade não é possuída por ninguém, ela é um código aberto e mutável, que se constrói culturalmente, que só adquire sentido em dinâmicas sociais e coletivas, mas que também pode ser reeditada a partir de quem a incorpora e corporifica. Não se sabe distinguir mais quem é a matriz e quem é a impressão, quem é a versão original ou a pirateada, ou sequer se já houve uma versão original uma vez que a masculinidade é uma ficção produzida artificialmente através de comportamentos reiterados (performatividade) e, como defende Preciado, farmacológicos e audiovisuais (farmacopornismo).

Esse deslocamento das estruturas de raciocínio é algo característico na produção de pensamento de pessoas trans, uma vez que esse lugar situado, esse marcador da diferença, nos coloca em uma dimensão específica de onde se enxergam as contradições da ideologia cisgênera e binária ou de onde ao menos se percebe a existência de uma ideologia cisgênera binária. Segundo Viviane Vergueiro, o deslocamento fundamental a ser feito antes de qualquer coisa quando discutimos gênero é nomear a cisgeneridade, pois tanto se fala da dissidência, dos corpos não normativas, sem refletir sobre a “normalidade e os dispositivos de poder que produzem sua naturalização" (VERGUEIRO, 2022: 252). A produção de pessoas trans, portanto, não somente vai revelar uma normatividade arbitrária de uma cisnorma, como vai questionar os pilares que a estruturam.


Essa peça poderia ser colocada como um exercício de pajubar a arte. Tomo aqui a liberdade para flexionar o termo “pajubar a ética” proposto por Sofia Favero ao defender a subjetivação dos conhecimentos e das pesquisas acadêmicas, reconhecendo “as cosmogonias da travestilidade como esquemas específicos de apreensão de mundo” (p.18). É um exemplo de quando epistemologias trans reorganizam as percepções de gênero e arte com toda a potência que já está calcada na própria etmologia da palavra “trans”: segundo Amara Moira em “O cis pelo trans” (2017), aquilo que cruza, que transpassa.

Essa reorganização das percepções e da sensibilidade tem a potência de reverberar em estruturas reais fora daquele quarto apertado, com porta e janelas fechadas e luz branca difusa. As imagens poéticas possuem essa peculiar característica de esboçar mundos melhores possíveis, que uma vez criados, proliferam nosso imaginário. De fato, fecundam novas formas de pensar e existir no mundo.

Quando Jota Mombaça fala do seu interesse na produção artística, ela aponta o seguinte:

Quero romper o monopólio e imposição da representação como elemento estruturante das nossas equações éticas, dos nossos princípios sensoriais, do modo como a gente sente as coisas, do modo como a gente se relaciona... Então assim, estou particularmente interessada com a ruptura com a representação. De alguma forma ganhando consciência e consistência nesse exercício de romper com o domínio, a imposição ou a violência da representação

(Transcrição livre de sua fala para a 34º Bienal de São Paulo).


Ela, portanto, se interessa na produção artística como meio de criar outras representações, proporcionar novos enquadramentos, novos horizontes. Ou até mesmo, como coloca Conceição Evaristo em uma mesa que dividiu com Mombaça na plataforma do festival WOW: enunciar saídas, acender esperanças e fecundar novas realidades.



Acho que a potência dessa peça é a de esboçar novos mundos possíveis através de uma perspectiva trans. Esboçar relações de aliança entre pessoas cis e trans que reconheçam a diferença sem uma hierarquia, que legitime a identidade de pessoas trans, que dissolva noções de essencialismo e binariedade transfóbicas, dando a liberdade para que todes se apropriem dos códigos de gênero, esgarçando seus roteiros normativos até que eles não existam mais. É, de certa maneira, um convite para brincar nas cenas da arte e da vida sem mais divisas.




Referências:


BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Tradução de Renato Aguiar. Rio de janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

FABIÃO, Eleonora. “Programa Performativo: o corpo-em-experiência”. Revista Ilinx, Campinas, Universidade Estadual de Campinas, n. 4, p. 1-11, dez. 2013. Disponível em: <http://www.cocen.rei.unicamp.br/revistadigital/index.php/lume/article/view/276 >. Acesso em: 17 jul. 2022.

FAVERO, Sofia. “Por uma ética pajubariana: a potência epistemológica das travestis intelectuais”. Equatorial – Revista do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, [S. l.], v. 7, n. 12, p. 1–22, 2020. Disponível em:

<https://periodicos.ufrn.br/equatorial/article/view/18520>. Acesso em: 16 jul. 2022.

MOMBAÇA, Jota. Não vão nos matar agora. Rio de Janeiro: Cobogó, 2021.

PRECIADO, Paul B. Testo junkie: sexo, drogas e biopolítica na era farmacopornográfica Tradução de Maria Paula Gurgel Ribeiro. São Paulo: N-1 Edições, 2018b.

PRECIADO, Paul B. Manifesto Contrassexual. Políticas subversivas de identidade sexual. São Paulo: n-1 edições, 2014.

VERGUEIRO, Viviane. “Pensando a cisgeneridade como crítica decolonial”. In: MESSEDER, S., CASTRO, M.G., and MOUTINHO, L., orgs. Enlaçando sexualidades: uma tessitura interdisciplinar no reino das sexualidades e das relações de gênero. Salvador: EDUFBA, 2016, pp. 249-270. Disponível em: <https://doi.org/10.7476/9788523218669.0014>. Acesso em 17 de jul. 2022.

“Festival WOW Online | Territórios de Partilha: como as poéticas podem criar novos mundos”. Festival mulheres do mundo WOW. YouTube. 2021. 1º20’60’’. Disponível em; <https://www.youtube.com/watch?v=EllUCvl9rw8&t=3385s>. Acesso em 17 de jul. 2022.

#34bienal (Entrevista/Interview) Jota Mombaça”. Bienal de São Paulo. YouTube. 2021. 9’15’’. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=DSJR-Jg5xbo>. Acesso em 17 de jul. 2022.