ISABEL CÂMARA–TEATRO-DE-CÂMARA/O BEIJO FINAL

(Mauricio Salles Vasconcelos)



ISABEL CÂMARA –

TEATRO-DE-CÂMARA/O BEIJO FINAL


Mauricio Salles Vasconcelos

Escritor. Seu livro mais recente, Desde os anos 2000 (Minha Vida), foi lançado no final de 2020. Reproduz-se aqui um trecho de sua peça inédita sobre a poesia e a vida de Isabel Câmara (1940-2006), dramaturga premiada com As moças: O beijo final (1970).



Uma Poeta – (Lê texto de Isabel Câmara)

Lençóis

Aos domingos se vai ao longe. . .

Lavam-se panos brancos e os

denominamos roupas de cama:

Roupas de baixo

Roupas de cima –

Coisas da Casa

Aos Domingos todos se cansam cedo:

há enlaces matutinos

e muitos hinos.

Aos domingos há missa, música

entreveros. Há quem chore

nalguma hora e há também

possibilidades novas:

Há pares, bares, porres.

Aos domingos semeiam

as lavadeiras

seus azuis/brancos lençóis

lúcidos dos dias de semana.

Para elas lençóis

Prata da Casa

Lençóis louça de Porcelana


Um Poeta (Ele analisa, num ato-repente, o poema de Isabel Câmara)

Texto a ser dito em cena (não escrito antes). Criação em ato. Uma poeta ao seu lado, também, participa dessa análise conjunta. Depois entra em cena uma espectadora até então sentada na plateia.


Espectadora (Em complemento à fala, em impromptum, do Poeta) –

Elas (mulheres sem rosto, ao fundo de tudo) conversam, em voz despregada. Nada faz tanto elo. É o que parece dizer o trecho da poeta que eu não conhecia, Isabel Câmara.


Uma Poeta –

O foco é dado para as mulheres do cotidiano mais miúdo. Elas estão ao fundo, quero dizer: dentro das coisas. Ao fim de cada dia. As trabalhadoras, as forças vivas que fazem a tarde, o dia de todos pelo meio. Justo quando estão de retorno pra casa e fazem o enxame do fim-de-expediente, o chamado trânsito dos humanos.


Um Poeta –

Belezas entre ferragens de condução, café coado no centro das horas: uma sábia filtragem das coisas vivas, desde sempre despercebidas. Através de varizes. Vultos com cabelos no ar, estamparias do que estão vestindo. Trabalhadoras ou mulheres aos montes. As multidões se erguem.


Uma Poeta –

Variantes de uma conversa única, aquela que de fato interessa e se faz sinuosa ante tamanha violência muda e nascimento espontâneo logo esvaído. (Enfermagem, escrita, lavanderia). Algo vindo de fonte certeira, porém dispersa. De onde surge tudo e não seca. Que nem uma torrente. Sem cessar.


Espectadora –

Lençóis...uma levitação de pessoas vivas, antes paralisadas pelo trabalho numa Clínica. Surge aí uma celebração: o avesso da dor de quem está internado. Ao contrário do ofício rotineiro de cuidados hospitalares, da lavagem de roupa e de todas as coisas (um exercício igual a existir). Aos domingos, um dia e um poema que não terminam.


Um Poeta –

Até hoje é um poema forte, um dos grandes desde os anos 1970. Também é indício de combate individual e beijo coletivo. Em vez do mero exercício de um ofício: o avesso absoluto, a celebração. As mulheres menos vistas tomam o primeiro plano.


Uma Poeta –

Combate e beijo. Ao mesmo tempo. De frente, ao fundo das coisas diárias (entre dor e trabalho), dadas como miúdas, levadas pela corrente cotidiana, para sempre esquecidas.

(Surgem, então, a Faxineira e a Enfermeira, metamorfoseadas dos corpos da Poeta e da Espectadora. São desdobramentos dos personagens em cena. A poeta se torna uma faxineira, trazendo um lençol à mão. A espectadora passa a ser a enfermeira)

(Elas materializam o gestual que caracteriza suas funções. O que ocorre através de movimentos de arrumação de roupa e lavagem por parte da faxineira e por meio da organização de uma caixa de remédios, da preparação de uma seringa, como atua a enfermeira).

(Após um primeiro momento de aparição/apresentação, elas dizem em dueto um poema de Isabel Câmara)


FAXINEIRA –

Hora sagrada

Te espero.

Sob o travesseiro


ENFERMEIRA –

A tesoura segura

o Ouro

o Trigo

o abraço ligeiro

de quem tem cheiro

das coisas pagãs


FAXINEIRA –

Anãs sob o linho fino

o vinho rastreiro.

Faço a feira

vivo beirando a beira

da Orgia

que pia, escorrega


FAXINEIRA E ENFERMEIRA –

Cortando ligeira

a noite do dia que me alivia.

E aí só cria

meu mundo de fantasia

Agora vê se não chia

Você não é minha tia.


(Cada uma delas diz para a outra, em repetição. De uma voz a outra)

Agora vê se não chia/Você não é minha tia


ISABEL (Deitada num divã, que pode tanto ser suporte psicanalítico como cama-de-casal, dividida com sua esposa, Claude, uma psicanalista)

Agora vê se não chia. Você não é minha tia.


CLAUDE (Sentada ao lado, como se guardasse seu repouso)

O que você me diz, não vou escutar como resposta. É digno de atenção sílaba a sílaba, de um ponto a outro de sua respiração.

Não é resposta, mas respiração. (Sôfrega sempre, acrescento).

Embora seja o que você pensa, não houve tempo pra você pensar realmente após ter lançado nosso guarda-roupa pela janela do prédio. Simplesmente porque em nossa discussão de vida-em-comum, eu disse: Tem horas que você não pensa.

Não pensa em nada. Nem em mim. Muito menos em você.

Nem pensada você é.

Daí seu susto. Uma palavra que vem num chiado e me coloca no lugar de “tia”.


“Tia velha”, é isso?

É você mesma quem pensa esse lugar?

É assim que você pensa nosso lugar, uma mulher ao lado de outra?

(Pausa)

Onde fica sua vida nisso?

Minha função, de fato, nessa vida é a de exercer atividade de psicanalista. Mas é você quem busca um lugar de paciente. Na cama, ao seu lado, eu sou uma louca sem repouso.

Não tenho nada a dizer, quando você mesma busca ocupar a cena de um filme surreal. Um armário das roupas de uma mulher com outra mulher foi atirado pela janela. Nem vem me dizer que é ato impensado!


Você quer salvar sua fala real, o diálogo brutal dia a dia comigo, através das Palavras de um Poema?

Através das Palavras de um Poema para que perdure sua vida, seu fio de razão, nossa história dia a dia esvaída?

Só que: bruto guarda-roupa janela afora nada explica.

Você nada explica?

(Ausência de réplica)

(Instala-se entre elas um vazio a imprimir sua angustiante duração no palco)


Nada explica.

Nada explica.

(Depois de se remoer em seu solilóquio, ela dá pausa)


...Como se nossa vida estivesse chegando ao fim...


...Depois do seu ato – e desse seu silêncio prolongado – nada mais falta para o salto no abismo...


(Claude se posiciona, em face de Isabel, cara a cara – um rosto por cima do outro, uma de pé e a outra deitada, enrodilhada em seu silêncio)


...Como se nossa vida tivesse ao fundo e no fim um Poema...



Tetê Medina

Atriz da primeira montagem de As Moças

(direção de Ivan de Albuquerque, 1970), em uma foto da época