RUI BUETI – PIÔ,

UM LIVRO/UM POEMA

Sobre este imponente poeta angolano pouco se sabe depois do lançamento de Piô (1978). Logo após a Independência de seu país, o autor inscreve em seu livro uma convocação provocativa aos princípios da revolução em face do jugo colonial português.

Ao destacar, no título do extenso e impactante poema aqui publicado na íntegra, a data – 4 de fevereiro de 1961 – em que se deflagrou um decisivo sinal de mutação nas estratégias de luta no contexto insurrecional africano – quando do início da Luta Armada da Libertação Nacional de Angola (a contar do ataque à Cadeia de São Paulo e à Casa de Reclusão, em Luanda, para libertação de presos políticos comprometidos com o ativismo descolonizador já em marcha) –, Bueti realiza também uma revolução de linguagem. Uma dimensão de combate e poeticidade até agora ressoa num registro único, alargado por perspectivas sintonizadas com a natureza, as tradições modernas, as mais avançadas, de arte no mundo (do campo visual ao cinema) e a cultura enraizada nos territórios de Angola. Uma linha de feminização e telurismo se aciona no texto, num pacto planetário, a envolver com potência disseminante a incisão da negritude e de um africanismo multifacetado, dotada de vasta voltagem percussiva em nossa contemporaneidade.

“Regresso Fevereiro, 4” (poema-chave da única obra, ao que parece, publicada por RB) produz dissonância com certos padrões praticados exaustivamente na literatura africana de língua portuguesa. Poucas vezes, no sempre esgarçado espaço literário, incapaz de conter tão somente uma especificidade e um localismo monovalentes, um epos afro se traçou de modo tão abrangente quanto experimental, consonante com os rumos multiculturais e heterodoxos do presente –

Para lá do intercâmbio regulador dos sistemas de valores advindos com a globalização (os da literatura, inclusos), regrado por pautas – rescaldos dos ideologemas do Século XX – representativamente estanques. Mostra-se já em dissídio com tudo o que hoje se orienta por ditames identitários, por modelos de politização, paralisantes projetos de tomada de um poder sempre centralizador, em seu falso movimento favorável a “diversidades”.

Em lugar dos circuitos circulares travados de forma dicotômica na restituição da memória colonial e nas planificações críticas do pós-colonialismo, o criador de Piô incita o solo libertário de onde emergiu a luta destronadora do poder subjugador de todo um continente. E o faz com o chamado à figura do piô – pioneiro – a criança como signo revôlto ante as disputas locais de política e as participações mundiais em conflagrações que conduziram Angola a uma longa Guerra Civil (desde 1975, ano de sua independência, até 2002). O poeta se posiciona, então, no contrafluxo de um conflito movido por frentes e coalisões características da Guerra Fria, encampadas pelos dois ex-movimentos de guerrilha anticolonial ali presentes (o comunista MPLA em confrontação com a UNITA, aliado dos Estados Unidos e do regime sul-africano de apartheid)

Vibra, nesse exemplo vivo do que pode a literatura antes e depois da revolução, uma estética imageticamente rica e conceitualmente amplificada. Pois aponta para a força conjugadora de fatores que fazem de escrita e historicidade, desejo de arte e insurreição, um compósito pulsante de elementos em plena emergência.


Mauricio Salles Vasconcelos



REGRESSO FEVEREIRO, 4


Regressei pela polpa da esperança

percorrendo a alegria e o tumor exangue larvado no

[córtex

por tantas e tantas harpas em melodias de visco

[pelos asfaltos.

Regressei pela ternura e pelo aziago

Esgravinhei as alternativas negadas

amassadas como estrume úmido

algures no meio do húmus

e fui-me sem assinalar com sinais claros e indeléveis

as veredas que assombram a verdade

reconforto sombrio da dúvida.

Regressei pela tenaz tessitura da solidão em torno

emaranhado pela tentação das coxas miúdas

na espuma das maçãs

acordei espantado uma manhã e descobri a minha

[vocação demiúrgica e coletiva

e quando pássaros cantarolaram com o musgo das

[urnas adornando as asas

então a minha companheira feita de inverno

[e subitaneidade

disse: - senti medo. Regressei pelas ondas

[aciduladas da esperança

vim de um frio esquecido e inóspito

atribulado pelas incertezas das escamas

que refratam os bosques solitários.

Vim de um longínquo temor pela solidão estrangeira

regressei pela amálgama das repentinas certezas

[em erupção

lutei, antes pelas fundas congostas

dos desastres anunciados que pelo físico e pelo

[geográfico

que nunca me poderiam separar do levante matinal.

Regressei como um destino de morte sabida

mosto azedo nas lágrimas

vim para os asfaltos definidores, a malta

[e os hieráticos

olhavam-se surpreendidos pelas cálidas decisões

[dos atos violentos.

Passei pelo regresso como em busca de um equinócio

tive plantas sazonais espargindo a inquietude

o maruvo escorreu-me pelos lábios

meus camaradas brilharam na aventura

e regressei, passei pelas algas dos fundos marinhos

[ (ainda havia milenares mabangas

escalavradas pela ondulação das maresias

[certas e lunares)

percorri a vibração arquitetônica da harmonia

nos momentos falostéricos

Onde a verticalidade assume o tropo

O mesmo trópico de flamingos rosáceos filigranados

[na crueza das salinas.

Regressei de um périplo estonteante

Vim com certeza de ficar, estilete acerado rompendo

eleito não fui, porém o rego das ladeiras estendidas

[em tapetes de angústia

traçaram o meu destino por entre os milhos

[e as massambalas

(e ninguém me cantará em gesta como os pastores,

[a Mandume).

Regressei coberto de mim espiga vicejante à brisa

[da tarde

emoldurando um quadro de definições únicas como

[o polo dos rebeldes

enruguei a epiderme atafetada de moldes

[cartográficos

assinalando as rotas do monstro sombreado com

[a chispa tardiva

quando falece em tormentos fatais.

Vim de um vagido secular para as águas batismais

para as searas carentes de afagos.

Percorri uma última vez os paleolíticos pedregosos

com vinhas esgrouvinhadas sem comprador

chuvas taciturnas e viúvas férteis

com receios de fetos raquíticos. De tudo que vi e dei

[conta, ficou-me este

[pasmo pelos usos

prudentes. Regressei de um útero ingrato

escapei como um náufrago das noites absurdas

[de gravinhas entorpecentes

salvei meu espanto de lucidez

mergulhei abissal na vereda das várzeas solitárias

esperando que os bafos das amantes me

[sacrificassem o seu ardor multissecular

esgotando a libido polarizada no desejo.

E vim por aí, depois de despertar a última palavras,

[anunciei um rumo

escutei os vagidos dos atônitos bovinos

dei um pulo pela acidez do desgaste

enquanto as ervas asseguravam a sua procriação

[depois do fogo

e a premonição afagava os términos de um surto

[ligeiro antes da derrocada

deixando a polarização das vergastadas

e as indecisões das barricas desacostumadas.

Ulisses! Ulisses! Regressei quando se esperavam

[os guerreiros africanos

atenazados pelos ciclones químicos dos desfolheantes

[made in América

quando as teorias descompassaram as amostras

[das vias quaternárias

e os tições já sabiam que destino cumprir.

Ulisses! Ulisses! As latitudes são feitas para serem

[franqueadas no regresso

quando há pretendentes espalmados sobre a crosta

[da semente germinante

abutres de repasto seguro nas mesas do festim

julgados pelos patriarcas ausentes reunidos

[em conselho

porque nas bordas dos caminhos havia paralelos

[ainda assomados

pela serenidade da reflexão dos arquipélagos

[em exílio

onde o regresso foi elocubrado cem vezes

[ou mil milhões de vezes.

Houve os que procuraram geografias longínquas

marcando de seus passos as marés

olhando o germe cadenciado e absorto

[pela auto-criação

e eram barcos aparelhados, de convés largo e seguro

que sulcavam de cada cais o beijo do adeus deixando

[o sal cristalizado

no rasto derradeiro da palma da mão sobre o aceno.

Regresso que desenhou topograficamente

os destinos numa amostragem das coxas noturnas

[donde fluem

as mais límpidas equações de prazer.

Ulisses! Ulisses! Um mar de arreganhos à procura

[da acuidade

com que os machos perfuram os tormentos

e dos rios aluviados por demais

carregando em enxurradas, os magnificentes barcos

[espantados em bebedeiras

de aprumo, provocadas pelo cestante perturbado

com os cabelos do vento, esquecidos dos turíbulos

[amantes

e revirados os rumos num equívoco atroz como

[quatro cavaleiros

esgotados. A terra à vista na superfície do sólido:

as pegadas profetizadas impregnarão, em breve

[um longo carreiro

o pó e o barro das margens, as eiras certinhas ao fio

[do esmilhar as sementes com os dedos

e já o calado toca baía segura, teremos uma ponte

[de braços em punho

confluindo entre a nossa ansiedade e a prática ansiada

[da dúvida esquecida

e precário é o trespasse do cais

mas NETO chegou na secura de Belas

mareado por vagas decisivas, encalemadas pela fúria

[das tenazes

e de NETO as setas frechadas nos pretendentes

[ilegítimos

fomos executários entusiastas pelo rigor do repúdio.

E DE ULISSES AMBICIONAMOS A COMPANHEIRA

[TENAZ DE PLANOS URDIDOS DE DIA

DESFEITOS, À NOITE, OS CAMINHOS PROCEDENTES

[DO SEXO

AS ÁGUAS MORNAS PELOS INCIDENTES

[TABELATÓRIOS

QUE MARCARAM JUNTO À CERTEZA DOS CAPINS

RENOVANDO A NOSSA UTERINIDADE MATERNA

[NA INVOCAÇÃO CERTA

DO LUGAR REENCONTRADO EM FEVEREIRO, 4