MUTAÇÕES DA ESCRITA NA ÉPOCA DO VAMPIRISMO PORNOGRÁFICO (PARTE 3):

O ROMANCE COMO É

(Tiago Cfer)

3ª MUTAÇÕES DA ESCRITA NA ÉPOCA DO VAMPIRISMO PORNOGRÁFICO - O ROMANCE COMO É


Tiago Cfer, escritor, pesquisador e tradutor.

Seu ensaio Desabrigo-Mundo: Narrativa Século XXI

será publicado em breve.


A política de Beckett está de um certo modo ligada ao fato dele fazer surgir uma narrativa filosófica capaz de reformular a existência humana a partir de suas ruínas, uma narrativa completamente incompreendida e intocada pelo tempo ao qual se apresenta, o pós-guerra. Seu romance-ensaio Como é, desatrelado de toda palavra conforme à informação, notícias e estatísticas de uma mundialização bélico-mercadológica, ao que, de um certo modo, viemos definindo anteriormente neste ensaio como “vampirismo pornográfico” (uma possível característica da política que se consolida na segunda metade do século XX, fundada sobre lógicas e técnicas de guerras e a profusão de culturas de consumo e entretenimento em âmbito global; uma política marcada por crises do projeto transnacionalizado do capital, dissolvida em pactos eminentemente econômicos), insta-se num movimento de escrita descontinuada, espaçada nas mil linhas do instante – cruzamento de eras – em que se enuncia. A teatralização do agora que a escrita romanesca de Beckett realiza – ao mesmo tempo em que ocorre a suposta “morte do romance” – oferece uma variedade de elementos para a filosofia de hoje elaborar seus personagens.

Um corpo ganha contorno à medida que é citado para um narrador que se desloca na lama – “eu o digo como ouço”. Da matéria mais rudimentar, ele parte em viagem arrastada, lenta, entre focos caleidoscópicos de memórias e imagens procedentes de vozes disjuntivas que ditam e disparam sua ação numa “vasta extensão de tempo”. “Antes de Pim, com Pim, depois de Pim”: a vida como ela ocorre, atravessada por uma voz estranha, a “voz quaqua”. É preciso sondar para onde vai este corpo apresentado em três tempos de conjuntos narrativos que se penetram e entrelaçam em curtos parágrafos sem pontuação, dissonâncias verbais, interrupções frasais, falhas conectivas, toda a rede semiótica do romance Como é. Traçar uma espécie de semiografia do corpo espectral que o narrador faz aí avultar.

não importa eu não digo mais vou citando será que sou eu será que sou eu eu não sou mais daquele jeito eles me tiraram isso desta vez tudo que digo é como durar como durar”1


Ele não busca mais uma linguagem em resposta à vida. Profere, a cada vez, sua duração/duplicação. Segue vivendo de sopa primordial, ar e lama, agarrado ao eixo que o mantem na paisagem pantanosa por onde rasteja contínua e lentamente: um saco cheio de latas e um abridor, amarrado por uma corda ao pescoço. Tem-se aí uma máquina literária, um eixo dissipativo. O personagem não sabe se o que vê e ouve vem de seu passado ou de seu futuro. Presença anacrônica distribuída numa “vasta extensão de tempo”, recebe imagens do que se tornará ou do que um dia já foi.


um menino sentado na cama no escuro ou um velho pequeno não consigo ver com sua cabeça entre as mãos seja ela jovem seja ela velha sua cabeça entre suas mãos eu me aproprio deste coração 2


Vindas da memória daquilo que é sabido de cor, procedentes de uma fonte sanguínea, e não de razões sanguinárias, as maquinações personológicas beckettianas figuram uma coleção de gestualidades originárias, funções emergentes, acenos genealógicos. Desligadas da origem, ou são demonstradas em imagens suspensas, crepusculares, quadros incognoscíveis, ou em movimentos sem causalidade, tanto mais violentos quanto mais estranhos e aberrantes. Toda uma gestualidade inumana, animal, proporciona espectro a combinações ainda não exploradas entre as palavras e os corpos. Vasculhações frasais engendram um modo de existência que enuncia-se no que ainda não existe, arriscando-se numa espécie de linguagem que diz somente sua inexistência, ou o que dela escapa, “pois tentar um lugar novo é uma tentação desespero”3.

Embora a ideia de ruptura tenha se tornado norma entre as vanguardas ao longo do século XX, em Samuel Beckett ela ocorre num percurso escritural que talvez esteja entre os mais radicais surgidos entre os anos 1950 e o fim do século. Passando pelo teatro, romance e teatro televisivo, a política de linguagem sempre experimental do autor acompanha, seja de maneira consciente ou não, um programa filosófico como o de Gilbert Simondon, autor pouco publicado até o final dos anos 1980, e ainda por ser muito estudado neste presente século: um meticuloso programa de individuação do “modo de existência dos objetos técnicos”.

O filósofo não compreende a individuação a partir da perspectiva de um indivíduo otimista com o progresso de suas técnicas e invenções, tal como ocorreu de um modo geral com o indivíduo do século XVIII; nem a partir do progresso pessimista e dramático do sujeito que aniquila-se diante dos objetos técnicos quanto mais os inflaciona, segundo uma fórmula genérica para o indivíduo do século XIX; mas no desenrolar de uma ideia de progresso que afirma a natureza humana não como portadora de ferramentas concorrentes das máquinas, e sim como inventora “de objetos técnicos capazes de resolver problemas de compatibilidade entre máquinas num conjunto (...) O homem constrói a significação das trocas de informações entre máquinas. Sua relação adequada com o objeto técnico deve ser apreendida como um acoplamento entre o vivo e o não vivo”4.


Num alto nível de tecnicidade, a escritura de Como é empreende uma comunicação entre vida e morte, orgânico e inorgânico, capaz de levar a noção de sujeito narrativo à dissolução, o que acaba por gerar um jogo de impasses para as convenções narratológicas do romance moderno. A disposição dos parágrafos impõe à leitura um ritmo respiratório próprio, modos de anotação, apreensão, recepção da matéria textual que só acontecem se assumem uma experimentalidade única, singular, ativando assim novas modalidades de conexão, pensamento, escrita, comunicação.

O que confere tamanha complexidade para este romance, além, claro, de uma detalhada estruturação dêitica, é a obstinação do narrador para manter sua história numa espacialidade penumbrosa, espectral, intermediária. Mesmo que o personagem seja colocado em uma situação concreta, a ambientação e os motivos que o levam a seguir em frente compõem um teatro de sombras no qual a ação narrativa não mais encontra esclarecimento. Ao contrário, ocorre sob efeitos de contágios linguísticos, irrupções de memórias e imagens fortuitas, jogos sadomasoquistas que seguem lógicas aberrantes5, desdobrando-se na agonística de uma linguagem empenhada em formalizar a experiência de uma existência sem papel, inexistente, sem abandonar o combate contra as formalidades causais, mas, justamente, mantendo sua expressão em uma linguagem desprovida de ser. Ou uma linguagem flagrante do ser em sua medialidade sem fim, de um vir-a-ser precário, jamais acabado nem completamente controlado.

Se a característica relacional dos seres vivos supõe que a atuação seja transformação, deixa de perdurar no drama da produção diária a insistência desgastante pela definição de espaços fechados e abertos, interior e exterior, dentro e fora. O drama se apresenta na abertura transindividual onde se dão as tessituras fisiológicas, tecnológicas, existenciais em fluxo contínuo. Jamais em discussões por entendimento. A ideia de que uma rede textual complexa imanta e inter-relaciona todos os seres existentes e não existentes entrega ao romance contemporâneo seu papel de mediação e prospecção sem fim da vida.

Assim, Beckett constrói uma escrita transicional que não se deixa enredar pelos impasses, “vampirismos” de sua época. Prepara um terreno fecundo para a literatura e a filosofia à medida que não se atém a criticar ou comentar as cenas do espetáculo que fundamenta a socialidade promovida pelas guerras planetárias iniciadas com as Grandes Guerras, mas em formular uma linguagem com vieses discursivos à altura das anomalias políticas anunciadas pela globalização que se projeta nas embaixadas da Guerra Fria.

e essa voz anônima auto-intitulada quaqua a voz de nós todos que estava fora por todos os lados então em nós quando a ofegação pára bocados e sobras quase inaudível certamente distorcida lá está ela afinal a voz dele que antes de nos ouvir murmurar o que somos nos diz o que somos o melhor que ele pode

dele a quem somos ainda mais devedores por nossas infalíveis rações que nos permitem avançar sem pausa ou descanso 6


A voz narrativa fissura a intimidade de um socius convencional, ditado, noticiado; excede a figura do narrador individualizado – autorreferencial – para encampar uma espécie de palavra de muitos que encontram-se no abandono do que sobra de suas pátrias, sombras errantes atrás de um corpo e uma terra. Talvez uma produção contemporânea à de Beckett no Brasil que melhor exemplifique esse trabalho de literatura em debandada e enunciação coletiva seja a de Campos de Carvalho. É provável que um estudo relacionando os dois autores tenha algo a oferecer para a filosofia de agora em sua elaboração de figuras conceituais capazes de transpor as fronteiras e aporias deste tempo. Algo que provavelmente nos auxiliará a operacionalizar um movimento de escrita vivo, tal como é – o romance e seu modo de seguir em frente.

(continua)


1 BECKETT, Samuel. Como é. Tradução e posfácio Ana Helena Souza. São Paulo: Editora Iluminuras, 2003, p. 22.

2 Ibid., p. 24.

3 Ibid., p. 74.

4 Ibid., p. 41.

5 Veja, por exemplo, a relação física, violenta, do personagem central com Pin através das unhas, lâmina do abridor, pancadas na cabeça e nos rins que consistem em verdadeiros esquemas de movimentos físicos que, repetidos em linguagem, passam a surtir relações entre as palavras capazes de acionar imagens e andamentos completamente inesperados para a trama: “tabela de estímulos básicos um cantar unhas no sovaco dois falar lâmina no cu três parar porrada no crânio quatro mais alto pilão no rim //cinco mais baixo indicador no ânus seis bravo tapa transversal ao cu sete horrível mesmo que três oito ainda o mesmo que um ou dois conforme”, in Beckett, Samuel. Op. cit., p. 80.

6 BECKETT, Samuel. Op. cit., p. 156.


Samuel Beckett e Klaus Herm