Literatura em colisão: (tele)visões


(Felipe Souza)

Literatura em colisão: (tele)visões


por Felipe Souza


(Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Estudos

Comparados/Laboratórios de Criação – Escrita de Literatura e Teoria)


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A TV é irremissível; está sempre ligada, mesmo quando está desligada.

(Avital Ronell. Trauma TV)


Tendo invadido o microcosmo doméstico depois da II Guerra, sendo “servida na travessa da Guerra Fria”, como coloca Avital Ronell (1994, p. 308), a televisão “está ligada de maneira crucial ao enigma da sobrevivência”, reelaborando na tela uma tessitura de “experiências quebradas e memórias redirecionadas”. Nesse contexto, a televisão não age de modo a registrar, mas prefere, de outro modo, “encenar os mitos da vivência, da cor viva e do estar presente”, produzindo assim “uma perspectiva contrafóbica para uma história interrompida”, atuando como “amortecedor de choques para a incompreensibilidade da sobrevivência” (ibid).


Mirage Stage, de Nam June Paik (Foto: Kristina García / Museo Reina Sofia)

David Foster Wallace, tendo em perspectiva a presença do televisivo nos Estados Unidos, dirá que a televisão “identifica, suga e então reapresenta o que imagina que a cultura americana quer ver e ouvir sobre si mesma”, e conclui, “se quisermos saber o que é a normalidade americana – o que os americanos querem ver como normal – podemos confiar na televisão” (1998, p. 151-152). No contexto latino-americano, Martín-Barbero e Rey dialogam com Wallace ao concluírem que a televisão “se converte em uma reivindicação fundamental das comunidades regionais e locais, em sua luta pelo direito à construção de sua própria imagem, que se confunde com o direito à sua memória” (2004, p. 35).


Ao falarem especificamente sobre a telenovela, Martín-Barbero e Rey afirmam que esse tipo de produção “tem a propriedade de revelar a cartografia dos sentimentos tanto como as tensões do social, as propriedades da imaginação cultural como as aspirações secretas e explícitas das pessoas que a acompanham com fervor” (p. 174), mais uma vez nos levando a crer, junto com Avital Ronell e David Foster Wallace, que o estudo da cultura televisiva de um país é bastante revelador de seu ethos, sendo, portanto, matéria muito rica a ser tecida por uma literatura interessada no todo social, o qual é “dado como imagem, em cadeia nacional, atrelado a um pacto comunicacional a envolver ficções e visões de realidade”, conforme apontado por Maurício Salles Vasconcelos.[1]


O vínculo entre literatura e audiovisual encontra apoio em Agustín Fernández Mallo, que chamará a atenção para as redefinições pelas quais passam as narrativas contemporâneas, num contexto de intensa globalização e de alta tecnologia, em que uma literatura unicamente centrada no signo escrito e no suporte livro se expande e torna-se “móvel”, numa inter-relação com outras linguagens e mídias.


A apropriação do discurso televisivo pela literatura encontra grande espaço no contexto brasileiro – nos diz Mauricio Salles Vasconcelos – com seu império de narrativas televisivas e uma literatura por vezes muito constrangida por imperativos mercadológicos ou por legitimações acadêmicas:


Bem assinala o escritor portenho Damián Tabarovski que a literatura reveladora da heterogênea comunidade do nosso tempo se enuncia para fora dos critérios de legitimação defendidos por mercado e universidade, compostos num binômio desprovido de interesse pela experimentação, pelo potencial de acontecimento irrompido da rede pluritópica em que a palavra agora se inscreve (VASCONCELOS, 2012).


A busca por uma literatura que rompa com padrões estabelecidos, circunscrita a critérios de legitimação, também será levantada por César Aira (2007), que chamará a atenção para o acúmulo de obras que nada acrescentam ao que já existe e que apenas aumentam a circulação sem fim de signos, se quisermos fazer um paralelo com o que Baudrillard (1991) diagnostica com relação às imagens na contemporaneidade. Aira argumentará que as obras valem pelo procedimento pela qual foram criadas e que a busca dos artistas precisa residir nisso, se quiserem que suas obras se desassociem da saturação e da esterilidade.


Os grandes artistas do século XX não são os que fizeram obra, mas aqueles que inventaram procedimentos para que a obra se fizesse sozinha, ou não se fizesse. Para que precisamos de obras? Quem quer outro romance, outro quadro, outra sinfonia? Como se já não existissem o bastante! (AIRA, 2007, p. 13).


Autores como Mallo, Aira, José Agrippino de Paula e Valêncio Xavier nos mostram que por vezes é justamente da articulação inusitada de elementos vindos do televisivo, da cultura pop, da publicidade é que pode surgir o ruído, o estranhamento, o enigma, elevando o simulacro (que é como Baudrillard chamará as imagens tantas vezes veiculadas – e por isso já sem enigma – das telas na contemporaneidade) como dimensão operante de um novo estatuto estético.


Os elementos de uma cultura informacional, muito além de causar saturações estagnantes, podem ser manejadas a favor de uma linguagem que tensiona, que dialoga de modo mais pulsante e profícuo com o contemporâneo, com suas maneiras de pensar, fragmentadas, móveis. Algo que se encontra em diálogo com dispositivos audiovisuais, cada vez mais presentes num contexto digital multimidiático em que as produções televisivas, crescentemente atreladas a serviços de streaming e a fluxos informativos e fabulativos vindos da web, constituem um universo hibrido de cinema, telesserie, noticiário e publicidade, revelando uma sofisticada capacidade apropriativa.


A presença da telenovela na literatura (e também do cinema, da publicidade) será tão mais rica quanto mais distante estiver da esfera do pastiche, de uma mera referencialidade nostálgica ou debochada, e quanto mais se aproximar de configurações discursivas expandidas em sincronia com o lugar crescente ocupado pelo literário enquanto sistema de informação desde a segunda metade do século XX (tese de Friedrich Kittler apresentada por Salles Vasconcelos no ensaio Compactos – Lugares públicos/portáteis do cinema e da literatura).


Puddle Paintings, de Ian Davenport

A literatura deve, portanto, se apresentar como uma força que se desloca de qualquer tentativa de autocerramento, da reclusão num princípio de imunidade, de especificidade na tentativa de imprimir uma valoração em face do contágio exercido por outros suportes e mediatizações narrativas, tal como expõe Salles Vasconcelos na referida Oficina (vide nota 1).

Há de ser menos corporativista e mais comparativista a perspectiva de análise dos elos entre TV e escrita na atualidade, no sentido de se pensar essas possibilidades em diálogo vasto e contínuo com todas as áreas do conhecimento, com todas as outras artes e linguagens.

Tomemos de empréstimo uma imagem da Química. O carbono é dos mais versáteis elementos que existem por conta de uma propriedade chamada alotropia, capacidade que suas moléculas têm de se organizarem de maneiras diferentes e formarem assim estruturas das mais diversas. Dependendo de como se dá esse arranjo de átomos de carbono podemos ter, por exemplo, a dureza do diamante, a maciez do grafite ou a incrível tridimensionalidade do fulereno. Todos eles, enfim, alótropos do carbono, cada qual com sua própria apresentação e potencialidade.

Assim, a escrita de literatura também precisa acionar sua dimensão alotrópica, ter essa capacidade de reunir elementos de diversas ordens e colocá-los em choque, reorganizar suas estruturas, proporcionar novos sentidos e leituras para coisas já ditas. Dar configuração inusitada para velhos carbonos. Estabelecer colisões entre a ciranda de imagens da tela e a solidão de quem a assiste, com seus medos, sua ordem de afetos, seus fantasmas, enfim, acionando assim a Psicanálise, a Filosofia, a Sociologia, a Comunicação, as teorias sobre imagem, de modo a produzir entendimentos diversificados sobre questões sedimentadas, repetidas tautologicamente, como, por exemplo, as dicotomias-chavões acerca de “cultura de massa”. Pois despontam relações conviviais muito reveladoras do tempo presente, não operadas numa única direção, quando se liga um aparelho de TV em elos conexos com outros dispositivos de som-imagem-narração.

A escrita, portanto, nessa chave interdiscursiva, pode elevar elementos tão díspares a uma renovadora cartografia do real e de seu rastro massivo, ininterrupto de fábulas[2], no interior de uma consolidada cultura audiovisual e digital. Uma dimensão, enfim, indispensável a outro desenho do que entendemos por espaço literário, especialmente no contexto de um país ainda sinalizado pelos influxos da novela da noite e dos novos segmentos seriais dia afora.

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REFERÊNCIAS

AIRA, César. Pequeno manual de procedimentos. Trad. Eduardo Marquardt e Marcos Maschio Chaga. Curitiba: Arte e Letra, 2007.

BAUDRILLARD, Jean. Simulacro e simulação. Trad. Maria João da Costa Pereira. Lisboa: Relógio d ́água, 1991.

MALLO, Augustín Fernández. Blog Up. Ensayos sobre cultura y sociedad. Valladolid: Universidad de Valladolid, 2012.

MARTÍN-BARBERO, Jesús.; REY, Germán. Os exercícios do ver: hegemonia audiovisual e ficção televisiva. Trad. Jacob Gorender. 2. ed. São Paulo: Senac, 2004.

RONELL, Avital. Trauma TV. In: _______. Essays for the end of the millennium. Lincoln e Londres: University of Nebraska Press, 1994.

VASCONCELOS, Maurício Salles. Televisões (numa emergência). 25 set. 2012. Disponível em <http://www.musarara.com.br/televisoes-numa-emergencia>. Acesso em: 01 fev. 2020.

_________. Compactos – Lugares públicos/portáteis do cinema e da literatura. In: MOGRABI, Gabriel; REIS, Celia Domingues. (Org.). Cinema, literatura e filosofia: interfaces semióticas. 1 ed.Cuiabá/Rio de Janeiro: FAPEMAT/7 Letras, 2013, v. 1, p. 35-48.

_________. Bráulio Pedroso (Novela da Noite). São Paulo: Giostri, 2018.

WALLACE, David Foster. E Unibus Pluram: Television and US fiction. In: ___________. A Supposedly Fun Thing I'll Never Do Again: Essays and Arguments. Nova York: Best Bay Books, 1998.



[1] Trecho da exposição verbal do prof. Maurício Salles Vasconcelos durante a disciplina de pós-graduação “Oficina de Escrita Narrativa - O romance e outras formas de relato”, no segundo semestre de 2018, oferecida pela linha de pesquisa “Laboratórios de Criação – Escrita de Literatura e Narrativa” (FFLCH-USP).

[2] Algumas dessas proposições de leitura se encontram nos textos citados de Mauricio Salles Vasconcelos e, também, em seu romance Bráulio Pedroso (Novela da Noite).