OFICINA ORBITAL

Um artista do trapézio



Bráulio Pedroso

Sempre lembrado por seu papel histórico como revolucionário telenovelista – desde Beto Rockfeller até Tudo em cima, série com que encerrou suas atividades na TV –, ele foi um prestigiado dramaturgo e autor de contos reunidos em dois volumes, A catedral (1968) e As gralhas (1981). Neste livro, Bráulio inseriu “Três peças curtas baseadas em Frank Kafka), entre as quais Um artista do trapézio, reproduzida aqui integralmente. As referidas peças foram encenadas no Rio de Janeiro com o título de As gralhas, em 1978.

A apresentação de sua dramaturgia no Lápis fica como amostra do talento multiforme do autor paulista, que também atuou como roteirista e diretor de cinema (Roleta Russa, de 1972, seu único filme). Embora mencionado quase sempre por suas telenovelas impactantes, inovadoras, Bráulio Pedroso foi, antes de tudo, um escritor excepcional, marcante nos gêneros que praticou. Algo que ganha um extraordinário relevo quando se pensa nele como um Escritor na TV, desempenhando liberdade criadora e potência imaginativa, inventiva, numa época (dos anos 1960 aos 1980) ainda não regulada pelo rebaixamento da arte e pelos moldes de entretenimento (straight action sedimentada no temário em vigor) formatados empresarialmente nas fiçções seriais.

UM ARTISTA DO TRAPÉZIO

(Peça curta baseada em Franz Kafka)


PERSONAGENS – Trapezista e Empresário

CENÁRIO – cabine de trem, com uma poltrona e um trapézio próximo do chão.


ATO ÚNICO


Na cabine do trem, o Empresário recostado num canto de janela lê um livro. Mas sua preocupação é o Trapezista, a quem olha nas muitas interrupções da leitura. Num pequeno trapézio, próximo do chão, o Trapezista exercita-se. Há uma nostalgia em seu rosto. Seus movimentos ágeis repentinamente cessam, permanecendo de cabeça para baixo, suspenso pelas pernas.



TRAPEZISTA – É horrível...

EMPRESÁRIO – (levantando preocupado). O que houve? É o balanço do trem?

TRAPEZISTA – O balanço não me incomoda. É o chão.

EMPRESÁRIO – Posso lhe ajudar?

TRAPEZISTA – (sentando-se na barra e com ironia) Agora?

EMPRESÁRIO – (culposo) Agora...

TRAPEZISTA – (irônico) Arrebentando o teto do trem e me içando no ar?

EMPRESÁRIO – Tenha paciência, um pouco... Não se irrite, não convém a você, pode prejudicar seu trabalho. (com animação) Só faltam três estações!

TRAPEZISTA – (novamente de cabeça para baixo) Até agora eu tentei me conter. Mas como aguentar? Como? É horrível ter o chão a um palmo do nariz. Você não sabe que é horrível?

EMPRESÁRIO – Sei... sei... Mas não havia outro jeito. A distância é grande. Por automóvel seria pior. Pensei que, com esse trapézio, a viagem de trem se tornaria até divertida.

TRAPEZISTA – (sentando-se na barra) Não sou mais nenhuma criança para se enganar com um brinquedo qualquer.

EMPRESÁRIO – Mas eu nunca tive a intenção de enganá-lo. As nossas relações sempre foram francas. Você sabe que eu fui obrigado a isso. Eu não podia abandoná-lo. Não sei quanto tempo vai durar a excursão. Se um mês, se um ano. A nossa vida é tão incerta. Seria um crime se eu deixasse você naquele descampado, só, lá no alto do trapézio, sem proteção contra o sol, contra a chuva. Você poderia morrer.

TRAPEZISTA – E por que tivemos de partir? Era por acaso obrigatório? (de cabeça para baixo) Não encontro nada que possa justificar meu sacrifício.

EMPRESÁRIO – É o público. O que posso fazer com o público? Já estava cansado, não ria mais dos palhaços, não temia mais os leões. As casas estavam ficando vazias. O circo tinha que se mudar.

TRAPEZISTA – Como se você não soubesse que palhaços e leões se repetem. Piadas e rugidos, rugidos e piadas. E eu? O que eu tenho com isso? Eu sou um artista do trapézio. Em cada salto eu posso morrer. Eu não me repito.

EMPRESÁRIO – Você é um artista extraordinário. Eu nunca neguei.

TRAPEZISTA – É o que sempre você me diz. Sempre. E daí? O circo não mudou? Você teve a delicadeza? Alguém teve a delicadeza de perguntar a minha opinião? Alguém tentou ao menos pensar numa solução diferente?

EMPRESÁRIO – Existem outros compromissos, você sabe. Fortes compromissos. Há um negócio. Um negócio! Você depende dele. Eu dependo dele.


TRAPEZISTA – O que eu sei é que fui obrigado a descer do trapézio para vir fuçar a imundície deste chão!

EMPRESÁRIO – Não queira me magoar. Você sabe que, por minha vontade, eu nunca lhe obrigaria a descer do trapézio.

TRAPEZISTA – (com profunda tristeza) Às vezes eu penso que já não sou tão importante...

EMPRESÁRIO – Não fale assim. Você é o maior artista do mundo!

TRAPEZISTA – Eu?... (experimenta-se no trapézio) O meu número depende de palhaços, feras, equilibristas, amazonas, cães amestrados. Eu sou um entre muitos...Chego a duvidar de mim, a duvidar também que não adianta nada ser o maior do mundo em qualquer coisa.

EMPRESÁRIO – Mas você se esquece que é diferente? Ninguém até hoje foi capaz como você de fazer da vida uma perfeição extrema. Você nunca desce do trapézio. Não há uma comparação possível. Os outros têm suas mulheres, seus filhos, vão a bares, passeiam, conversam.

TRAPEZISTA – Mas o resultado é igual. Como eles estou neste trem, nesta viagem, arrastado para os mesmos lugares.

EMPRESÁRIO – Mas é o público!

TRAPEZISTA – (faz um expresso lento que expressa sua melancolia) O público é fútil, idiota. Eu não me exibo para ele. Não me iludo com as cabeças que acompanham meus movimentos pelo ar. Quantos são capazes de apreciar minha arte. Na verdade, ninguém.

EMPRESÁRIO – É essa viagem. Você está ficando melancólico. Mas você não deve se deixar dominar por maus pensamentos. A viagem vai acabar, tem que obrigatoriamente acabar. Anime-se. Já percorremos mais da metade do caminho.

TRAPEZISTA – Se eu fosse amado de verdade nunca seria obrigado a descer do trapézio.

EMPRESÁRIO – Você fala como se eu não o amasse.

TRAPEZISTA – Eu não sou ingrato. Eu sei que não é tão fácil. Eu sei... (dá uma volta lenta e fica de cabeça para baixo)

EMPRESÁRIO – (depois de uma pausa longa) Eu procuro fazer tudo para que você sofra menos. Reconheço que algumas vezes sou desastrado... Mas são os compromissos.

TRAPEZISTA – Eu percebo todos os seus cuidados e lhe agradeço. Não é por isso...

EMPRESÁRIO – Diga.

TRAPEZISTA – Não, não adianta... Mas eu quero que você saiba que eu posso imaginar quanto lhe custou instalar este trapézio aqui...

EMPRESÁRIO – Realmente, a direção da Estrada de Ferro não queria permitir...

TRAPEZISTA – Eu sei. Eu sei que tudo isso é complicado... Ah! que paciência você tem, meu amigo!

EMPRESÁRIO – Não é nada.

TRAPEZISTA – Devo estragar todos os números do circo... encarapitado lá na cúpula, desviando a atenção dos espectadores...

EMPRESÁRIO – Você merece. O mundo nunca viu um artista da sua qualidade!

TRAPEZISTA – (depois de uma pausa) Ainda estamos longe?

EMPRESÁRIO – (olhando pela janela do trem) No máximo mais quatro horas. (com alegria) Chegaremos de madrugada. Compreendeu? De madrugada! As ruas vão estar desertas e não levaremos da estação até o trapézio mais de três minutos.

TRAPEZISTA – (escandalizado) Três minutos?

EMPRESÁRIO – (preocupado) Não se impressione. Será suportável. Jã providenciei para que fosse: contratei um carro de corrida. Trezentos quilômetros por hora! Um carro aberto com o vento batendo no rosto. Uma grande velocidade que deve diminuir a sua nostalgia. Se bem que seja uma velocidade em terra...

TRAPEZISTA – Ah! quando eu apoiar o pé na corda do trapézio, estarei lá em cima num segundo! (muda o tom) Sabe, eu quero lhe pedir um favor. Foi uma gentileza, você mandar o rapaz com o vasilhame várias vezes por dia. Mas quase sempre acontecia do rapaz interromper os meus exercícios. E depois como ele não era um profissional, subia na corda com muita dificuldade, chegava sempre ofegante. Isso me constrangia: passei a usar o vasilhame sem vontade, só para que ele não fizesse todo aquele esforço à toa... O melhor é você instalar uma campainha lá em cima. Quando for preciso eu chamarei. Mesmo para comer. O horário rígido das refeições nem sempre se ajusta com o meu trabalho. É horrível ter que interromper a tentativa de um salto. Ele sempre poderá ser o mais importante de todos.

EMPRESÁRIO – Mas é claro! É claro que eu vou providenciar a campainha. Uma ideia tão simples, não? Que cabeça a minha!

TRAPEZISTA – (sonhador) Nem posso acreditar. Ter o tempo totalmente livre, ninguém para me interromper, ninguém. Vou poder tentar todos os saltos, todos. Vou poder até elaborar! Sabe, eu farei as acrobacias mais sensacionais. Vou me atirar no espaço, ficar solto no espaço, flutuando no espaço, até que a barra venha de novo às minhas mãos! E depois, quando todos acharem que nada mais é possível, darei num impulso maior três reviravoltas no ar como um pássaro! E no momento exato me agarro na outra barra! (caindo em si) Meu Deus! Como eu não pensei nisso antes... Eu vou precisar de dois trapézios... um de frente ao outro...

EMPRESÁRIO – Ótimo!

TRAPEZISTA – (profundamente magoado) Ótimo? É o que você diz?

EMPRESÁRIO – (confuso) Com ótimo eu quis dizer...dizer tudo.

TRAPEZISTA – Mas é tão mais, tão mais... (em desespero) Ah! eu não posso me conformar, não posso! Quando eu penso que durante todos esses anos... (começa a chorar)

EMPRESÁRIO – Não chore, meu menino, fique calmo...

TRAPEZISTA – (arrebentando num soluço) Como eu pude, meu Deus! Viver até hoje com uma única barra nas mãos! Uma única barra!

EMPRESÁRIO – Não queira se culpar. Sou eu o culpado. É imperdoável. Um empresário com minha experiência esquecer um fato tão importante. Na próxima parada do trem, eu vou telegrafar pedindo que instalem imediatamente os dois trapézios. Meu querido menino, não posso me perdoar por todos esses anos que você trabalhou sobre uma única barra... Mas eu vou me redimir. Acalme-se. Pense nos dois trapézios novos, pense que vou encomendá-los especialmente; serão mais belos e vistosos, as cordas serão azuis! (O Trapezista continua calado na sua expressão de dor) Ah, compreendo! Compreendo sua preocupação. Sei que só os dois trapézios não adiantam. Sei o que é essa viagem, essas viagens. Essa enorme incomodidade para você. Mas não se preocupe mais, eu prometo, juro, que esta será a última excursão do circo.

TRAPEZISTA – (tristemente) Acredito...

EMPRESÁRIO – Então, sorria. Não há motivo para tristeza. Nunca mais você será incomodado. E depois, pense, pense, você terá um espaço imenso para voar!

TRAPEZISTA – Quando eu penso no que fiz...

EMPRESÁRIO – Ora, meu pequeno, você sabe muito bem do que será capaz. Não sou eu quem vai lhe dizer. Se com uma barra você era magistral, imagine agora com duas!

TRAPEZISTA – Mas é isso, exatamente isso! É horrível pensar no tempo perdido...

EMPRESÁRIO – Mas você tem a vida pela frente.

TRAPEZISTA – Que ironia...

EMPRESÁRIO – Eu não quis ofendê-lo. Só quis lembrar que o mais importante começa agora.

TRAPEZISTA – (consigo mesmo) E dizer que eu vivia contente! Contente, como se aquele espaço fosse tudo, tudo.

EMPRESÁRIO – Não se desespere. Isso tudo é uma bobagem. Pense no que você é. É tão raro, quase impossível, um artista de sua categoria! Vá, acalme-se, você precisa descansar.

TRAPEZISTA – (tranquilizando-se) Sei...

EMPRESÁRIO – Isso. Fique quieto. Descanse. Daqui a pouco nós vamos chegar, daqui a pouco você vai estar nos dois trapézios novos. Vai poder fazer seus exercícios. Guarde sua sáude, não é bom você ficar excitado, prejudica sua arte. (alisando a cabeça caída do trapezista) Descanse, descanse um pouco. Você está cansado, meu pequeno, apenas isso. Durma, durma, será bom para você, você verá... Assim... assim... (o Trapezista acalma-se, descansando a cabeça numa das cordas do trapézio. O Empresário afasta-se cauteloso e um pouco antes de sentar-se na poltrona, diz comovido) No rosto infantil do artista do trapézio apareceu a primeira ruga. (escurecimento lento)


FIM