OFICINA ORBITAL 

HÉCTOR LIBERTELLA

Com grande alegria, apresentamos no Lápis um trecho de livro inédito do incrível autor argentino Héctor Libertella, inédito no Brasil. Inventivo, intrigante, indefinível, o criador de El paseo internacional del perverso (1990) e El árbol de Saussure (2000) comparece aqui com um dos capítulos de A la santidade del jugador de juegos de azar (2011), obra póstuma. Ricardo Strafacce, conhecido biógrafo de Osvaldo Lamborghini, outro essencial escritor portenho, tem transcrita sua apresentação da citada narrativa de Libertella publicada em 2011. Pedro Magalia, tradutor de Lamborghini, verte pela primeira vez em nossa língua um escrito de H.L.

São tantos e tão variados — e, ao mesmo tempo, tão parecidos — os livros inéditos de Héctor Libertella, e seus originais encontram-se, ademais, em mãos tão diversas, que talvez nunca se chegue a compilar cabalmente esse corpus fantasmagórico. Suspeito que foi esse seu plano. Suspeito que nos últimos tempos, nos seus últimos tempos, decidiu abolir a ideia de Obra distribuindo seus livros inéditos por aqui e por ali em versões ligeiramente distintas, como se se tratasse de hrönires, como se houvesse querido desafiar os caçadores de pérolas a mergulhar nas profundidades de uma Obra que, como todo desejo digno desse nome, sempre está fugindo para mais adiante.

Por exemplo, juro —  e há amigos que me juram que, se fosse o caso, también jurariam — que em alguma versão deste livro ocorria aquela cena em que o maratonista que vai ganhando, cômodo, a corrida, quando faltam poucos metros, centímetros para chegar, começa a correr sem avançar, a correr no mesmo lugar, a fingir que corre até permitir que todos os demais competidores o ultrapassem, e somente quando está seguro de ser o último, atravessa a faixa. Essa cena alucinada — posto que não está neste livro em que juro que estava — e alucinatória — quais, quantos seriam capazes de uma renúncia semelhante — é uma cifra da vida do autor e, ao mesmo tempo, um dos truques maiores de seu projeto: legar à posteridade uma Obra Incompleta (sempre faltará um inédito que alguém atesoura em silêncio; sempre haverá, em algum lugar, uma nova versão da última versão).

Em todo caso, enquanto algum executor organiza esse banquete aleatório, já podemos ir fazendo boca com Para a santidade do jogador de jogos de azar, um de seus pratos principais e em que se exibe como sempre  — mas mais do que nunca  — este gosto libertelliano pelo abismal: o feltro de roleta (russa) como um país isolado e um revólver na têmpora de Herbert Louis com trinta e seis possibilidades (mais o zero e o duplo zero) e uma única bala no tambor; o copo de uísque do cowboy Bill Flitner como um pedaço de vidro na boca aberta; os lábios ingleses de um polonês que cantava tangos em latim...

Vidas imaginadas, retratos velados, silhuetas do fantasma. Como replicar à infâmia universal da História? Inventar histórias de santidade é uma opção.

Ricardo Strafacce

Herbert Louis. Para a santidade do jogador de jogos de azar


                                Héctor Libertella                               



Vertigem com Disciplina. Porque Herbert Louis (Marsella, 1932) esteve a ponto de quebrar muitas bancas na Europa, por isso mesmo foi condenado ao exílio. De modo que agora pisa com os dois pés no deserto de Nevada e aterrissa num compartimento de 20 andares chamado The Black Jack Motel*****.


* * *


O cassino do hotel é um supermercado onde Herbert Louis se sente só em sua Lei: sozinho num imenso galpão adaptado às dimensões e quantidades do homem que ele é. Por isso cai bem ali, mais que bem (após 3 dias de uma abstinência doentia), porque, em seguida, encontra com seu caça-níquel, esse parceiro que lhe cai tão bem, parece uma enxaqueca, essa parceira amorosa que alivia um pouco seu mal-estar e enxaqueca.

E ambos se fazem, com efeito, um bom negócio. Ele sente seus batimentos de máquina sofisticada, conhece seus desejos automáticos, é paciente e a alimenta com depósitos de pequenas fichas, mas triplica seu amor quando ela está a parir, pronto! Para não perder tempo, logo cola a mão esquerda no busto dela e com a mão direita programa cada vez mais e mais jogadas. Faz assim: apoia um fio de moedas em seu antebraço, e vai deslizando pela boca da amada, uma por uma pela ranhura. Então ela devolve montanhas de prêmios até que ele acaba perdendo a memória do que recebe e vai dando beijos e mais beijos, certo de ter confirmado o velho método de Pascal.


*** 


Para distribuir melhor o corpo, Herbert Louis decidiu hoje empregar várias ou diferentes táticas (“a sorte está lançada”).

Pela manhã, enquanto se serve, no lugar do guardanapo lhe deslizam por baixo do café com leite umas cartelas de bingo. Com essas cartelas limpa distraído os lábios abertos e nem consegue dar um gole. 

Ao meio-dia, em um restaurante, não importa saber o que comerá. Seus olhos ficam fixos no cardápio de um quadro automático de sorteios que sempre começa a jogar no prato de entrada, e que dura até as sobremesas. 

Em seguida aterrissa em cheio num feltro verde de 36 números — mais o zero e o duplo zero — estacionados na pista da roleta, como um sábio suicida em posse de todas suas faculdades.

Neste galpão são 100 — cem — mesas de roleta — russa — e apenas uma bala que dá voltas no tambor de seu método “redondo”, na sua têmpora furada. Ou seja: um revólver de roleta russa com uma bola só no tambor, que gira.

A mesa é um país isolado, um mundo ainda maior que o mundo onde ele dispõe de toda largura e comprimento do tapete para saltar sobre escaques, conforme o ritmo do tambor e as contrações nervosas da bola.. 

O que Herbert Louis faz com seu corpo? Já cansou de percorrer o mapa. Caminha como um voyeur por ruas alheias e chega ao cruzamento morto da quadra que dá apenas 7 vezes o seu lance. Depois aguarda como um gato para mergulhar por completo no poço de ouro do pleno de sua vida, 8-9-11-8-12-9-11, que sempre dá uma vez só! a cada duzentos tiros. Mas neste momento sagrado, está se espremendo como um tolo que estava descansando do estresse numa praia à altura da 2ª dúzia.

 Em seguida, estica distraído suas pernas e vai apostando outra vez entre ruas, quadras e semiplenos. E outra vez, quando se dá a combinação de ouro ele está distendido como um turista lá pela 3ª dúzia. O que faz tão longe? Nada.

Para escapar da sucção do zero e duplo zero, encurrala-se contra a 4ª linha, que dá seis magras fichas por uma para jogar, e chega ao seu quarto do Black Jack Motel***** como abraçado a colunas, que mal dão duas fichas por uma para manter sua vida intacta e na média. (Fazer uma vida mediana, como o resto das pessoas, hoje não lhe importa NADA.)

Enquanto está sentado no vaso, as luzes de um pôquer eletrônico no banheiro preenchem-se agora sim e agora não. Como uma prisão de ventre fazendo força para sair.


                                                Tradução de Pedro Magalia