Breve reflexão sobre as bioescritas

(Ana Paula Ferraz)

Breve reflexão sobre as bioescritas


por Ana Paula Ferraz

(Autora da narrativa inédita Brilhante.Clitóris,

doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa/FFLCH-USP)

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Edward Hopper. Sol de manhã, 1952. Morning Sun. Óleo sobre tela, 71,4 x 101,9 cm. Columbus, Ohio, Columbus Museum of Art. Aquisição do Museu, Fundo Howald

“É preciso ler, dizia Séneca, mas escrever também”[1]. Em seu estudo sobre as escritas de si, Foucault aponta a anotação dos movimentos interiores como um princípio tradicional, uma prática entre os gregos que compunha os cuidados de si, assim como meditar e treinar[2].


É preciso ler, porque não é possível tirar tudo do fundo de si. Além disso, também é preciso digerir a informação, fazê-la passar da memória à inteligência. A escrita teria esse papel de absorção. Nesse cozimento interno, nessa elaboração que seria realizada por meio dos hypomnematas, espécie de “livros da vida”, onde se anotava e se recolhia tudo - coleção de observações, pensamentos próprios e alheios - nestes, tampouco importava a autoria, uma vez que as ideias se “incorporariam” ao escritor. “Incorporar” no sentido mesmo de formar um corpo, de se juntar à carne. Era, nesse sentido, mais uma ferramenta de constituição do sujeito do que um contêiner de recordações.


Não haveria ainda e no entanto, nesse conjunto de fragmentos que formavam os hyponmenatas, uma narrativa — a narrativa de si. Contar-se apareceria apenas nas correspondências — que até poderiam ser escritas com base nesses cadernos. Porém, as correspondências trariam uma inovação que nos parece fundamental: a abertura para o outro. O escritor é afetado pelo texto que será endereçado a alguém. O leitor é afetado pela carta que recebe, e de um modo novo. Como que num ciclo. Uma ventilação. (E, afinal, não seriam livros cartas enviadas a amigos?[3])


Voltando à abertura. Ou melhor, aberturas: bocas, olhos (falar/ver)[4]. É por meio delas, carregadas pela escrita, esse excesso[5], que os movimentos interiores vazam para o fora[6], correm para o livre. Impõe-se sobre o vazio. Ocupam lugares. Instauram espaços[7]. Formam regiões. Cada livro, um continente. “Escrever é cartografar”, resumiu Deleuze[8].


Foucault, um crítico dos enclausuramentos, baseando-se em descoberta de Bergson, nos indica: literatura é espaço, e não tempo[9]. O tempo apenas se depositaria na linguagem, uma vez que aí seria mantido.


Essa proposição deslocaria as oficinas de bioescritas, ou seja, laboratórios de escrita que partem da experiência de um corpo e da vida como matéria, para outro lugar, além da contemplação interior e da simples reconstituição da memória em retrospectiva. Haveria aí a possibilidade de retirar o escritor de sua mônada[10], do texto voltado apenas para uma dimensão autocentrada, do corpo cerrado em si mesmo e do individualismo que marca nosso tempo. Tratar-se-ia de uma espécie de transporte, de uma viagem: mapear a experiência de um corpo. Um corpo que se coloca em test-drive, em meio ao risco e ao perigo, em um campo. Que se lança, entra em choque e que resiste por meio da linguagem. Essa escrita experimental, ou seja, a partir da experiência, teria sido inaugurada por Rousseau, o caminhantes das montanhas[11]. Nela, o escritor se projeta em terreno desconhecido, disposto a conhecer. A escrita é meio e não fim; é a escrita que serve ao homem e não o homem à escrita[12].


Passa a se dar, pois, um convite a uma aventura precária, que parte não de uma memória, mas de um esquecimento, ou, então, da memória de um esquecimento, em busca de um mistério, do qual deriva toda literatura[13].


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Referências:


AGAMBEN, Giorgio. The fire and the tale. Trad.: Lorenzo Chiesa. Stanford, California: Stanford University Press, 2017.


DELEUZE, Gilles. Foucault. Trad. Claudia Sant’Anna Martins. Rev. Renato Janine Ribeiro. São Paulo: Brasiliense, 2013.


DERRIDA, Jacques. A farmácia de Platão. Trad. Rogério Costa. São Paulo: Iluminuras, 2005.


FOUCAULT, Michel. A escrita de si. In: O que é um autor? Lisboa: Passagens. 1992. pp. 129-160.


FOUCAULT, Michel. A grande estrangeira: sobre literatura. Trad. Fernando Scheibe. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2016.


HEIDEGGER, Martin. Observações sobre Arte – Escultura – Espaço. Trad. Alexandre de Oliveira Ferreira. Rev. Marcel Albierto da Silva Santos Martin. Artefilosofia, Ouro Preto, n. 5, p. 15-22, jul. 2008.


LAPOUJADE, David. As existências mínimas. São Paulo: n-1 edições, 2017.


SLOTERDIJK, Peter. Regras para o parque humano: uma resposta à carta de Heidegger sobre o humanismo. Trad. José Oscar de Almeida Marques. São Paulo: Estação Liberdade, 2000.


VASCONCELOS, Mauricio Salles. Exterior.Noite - Filosofia/Literatura. São Paulo: Lumme Editor, 2015.


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[1] FOUCAULT, Michel. A escrita de si. In: O que é um autor? Lisboa: Passagens. 1992. pp. 129-160.


[2] “Epicteto, que todavia não ministrou senão um ensino oral, insiste repetidas vezes no papel da escrita como exercício pessoal: deve-se "meditar" (meletan), escrever (graphein), treinar (gymnazein); “possa a morte arrebatar--me enquanto penso, escrevo, leio” (FOUCAULT, 1992).


[3] A inspiração aqui foi retirada de Peter Sloterdijk: “Livros, observou certa vez o escritor Jean Paul, são cartas dirigidas a amigos, apenas mais longas. Com essa frase ele explicitou precisamente, de forma graciosa e quintessencial a natureza e a função do humanismo: a comunicação propiciadora de amizade realizada à distância por meio da escrita.” (SLOTERDIJK, 2000, p. 7).


[4] “(...) pois o saber é feito desses dois meios, luz e linguagem, ver e falar. (...) Se ver e falar são formas da exterioridade, pensar se dirige a um lado de fora que não tem forma. Pensar é chegar ao não-estratificado. Ver é chegar não-estratificado. Ver é pensar, falar é pensar (...).” (DELEUZE, 2013, p. 93).


[5] Sobre esse excesso, aborda Jacques Derrida, ao tratar a escrita como phármacon: “A escritura deve, pois, tornar-se novamente o que ela nunca deveria ter deixado de ser: um acessório, um acidente, um excedente.” (DERRIDA, 2005, p. 77).


[6] “O lado de fora é sempre a abertura de um futuro” (DELEUZE, 2013, p. 96).


[7] Heidegger em conferência de 1964 em que trata da arte e do espaço: “O que então é o espaço como espaço? Resposta: o espaço espaça [der Raum räumt]. Espaçar significa desbravar [roden], libertar [freimachen], liberar um âmbito livre [Freie], um aberto [Offenes]. Na medida em que o espaço espaça, libera um âmbito livre, ele concede, apenas com esse âmbito livre, a possibilidade de regiões de encontro [Gegende], de pertos e longes, de direções e limites, a possibilidade de distâncias e grandezas. Se atentarmos para isso que é mais próprio do espaço, o fato de que ele espaça, então finalmente estaremos em condição de ver um estado de coisas que permanecia fechado ao pensamento que houve até agora.”


[8] “Daí a tripla definição de escrever: escrever é lutar, resistir; escrever é vir-a-ser; escrever é cartografar, “eu sou um cartógrafo…’.” (DELEUZE, 2013, p. 53).


[9] “E acho que ninguém tinha pensado que a linguagem, no fim das contas, não era tempo, e sim espaço. Ninguém tinha pensado nisso, salvo alguém de quem, no entanto, não gosto muito, mas sou obrigado a constatar isso, esse alguém é Bergson que teve a ideia de que, afinal, a linguagem não era tempo, mas espaço.” (FOUCAULT, 2016, p. 123).


[10] Assim começa David Lapoujade em Existências Mínimas: “Estamos em 21 de fevereiro de 1930. Chapéu na cabeça, óculos finos sobre o nariz, como faz todos os dias, Fernando Pessoa, o homem de múltiplos heterônimos, passeia pelas ruas de Lisboa. Como todos os dias, é tomado pelo cansaço e pela lassidão. Ele se sente isolado do mundo exterior e constata o vazio da própria existência. De um ponto de vista geral, estima que há um “erro metafísico” em sua pessoa. Diríamos que se via como uma mônada desmedida. Sabe-se que, no sistema leibniziano, as mônadas não têm porta nem janela; se não há qualquer abertura para o mundo exterior, é porque esse mundo está incluído nelas sob a forma de percepções variadas e ordenadas. Assim, o problema de Pessoa é que ele tem percepções, mas não consegue experimentar a realidade do mundo exterior mais do que a realidade da própria existência. Não é mais a realidade que é exterior, mas ele é que é exterior a qualquer realidade. É como uma mônada, mas uma mônada sem mundo, fechada atrás de portas e janelas.”


[11] Corriqueiramente associada à invenção da autobiografia, o potencial da obra de Rousseau se expande a partir da observação de Maurício Salles Vasconcelos, que, para além do gênero, o apresenta como um autor da experiência: “Experiência e escrita se conjugam num contrato inviolável a contar de Rousseau. A gênese e a diagnose do sujeito em processo de conhecimento e devaneio se descortinam através de uma consecutividade não causal desbravada pelo que passa a se compreender como narrativa literária. Reconfiguram-se saber, ficção e humanidade, abarcados, numa gradação simultaneamente fabulativa e especulativa, por meio do pacto solitário consolidado com a leitura. Por força da convocação de um devaneio que implica um trabalho total do corpo lançado à imediaticidade nada simplificadora, nem apaziguadora, da caminhada pela natureza.” (2015, p. 79-80)


[12] Em The fire and the tale, Agamben destaca a coleção de cartas de René Daumal editadas por Claudio Rugafiori. O título escolhido para obra foi O trabalho sobre si mesmo e, nela, estaria enunciado que o autor não teria como intenção produzir trabalhos literárias, mas agir sobre si mesmo, para transformar-se e recriar-se, como que deixando o sono, ou acordando. De acordo com essa prática ascética, a produção da obra seria secundária em relação ao poder de transformação do sujeito que escreve que a escrita exerceria. Nesse sentido, a noção de trabalho seria mais “trabalhar sobre mim” do que “trabalhar para mim”.


[13] Para Agamben, o curso da existência, que inicialmente era tão rica de possibilidades, teria sofrido uma perda de mistério e um desencantamento. O mesmo aconteceria com a literatura. E a literatura, para Agamben, seria derivada de um mistério. Mas, para que a literatura preserve essa relação com o mistério, há uma condição: a literatura deve ser precária e aventurosa. Barthes, que em outro ponto será lembrado pelo italiano, aconselha: escrever como se nunca tivesse escrito..