Em direção à maravilha

Por Kathy Acker

Trad. Ana Pavla

A map of my dreams, de Kathy Acker

 

Eu vou contar a vocês uma história. É uma versão resumida de uma história muito mais longa, na qual não há elementos ficcionais. Como dizem, nada aqui foi inventado. Esta é também a história da origem da arte.

Quando humanos compreenderam que havia poderes maiores do que eles mesmos e começaram a contar mitos ao invés de histórias, as sacerdotisas de Dafne ou A Sangrenta, para que as mulheres pudessem desfrutar de sua habilidade de menstruar quando essa deusa entrava em modo orgiástico, mascavam folhas de louro e, então, sob a lua crescente, atacavam viajantes insuspeitos e rasgavam crianças em pedaços.

Dafne também se chamava Medusa. Esse rosto transformava em pedra todos os homens que o olhassem, esse rosto feito com pentelho de boceta vivo, e, assim, impedia estranhos de transpassarem os seus mistérios.

Apesar disso, alguns homens a amavam. Um deles, Leucipo, o rei do culto aos cavalos, se disfarçou de mulher para poder participar do êxtase dela. Por esse motivo, o deus Apolo, que também cobiçava Dafne, convenceu suas sacerdotisas, as Mênades, de que elas deveriam tomar banho peladas. Quando elas tiraram a roupa, descobriram que uma delas era um menino. Rasgaram Leucipo em pedaços.

Agora Apolo sentia que estava livre para possuir Dafne. Ele a encontrou e a agarrou, grosseiramente. Ela gritou para sua mãe. Terra levou sua Dafne para Creta, que era outra casa dos mistérios, e, no lugar de sua filha, deixou um pé de louro.

Apolo chegou nessa árvore dizendo: “Agora você é minha”. O loureiro virou a coroa do poeta. Mascar folhas de louro torna os humanos loucos; poetas frequentemente são insensatos.

Em Creta, Dafne tomou um outro nome. Pasífae.

 

Para garantir suas posses, Minos, o Rei de Creta, prometeu sacrificar um touro para Poseidon, O Senhor dos Oceanos. Mas quando o Rei dos Mares mandou um touro branco ofuscante para a oferenda, o rei se apaixonou pelo animal e ficou com ele.

Minos já era casado com Pasífae.

Apesar de casada, Pasífae se apaixonou pelo touro branco; desesperada para transar com ele, ela recorreu a ajuda de Dédalos, o artista. Sua arte consistia em fazer bonecas de madeira animadas. Sentindo simpatia por Pasífae, ele construiu uma vaca oca de madeira para ela, uma vaca-muu na qual ela poderia montar. Ela montou e Dédalos rolou o animal até a seção dos carvalhos onde todos os outros animais pastavam.

Aproximando-se da falsa vaca, o touro branco levantou-se e, então, por cima da fêmea dupla, gozou.

Pasífae deu à luz a uma criança que tinha cabeça de touro e corpo humano. Um monstro, portanto, já que a cabeça, a sede da razão, supostamente deveria governar o corpo.

Minos visitou o oráculo. “Como eu posso evitar que todos saibam da luxúria de minha esposa? Como eu posso esconder essa monstruosidade?”.

Resposta do oráculo: “Diga a Dédalos, aquele artista que vive sob seu protetorado, que construa um labirinto! Um labirinto é aquela estrutura da qual ninguém pode escapar. No seu centro, coloque Pasífae e sua criança ou monstro, o Minotauro.”

Minos fez como foi recomendado pelo oráculo de Apolo, o mastigador de folhas de louro.

Agora o labirinto foi construído.

Será Ariadne, a filha que, como a sua mãe, deseja, no caso de Ariadne, desejo anormal para um humano, Ariadne, que abre o labirinto. Seguindo o desejo ou o amor. Infelizmente, para todos os cretenses, inclusive Ariadne, ela abre o labirinto para um estranho, um homem cujo único desejo é matar.

O estranho, Teseu, assassina o monstro. Monstro vem da palavra latina mostrum ou maravilha. É Ariadne então, cuja luxúria permite a destruição da maravilha:

“Quando Teseu emergiu do labirinto, manchado pelo sangue do Minotauro, Ariadne o abraçou apaixonadamente.” Teseu começa a abandonar Ariadne.

A mãe já tinha desaparecido da história.

A mãe fala:

O labirinto:

É uma série de salas sem princípio ou fim. Não um círculo, não, mas um hexágono, uma forma como aquela. Depois, tudo o que eu lembrava era poeira branca.

O centro do labirinto:

A sala grande ou a sala da frente. É tudo claro aqui; toda a luz vem daqui: pisos feitos de poeira e cinzas e marrons claros. Este é o tipo de dia em que nada cresce. O centro do labirinto é um cabeleireiro. Alguém - deve ser o monstro - pede para eu pegar algo para ele enquanto ele vai embora, então eu saio dessa sala de luz e começo a caminhar por um corredor de ângulos cujas junções são as de um hexágono.

Agora a poeira é branca porque tudo, paredes e piso, estão ficando mais secos. Quando a poeira seca, ela se desintegra em nada. Há mais poeira e insetos nas paredes. Na última sala na qual eu posso caminhar, aranhas vivem num colchão. Deve haver mais aranhas do que colchão aqui.

Ilustração de Kathy Acker em Blood and Guts in High School 

Eu fujo pelo caminho que alcancei. No meio do corredor, seções nas quais agora há uma linha reta, existe um lugar onde eu posso nadar. Uma piscina encontrada em um hotel muito antigo. A quantidade de insetos cresceu tanto que até quando estou de volta ao local onde comecei, no quarto de luz, tudo o que eu quero é sair.

Como eu escapei do labirinto:

Num banheiro, eu estou espremendo uma espinha que, assim que eu olho para ela num espelho depois da primeira tentativa, cresce maior e maior, e então eu vejo que ela está subindo. Eu vejo a forma de um pequeno cilindro que é quase sólido. Como um míssil. Então eu me lembro de que, quando fiz isso antes, eu não machuquei minha pele de modo permanente. Como o pequeno pau que sobe e sobe, eu me sinto bem.

Dessa vez, quando eu voltei, talvez por causa da espinha, o mar se estendia diante de meus olhos.

Um mundo de maravilhas:

Cores mais brilhantes que as cores habituais do mundo começam a existir:

Dois navios estão em águas verdes e profundas. Essas embarcações são como as que os piratas usavam. Um navio/homem, sua cabeça é um navio e seu corpo, de um homem, está caminhando pelas areias em frente à água. Eu sei que ele foi feito para mim porque ambas cores e formas desse ser e dos navios são mais precisas do que qualquer outra cor ou forma anterior a esta e porque eles vão me levar, finalmente, embora da terra.

Num navio no meio do oceano. Eu vejo que há peixes nadando ao redor dos cascos. Quando eu olho com mais cuidado, eu vejo que todos os peixes são um peixe. Um bebê, porque é mais gordo do que qualquer outro peixe. Ele salta para fora da água, então eu posso afagá-lo. Eu posso içá-lo para fora da água porque um homem, um pescador, está me ajudando. Então, eu coloco a criatura de volta na água e antes que eu saiba de qualquer coisa, um animal marinho ainda maior vem nadando. É a mãe do bebê e eu estou tão contente que ela está feliz e sua criança nada para dentro de sua boca e ela nada para longe.

Eu vejo um peixe ainda maior, o papai peixe, como baleias. Vê-los me impede de alimentá-los. Eu atiro bolas imensas de hambúrguer e toranja em uma das bocas do papai peixe. Todas as histórias são reais. Eu digo isso a vocês. Nenhuma história, a menos que seja feita por uma pessoa, pode ser falsa. Pois logo que algo é dito a outra pessoa, começa a existir.

A cada movimento ou instante do tempo, tudo o que existe começa e simultaneamente acaba. Pois o tempo não é linear.

De acordo com esta história, o primeiro artista humano foi Dédalo. Era um macho. Era, como artista, ao mesmo tempo inferior e sujeito representante do poder político. Dédalos vivia no exílio; sua sobrevivência dependia da boa vontade do Rio Minos. O reino da arte era separado e subserviente ao da política.

Se Dédalos foi o primeiro artista, a arte começou fora da divisão. A palavra arte começou a ser usada logo quando aconteceu a separação entre imaginação e Estado.

Antes de Dafne ser estuprada por Apolo e para o reino de Apolo, não havia tal divisão. Quando Dafne e as Ménades dançavam, a imaginação se tornava real.

O labirinto, aquela construção de Dédalo, encobriu a origem da arte. Encobriu o conhecimento que a arte era, e assim é, nascida do estupro ou da negação da mulher e nascida da política hegemonica.

Uma forma da construção de Dédalo é o tempo. Quando o tempo é entendido como linear, não há escapatória. Nenhuma saída para nós fora do labirinto. Eu disse que o labirinto foi construído.

Mas o tempo não é linear. Ao contrário de Ariadne, pois não temos Teseu como nosso amante, deixe-nos, mudando a linearidade do tempo, desconstruir o labirinto e ver o que as mulheres que estão em seu centro estão fazendo. Deixe-nos ver o que agora é central.

1995

 

(Acker, Kathy. Moving into wonder. In “Bodies of Work”. London, New York, 1997. Serpent’s Tail. P. 93- 97.)

KATHY ACKER (Nova York, 1947 - Tijuana, 1997) foi uma romancista, poeta, ensaísta e dramaturga norte-americana. Seus romances incluem Pussy, King of the Pirates e Blood and Guts in High School. Sua obra é associada ao punk rock e à estética experimental. Ela morreu de câncer aos 50 anos. 

ANA PAVLA (São Paulo, 1979) é doutora em Letras pela Universidade de São Paulo. Autora de BR-Clítoris, a ser lançado pela Coleção Vírus, da Editora Córrego. Coordena oficinas de escrita em São Paulo.

Publicado em 12/07/2023