Sono

(Amélia Loureiro)

por Amélia Loureiro

(Poeta e autora de narrativas, entre as quais

Print Pele, reunião de relatos/experimentos em prosa a ser publicada em breve)

C

O que me habita vindo da noite.

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De uma não-face masculina:

– você parece suportar bem o seu nariz

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Uma mulher, alguém conhecida, mas não identificada, diz, em close:

– Melancolia

x.3.1




F

Existe um lugar quieto no meio das águas onde se pode respirar.

x.6.2



G

Ele oferece o prato de mingau com remédio, que não aceito, é jogado fora.

x.2.1



K

Carrinhos de rolimã, um para cada casal.

Casal não biográfico, não sistêmico. Duplas.

x.3.1



M

Fica por ali, orbitando aquele espaço, num grau zero, se é tomada como referência a quebra radical do percurso intencionado.

x.4.2



O

Ao ar livre.

Instruções, dados materializados em objetos nomeados de a, b, c, d. Um em cima do outro, amarrados cada qual por fitas de plástico cinza.


A necessidade de se anotar o sonho. O dia nascendo lá e aqui. Se não se escreve, as informações se perdem.

Há instruções presenciais, mas aqui estão os dados em bloco, compactos e materializados. Empilham-se uns sobre os outros, ao ar livre.

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Uma voz, uma orientação para escrever sobre isto, para não se perder.

Um lugar fora da cidade, talvez uma pequena fazenda. Produções nas cercanias, um forno de barro próximo, mas o importante são as informações compactas empilhadas e amarradinhas para serem transportadas.

x.2.2



S

URUBU.

A jovem que se apresenta agora para o público tem o urubu.

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Em ato intempestivo, após receber a crítica carregada de bons propósitos da mulher mais velha na plateia, arremete sobre esta o urubu, fazendo-a cair de costas ao chão tendo o animal agarrado na garganta. Ao acordar, a lembrança de quando o mesmo tipo de queda a deixou sessenta dias e noites sobre a cama, vinte e quatro horas antes da primeira aula do mestrado. Curso extinto por meios indiretos.

O tombo na escadaria do grupo escolar – alegoria arquitetônica canhestra de Pensamento – onde perde a voz com o baque das costas no degrau. Graduação, régua, escada silencia dizer díspar. A criança em estudo ultraveloz, os trajetos afetuais das estruturas bestas em si, nenhum degrau sustenta a leveza, o ato de ver, o ímpeto de criar. Nesta manhã, de novo um convite, aberturas para as pesquisas com interlocuções diversas dentro da universidade.

A mulher nova agora tem o urubu.

x.7.2



U

Estou aqui neste canto. Sem rosto, o corpo apenas um sinal de presença. Sob o foco da única lâmpada acesa, – solta no ar por um fio –, está Amélia. De pé e de costas; seus ombros, cabeça e atenção voltados para os papéis que anota, lê, estuda. Ela está totalmente imersa nesta ação. A gestalt inteira da sua figura, aliada à atividade artesanal, remete a uma foto do seu pai tirada por ela. Uma foto que seu filho, quando a viu, disse ter apreciado especialmente entre as outras, e ressaltou a pose do avô, de costas e de pé. Dos familiares, o filho é esta convivência mais inabitual. Estar de pé é a mesma postura de Fernando Pessoa quando escreveu, de uma só vez, "O Guardador de Rebanhos", posição à qual ele imputou como propulsora da criação, por ser ativa. Indicação prática de escrita e invenção de mundos que a acompanha desde a leitura de João Gaspar Simões, quando ela ainda não havia emigrado da cidade natal. Surge a pergunta do quanto de metamorfose não ocorreu com esta informação dentro de si no correr do tempo que já vai longe e agora se reapresenta.

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Amélia ouve silenciosa, ancora no instante Essx Outre que olha para si através das ressonâncias sutis, produção de palavras (séries), coordenadas imanentes. Os rios do sol, insetos, entram pelas janelas, – tufos de faíscas efervescentes dentro da sala –, os primeiros anos na terra. O cosmo é o pequeno corpo que ri – salta, asinhas nos calcanhares – o som e a dança das línguas rituais na manhã dos dias. Tela de correspondências no jogo mágico do alfabeto-pensamento, reativado a cada vez, ao toque das multiteclas. Fácil de viver, – se for vivido –, força propositiva para quem experimenta. Uma condição específica, muito refinada, provém do potencial transmutador de se estar neste ponto de vista, nesta contingência.

20.x.20



Z

Procuro debaixo do caminhão, naquele pequeno acúmulo calcinado de pixe e descartes, a provável criança quase morta que ouvira a voz e julguei ser a minha própria. Mas não, eu era aquela moça louca a lançar culpa e praga a quem se aproximasse. Eu a ouvi, encaminhamos juntas na direção apontada pela sua mão, uma casa de muitos, sem cuidados, a estagnação e o pandemônio espalhados pelos cômodos.

Olá, melancolia – névoa da rua – o encontro/abraço: triste família. A certa distância, ainda ouço os brados de babel e ira da mulher em pânico. Ouço sim. Desde este movimento, onde imprimo – na medida em que se dá – ritmos mais e mais alinhados à entrada e saída do ar pela glote. Na abertura da laringe, circunscrita pelas duas cordas vocais inferiores, o arame farpado, pedacinhos de gengibre in natura com casca, água morna com sal mineral, mel, arpejos vivos inéditos, um a um, modulação amplificada enquanto caminho.

x.2.21



_a

Lugares esplêndidos

sinto-me tão feliz

alguém pergunta onde moro

– lindo dia, moro na prisão.

x.19.21

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(Estes fragmentos fazem parte do texto SONO, projeto inédito PRINT PELE)

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