Depois da Novela
(Mauricio Salles Vasconcelos)
(Mauricio Salles Vasconcelos)
SobreRromance
Mauricio Salles Vasconcelos
“...
espero
depois da novela
sem falta
um telefonema
de algum ponto
perdido
do país” (Ana Cristina César)
Serialidade passa a ser uma tópica, uma trilha. No correr de um fio frágil de um dia sobre outro, sob o signo pandemia, rumores ganham vulto, grandes desenvoltura e desempenho vocais. Curiosamente, obtém caráter sólido de pano-de-fundo um mix de “vidinha” hiperconfessada e lugares-comuns de um poder necrofílico a tentar sustentáculos/tentáculos pelo abstruso de uma sem-razão – sem-noção total – de estar onde se está (de permanecer tudo como está).
Justo quando no ápice da pandemia – com o Brasil no epicentro planetário, desde março de 2021 – grande parte de nossa população procura se manter numa autoimunidade típica da denegação do coletivo, do horror ao socius tal como é: diverso, disseminante. Algo alastrado, entretanto, para os pretensos bolsões privilegiados de classe em progressiva exposição da miséria que produzem e lhes dá sustento.
Prepondera um reservatório de referendos passadistas em descompasso com a política dos mundos em tempo e corpo presentes. Os pronunciamentos avalizados por Redes de Notícias e ruídos replicadores do senso comum se mostram incapazes de serem transmutados em estratégias decisivas de deposição de um quadro político cada vez mais denunciado – no cotidiano de crescentes mortes nada naturais (conduzidas aos rounds de uma CPI) – pelo trabalho letal do Novo Corona Vírus.
Um pool de opiniões reiteradas – palavras-de-ordem e contra-ordem – acaba por se formar em torno dos dispositivos mediadores/discursivos/vocalizadores, entre a instantaneidade e o arquivamento.
O tel/cel – em zona franca Whats/zap – bem centraliza – como ícone compacto/portátil indicador dos tráfegos tecnotrônicos – a suma do poder da voz sobre a ação direta no real. Não à toa, as Fake News vêm sendo alinhadas à formação das governanças, no Brasil e em outros países. Por obra da legitimização do porta-voz-comando ao alcance de mãos e ouvidos mecanizados pela visibilidade do que a impalpável e tantalizante teia da Web, a um só segundo, veicula e faz consolidar no poder dizer/digitar de cada usuário como fonte fidedigna, original-final.
Jonathan Franzen, em um artigo já antigo[1], sinalizou a sobreposição de emissões-padrões da vida privada sobre a premência e a relevância do contato a ser transmitido por um celular. Quando toma o primeiro plano o “nada a dizer” como inevitável automatismo (inevitavelmente, revelador do “tudo dito” por esse estar-aí com um aparelho entre as mãos, movido pelos truísmos da elocução).
A telefonia portátil desenha há muito tempo – para lá de 25 anos em trânsito de um a outro século – um suporte para compreensão dos limites e horizontes da voz humana, envolvida e enredada, desde então, pela mecânica de uma autoenunciação e pelo aporte em um background tão disperso quanto prontamente viabilizado por dispositivos. Rege tal comunicabilidade incessante, transmitida por uma bateria de termos referentes ao direito de se ter onipresença e opinião: o vínculo com uma época orientada por imensos contatos (de voz, leitura e visualização conecta all the time) a longa distância. Tudo aquilo que se embasa numa consensual/compartilhada tecnologia humana guiada por “energia, empatia, potência” de palavras-senhas.
O panorama virótico impõe, contudo, um antes e um depois. Tal cena não se propaga pela simples divisa estratégico-comportamental a exigir em plano privê a mudança dos hábitos correntes (como se anteriormente fluísse algo “normal”) sob a ameaça concreta de uma questão de saúde a regular existências e governanças. Em termos de emissões-enunciações-expressões é que um racha se revela bem pronunciado desde o início de 2020. Tomou um timbre irremovível de ferrugem – data vencida – o que havia antes a favor ou contra o terror sob imagem de Governo a reger as vidas num pressuposto pacto democrático.
Impossível, retornar a um mundo implodido nas suas premissas de soberania – já em vias de exaustão nas formas de barragem/blindagem das demandas e agendas sociais, das chamadas “políticas públicas”.
Impraticável se revela o lugar-comum do normal como algo passível de adquirir um contorno novo –
Como se a reivindicação de volta à normalidade articulasse automaticamente a novidade, sem que haja a incisão de um corte histórico a se impor a partir de agora/agonia do presente. Assim como a necessidade de uma reconfiguração do humano emerge no horizonte de todos em suas bases. Por conta do profundo abalo sofrido em todas as áreas/formas de vida, criação e trabalho no rastro do vírus, que não omite sua implacabilidade ao compasso de uma voltagem/voragem, inseparavelmente, político-sanitária.
Novelário/Noticiário
A conversa-corrente montada em termos de noticiário se funda na sequência do painel televisionado, disposto em grid, como uma infindável “novela”.
Imagens – Clarissa Kiste, no filme Todos os mortos e na telenovela Amor de Mãe (ao lado de Duda Batsow)
Curiosamente quando o formato telenovela – trama ao fundo do real Br –, de certo modo, acabou, sendo submetido a uma postergada continuidade. Veja-se o caso Amor de mãe, com sua sucessão diária transferida, por força do Novo Corona, um ano depois sob a configuração de temporada, característica de um Seriado. Rompe-se, assim, a produção freneticamente ininterrupta de um título telenovelesco sobre outro como o próprio existir de segundo a segundo (nos intermináveis horários televisivos em transmissão de traumas-tramas).
Desde a deflagração do Vírus, só há reprises e remakes do fluxo serializado, por mais que se anunciem novidades extraídas de thrillers e melodramas vintages, em suas passagens de Séculos XIX-XXI. Gêneros recombináveis à exaustão do já visto e do lançado a um futuro feito um furo no tempo cada vez mais pânico e previsível (em seu achatamento gradativo, na condição de um tópico eminentemente profilático).
Tecnologia, política e ficção/fabulação acabam por formar um circuito interrelacionado e intercambiante.
O político, tal como definido e recepcionado entre nós dia após dia – no segundo-a-segundo mais e mais nefasto do Brasil Epicentro Corona –, foi reduzido a comunicações de rotina. Quando são prementes – desde “ontem”, o não-normal, desde então – decisões acerca de um evento virótico, que provém de várias fontes – geopolítica/engenharia social/guerra bacteriológica/corporativismo da ciência/demografia em contexto neonecroliberal – e insemina várias dimensões do estar vivo.
Vive-se, na real, a historicidade de um sobrerromance mais do que a fiação telenotícianovelada. Com toda a pulsação de um gênero vindo da literatura assinalado desde suas origens pelo traço de problematização no que toca ao vínculo indivíduo/sociedade. Algo que, nas acepções contemporâneas dos longos relatos, se formula como
Polifonia indiscriminada (ao revérbero de monólogos mais e mais exteriores)
Pactos vivos simultâneos com comunidades em tempo real, para lá da demarcação de lugares reconhecíveis (pela via-padrão de um sociologismo, p. ex.)
Donde o desenrolar/romance enquanto vir-a-ser das forças em contato/contágio e combinações heterogêneas de uma base coletiva inadiável, em fomentação
A nomeação de Romance para uma forma literária sempre posta em confronto com seu fim vem sendo entendida na atualidade simplesmente como Narrativa. Precisamente, quando se tem em pauta o desinteresse pelo ato de ler um desdobrado entrecho, capitaneado desde os 1900 por fórmulas sequencializadas em diversas dimensões audiovisuais, Entretanto, num exatracampo – Através de uma superposição das réstias do mundo romanesco ao andamento de uma outra moral, não-modalizante, avessa a estatísticas e estratificações da chamada Vida Social, o pacto com o romance sobrevém bem nessa hora, em recentes, renovadas configurações de leitura/subjetivação da experiência e imagem-do-mundo mundializado, serializado.
SobreRromance.
Ou modulações do narrativo ao ritmo redobrador da finitude em suas máximas escalas –
A contar das mais compósitas absorções do universo fílmico, disposto em diferentes fluxos e serializações, a atualização do que se chamava romance não pode se abster das potências advindas do âmbito do livro, do elo mínimo, minimal que seja, entre personagem/tempo/espaço em recriadas apreensões do ser, da história e sua contingência geofísica/ambiental, multívoca sempre. Daí, o ímpeto e o apelo do ato de narrar sempre presentificado nos vestígios e viroses da linguagem – sob os limites e liames do humano, em seus devires e também derivas.
Algo capaz de potencializar o entendimento das criaturas no fluir do tempo. Exatamente, como se dá agora, quando tudo parece frágil, falido, mas nos impulsiona para direções impensadas, não necessariamente fatalistas. Bem mais ao contrário:
As irrefreáveis fábulas insurgentes no contrafluxo do factual mediatizável compõem os trajetos plurais de todo-existente. Como se escrevem, leem e se reativam os traços lançados pelas vozes multifacetadas que os narradores/leitores/fabuladores em formatos e ficções os mais diferenciados são capazes de ressituar. Por meio dos elos refeitos com a compreensão do político, da socialidade, do poder mais dilatado de imaginar e sequencializar grupamentos em formação/corpos polivantes capacitados a alcançar as enunciações anônimas menos frequentadas, em toda sua abrangência e diversificação.
SobreRromance – Sopreposições vocais (a matrix dialógico-polifônica despontada na genealogia do gênero narrativo em larga extensão, no ver de Bakhtin) sem adestramento e endereçamento às modelações da notícia (do reportável, visibilizado como fato, dado-acontecimento).
Sob foco total do que faz evento entre realidade imediata e ato fabulativo em desmesura (à altura da propagação do vírus em frentes várias juntamente com seus canais comunicantes). Gesto vivo, multiplicador de forças e formas, desgarrado do rumor, da tautologia do permitido a dizer, a replicar a mesmerização do mesmo, à sombra do potencial comum/coletivo.
A tecnologia dos suportes e aparatos/aparelhamentos não subsiste apenas como virose fake ou verídica de noticiários – Suplementa-se para fora de tais dicotomias, habilitações opinativas, inserções em modos de ver/dizer já consolidados. Não prescinde de um corpo a corpo real, simultâneo aos registros informáticos/informacionais, historicamente amplificador dos horizontes já testados.
Tal como a forma-romance em mutação constante – em face do vírus-linguagem sempre insidioso em seu campo de criação – induz à reinvenção. Por meio do vínculo indissolúvel da existência de cada um – o que se entendia como pano-de-fundo sustentador da arte de narrar –
Sobre/Romance da História enquanto Cartografia das Subjetividades nascentes na contracorrente de uma reiterada Vida Real unidimensionada –
A arte narrativa (extraída da tradição romans) ensina, erotiza, encadeia o disperso, o decorrido. Em corte com qualquer lastro de Bildungsroman: outro novo/inteiramente outro aprendizado de época/ser/linguagem se faz urgente. Pelo advento de outra sequencialidade/serialização na linha (não apenas atrelada ao funcionalismo tecno/electro) do tempo.
Por força de uma religação com a potência de imaginar e suscitar uma epicidade básica (pós-aurática, desprovida de totalizações), dotada de provocadoras amplitude e grandeza. Especialmente, em um contexto e momento inadiáveis para uma intervenção integral, imediata, tocada pelo prazer e pelo compromisso de estar vivo. Existência fabulada em seus máximos vetores de gente variada em trânsito na Terra, no trâmite desse agora.
Acima de qualquer ditame de poder e da fixação de um real/normal em nome da única notícia (ou da Última Novela, sempre a seguir).
[1] “Amor sem pudor”, Folha de São Paulo, Caderno +Mais!, 16/11/2008.