Cantor-compositor, band-leader do grupo pop Maria Angélica Não Mora Mais Aqui, Fernando Naporano vem publicando desde os anos 2010 livros timbrados com uma dicção muito singular, desconcertante mesmo, através da fusão criada a partir de um repertório lírico bem variado com andamentos inusitados de escrita experimentados em vários campos das artes na contemporaneidade. Surpreende a via hiperlírica tomada por Naporano, na qual o uso da primeira pessoa reconfigura as quadraturas da convenção meramente expressional, apontando para uma revisita desabrida aos lugares reservados a poeta/poesia no espaço literário. No conjunto de suas 12 obras, podem ser apreendidas referências do que de mais impactante a modernidade literária vem imprimindo em séculos de romantismo, simbolismo, vanguardas e demais desdobramentos percutidos no presente milênio. Nos últimos 7 anos, foram editados no Brasil, na Inglaterra, na Espanha e em Portugal, os livros Detestável Liberdade; Scarlet Sin; A destruição do gelo; Sem mais ninguém a dizer adeus; Cocaína, Falésias & Bonecas; Gardênia em chamas e ...Sob a Estrela da Misericórdia.
Mauricio Salles Vasconcelos –
Sua produção poética vem se desenvolvendo ao longo de décadas, mas passou a ser publicada depois de sua atuação no campo musical como letrista e frontman da banda Maria Angélica Não Mora Mais Aqui (em atividade entre os anos 1980-1990). Como foi a convivência entre literatura e o universo pop no que envolve especialmente a poesia?
Fernando Naporano –
A poesia vem de muito, muito antes da formação do Maria Angélica Doesn’t Live Here Anymore, que durou de 1984 a 1991. Minha iniciação poética, por assim dizer, deu-se aos meus 7 anos de idade quando me apaixonei pela minha professora (loira, alta, de cabelos longos) Maria Lúcia, do primeiro ano letivo do primário. Não aceitando e execrando questões de idades & dramas geracionais, custava-me entender porque ela não aceitava ser, oficialmente, minha namorada.
Para efetivar minha paixão por ela, passei a escrever frases, versinhos e fulminantes declarações de amor a ela.
Descobri – por esforço próprio – onde ela morava. A cada semana ou algo assim, eu depositava um bilhetinho “poético” debaixo da porta de seu apartamento. Passei a infância e a adolescência escrevendo contos, frases e poemas. Vale frisar que desde muito jovem enfrento o mesmo problema, a mesma constelação da injustiça, ou seja, sou boicotado ou passo batido por editoras.
Nunca constatei ou convivi com nenhuma criatura de intenso ou, minimamente, relevante teor poético no universo musical do pop-rock brasileiro. Nunca notei nenhum interessante poeta no chamado boom do rock brasileiro dos anos 80. Todavia, dentro do universo musical internacional, muitos foram os artistas que, em termos de letras e concepção poética, me iluminaram. De Bob Dylan a Gene Clark, passando por Peter Gabriel, Peter Hammill e Lou Reed, sempre estive atento ao reinado poético das composições do tecido do rock e do pop, mas não admito nenhuma influência de nenhum deles na minha escrita.
MSV –
Você tem um projeto literário bem desenhado, construído no conjunto de seus 12 livros publicados? Como você vem concebendo seu trabalho poético?
FN –
Sim, doze livros publicados e ínfimo reconhecimento. O fato de eu ter editado a maioria dos meus livros fora do Brasil, seja na Espanha, Portugal ou Inglaterra, também muito contribuiu a minha posição de poeta supra outsider. Os críticos da mídia contemporânea só escrevem sobre editoras de médio a grosso calibre que tem lá suas afinidades comerciais e publicitárias com os chefes da parada.
Concebo minha larga produção (que inclui material para, pelo menos, mais 10 outros livros) com a devida graça da mais plena frustação. Não sou citado por nenhum escriba de plantão. Muitos fingem que não me conhecem, outros comentam, digamos em correspondências ou até em encontros pessoais, que vão ajudar a tornar minha poesia conhecida, mas não fazem nada, não falam uma palavrinha a meu respeito. Outros, assumidamente, fazem questão de fingir que não existo.
Obviamente, não me convidam para quaisquer eventos, feiras e muito menos para nenhuma mesinha redonda ou quadrada e sei – perfeitamente – que minha escrita causa espanto, incompreensão e um profundo silêncio das mais diversas turminhas que transitam nos corredores de moda da poesia. Os poucos – mui ilustres, por sinal – como Claudio Willer, Rodrigo De Haro e Roberto Piva que realmente amavam minha escrita já não estão conosco nesse planeta chamado Terra. Concebo minha escrita como algo único, estupidamente singular e de rara beleza, totalmente na contramão de tudo o que tem por aí.
MSV –
Escrevi sobre sua poética, há alguns anos, ressaltando um traço hiperlírico. Percebo, ainda, tal dimensão, sendo conduzida com um sentido apropriador e redefinidor no que toca à enfatização extremada da tradição lírica (em especial, o Romantismo), ainda que combinada com outros estilos e dicções modernos.
Trata-se de algo deliberado na direção de um propósito renovador, ao mesmo reverente a um modo algo antique, como se tratasse de um dado imprescindível à escrita de poesia?
FN –
Aprecio bastante a tarja de “hiperlírico”. Minha escrita reflete um bocado de hiperlirismo, por assim dizer. Acho mais que tenho um mágico toque muito mais pessoal do que moderno. Não tenho simpatia alguma por nuances contemporâneas, muito menos modernas ou pós-modernas.
Sem dúvida minha poesia tem uma tonalidade antique, pois me alinho com poetas clássicos e mui antigos. Não busco inovar ou renovar nada, apenas dou sequência a meu estilo ferozmente pessoal e escrevo com intensa rapidez. Jamais volto atrás a qualquer poema, jamais reviso o que escrevo e jamais trabalho a palavra. Tenho muita coisa melhor a fazer do que ficar “trabalhando” a palavra. Ou o poema fica prontinho em 3 ou 4 minutos ou ele não existe. Não creio ter quaisquer intenções ou, por delicadeza, replicando sua pergunta, algum propósito. Escrevo a troco de nada e, possivelmente, para poucos leitores. Entretanto, sinto que essa minoria – que não faz parte das vitrines do Instagram – realmente curte minha escrita.
MSV –
Em termos de experimentação, como situa seu universo poético?
FN –
Gosto muito de experimentar, de brincar e inventar, desde que isso seja feito da maneira mais rápida possível. Não me permito a pensar ou repensar um poema. Tenho muito mais a ver, por exemplo, com o lado concretista-experimental de uma Ana Hatherly ou Salette Tavares do que com qualquer poeta surrealista.
Se, por exemplo, estou a escrever em inglês, língua na qual me sinto plenamente confortável, o mesmo princípio se aplica, ou seja, me alinho muito mais com o experimentalismo de um E.E.Cummings do que, digamos, com a tradição beat tão consagrada. Aliás, não tenho afinidade alguma com a beat generation.
Gosto de experimentar o mesmo poema em 3 ou 4 formatos diferentes, usando as mesmas palavras e o mesmo número de versos em cada estrofe, mas emitindo significados completamente diferentes – e até contundentes – no mesmo livro. Diria ser isso, algo como uma “fórmula” experimental por mim criada.
MSV –
O que pode ser posto em relevo na vida presente da poesia? Especialmente, colocando-se foco no contexto multimidiático no qual o livro comparece como um referencial circunscrito a uma esfera muito específica, desafiada ao diálogo com mutações culturais de toda ordem, entre as quais a tecnológica?
Em desdobramento a esta questão, o que fascina você no que se publica e se destaca como poesia contemporânea?
FN –
Excetuando, um Vasconcelos aqui, uma Becker ali e um Ariel acolá, não sei nadinha da vida presente da poesia dos dias de hoje. Não acompanho nada dos autores contemporâneos. Vejo sim muita mediocridade circulando em meus raros e mui breves bater de olhos por aí. Tenho horror – amplo, total e irrestrito – à tecnologia e mal sei usar, por exemplo, um Instagram. As páginas que existem a meu respeito no Instagram (https://www.instagram.com/mariaangelicadoesntlive/& https://www.instagram.com/fernandonaporanoliteratura/) nem sou eu quem as faço, mas um pequeno grupo de admiradores do sul do país que catam coisas em torno de minha obra.
Na verdade, sou alguém que parou, digamos, num Blake ou num René Char e tenho zero interesse em fustigar ou ler algum Zezinho ou Zezinha dos dias atuais. Devo anotar que leio muito, muito pouco. Sou extremamente preguiçoso e sem quaisquer covardias intelectuais. Eu sou do tipo que fica três horas olhando para o mar e é por isso que moro frente ao mar. Nada me seduz nessas criaturas estampadas nas badalações de saraus, redes sociais e máfias editoriais.
MSV –
Com qual vertente atual de poesia você tem afinidades?
FN –
Nenhuma vertente. Se existem, eu não tenho a mínima vontade de conhecer. Em termos de poesia, prefiro reler ou vir a conhecer o que ainda me falta de mestres como Joaquim Manuel Magalhães, Rilke, Octavio Paz, Trakl ou Kaváfis que investigar seja lá o que for do Zezinho ou da Zezinha da parada de sucesso desse fim de mundo, superficial e líquido, que vivemos.
MSV –
Na atualidade, como vê as configurações tomadas pelo pop enquanto estética, procedimento e processo criador não apenas na música, mas em diversas manifestações de arte e linguagem. Na elaboração de seus poemas, há uma sintonia com essa órbita? Seu perfil como poeta se nutre, de algum modo, da experiência como band-leader?
FN –
Sou meu próprio band-leader. Sou mais só que uma pedra esquecida na areia de qualquer praia deserta. Não faço parte de partidos, grupos, panelas e afins. Sou 100% um outsider. Não tenho admiração ou quaisquer sintonias com esferas musicais contemporâneas. Do pouco que ouço, leio ou vislumbro, mui de relance, em nada me atrai ou me inspira o atual cenário artístico mundial.
Devo também anotar que nada, absolutamente nada na minha poesia é elaborado, apenas são jatos nascidos e finalizados em 3 minutos. Eu não reflito ou lapido nenhuma palavrinha de cada um de meus poemas. Também,
– jamais e jamais! – releio o que escrevi. Nunca e nunca abri um livro meu publicado. Quando viram livros, sim, são meus filhos. Ficam à solta, à deriva na terra de ninguém. Filhos esses que foram embora, para o mundo e para sempre! Não tenho vontade alguma em revê-los. Eles seguem as vidas deles. Muito solitárias, pelo que me consta.
MSV –
O que significa fazer literatura no atual momento do já não tão novo milênio? Estar numa época como a de agora influi de alguma forma na arquitetura de sua poesia? Mostra-se como algo decisivo?
FN –
Em nada, em absolutamente nada me alinho com as feições desse atual milênio, tão flácido quanto gasoso e banal. Sem significado e sem significantes. Com total desprendimento e frieza observo tudo muito à distância. Noto bandos e bandas de chatos e chatas criando coisas chatas para mais chatos e chatas ficarem em deslumbramento. Tendo, de quebra, outros chatos e chatas debatendo as excrescências de um vazio terminal, ególatra e descomunal.
Instagram : https://www.instagram.com/fernandonap/
10 Poemas
O Fadário Da Adição
Fomos, devagar, a sílaba do infinito
na-né-ni-no-não exprimiu a criança de 7 anos
Ela é agora a inocência do quase-foi-canto,
o barranco, onde brincando, parti a pena da sorte
Sabíamos que apenas havíamos ressuscitado
mas que o fosso da morte ainda era a própria morte
Anotação Do Olhar Fitando Uma Boneca Verde De 1959
Fosfóricas emoções de quem quer desaparecer
– vibrai, oh gargalhada de leão-girassol –
por hoje, peço essa canção para morrer lentamente,,,
dando-me o direito de ignorar a estiagem da luz.
***
Neste mar
em Arrieta
divido
a minha sorte
Que dele nasça
meu outro coração
Sejai o sangue
a herança
partilhada
entre o escorpião,
a gaivota
e Heine
Immersion in Deep Gloominess
Darkness shines on, amply drenched,
pervaded by its own mirror,
internal honey-gall boils clenched
Principle of death denied & nearer
Through the Looking Glass
A agilidade inaudita dos vidros
espaçados nos casebres da memória
tem a imperceptível duração dos segundos,
a claragonia das janelas de cevada velha
com trapos inúteis travestidos de estrelas*
A resolução Do Branco
O inerente fim da procura
revela-se sempre em si mesmo;
das migalhas e manobras
deixadas ao longo do caminho
o corpo
ainda
alimenta-se.
De restos & rezas rasas
a rosa dá nome ao sonho.
Ballade Slave
Scarlet will be encrypted in the Heart
at you r name, a tango waltzing a dream
until-forever, Descartes seizes a dart
at your size, Star upon a lilac scream
Analogia ao Pé da Metafísica
Me lembro passados tantos anos
– sem qualquer inflexão a respeito –
que estive alguns dias
em Chicago
completamente sem propósito
e sem nadinha a fazer por lá
Coloco agora
no meu jazigo de vida perdida
mais esta lembrança
que não ultrapassa o fato
de ter ficado dias a fio
num quarto de hotel
sem mesmo ter conhecido
patavinas da cidade
O deslocamento a outro país
esvaziava os rios, os ritos
de minhas hesitações
e às margens incolores
do nada
eu regressava à obscuridade da infância
Pensando bem
repeti este mesmo hábito
em outras capitais
– as mais cosmopolitas, em função de ofendê-las –
dos Estados Unidos
ainda que furtam-me as recordações
de seus nomes
Era algo
como estar suspenso, lasso ao ar
– com o vento prateado de Lake Shore Drive
a me curvar à terra –
a cingir, a vagar
apenas com uma relíquia da mãe
no calor do sangue
Ah! Maravilho-me em anotar
que me fartava
de uma realidade cheia de vazio
plena de dias parados
de charcos refletidos
no espelho verde garrafa do quarto
sem qualquer incômodo
com o real
As únicas coisas em movimento
nessas viagens
eram as moscas
que escapavam da música
de Sam Rivers
e em cadência de fuga
rente à primeira boca
em diluição de infinitos
despencavam
na puta que as pariu
oh lugar tão primeiríssimo
recôndito de bálsamo
sempre, abismo em ventre
disfarçado
de Chicago
Introdução Ao Rigor De Despedidas
A tarde cinza-bosque não perdoa os condenados
::: os detém em seu invólucro de barbantes de névoa.
Há a dilatação natural das perdas
que esperam explodir indistintas entre as estrelas.
A tarde bosque-cinza não afasta quem tudo perdeu
::: acolhe quedas em sua ilusão de invernos em febre.
Há o reencontro com a água-lástima
que vira sereno explodido-finito entre as orelhas.
Estrela-orelha na cinza que percorre o bosque :::
Orelha-estrela no bosque todo-todo em cinza :::
Há agora o mais-nada,
a percepção tão decepada
o sono sem nome, contido na expressão
da vírgula,
vígilia de todos os que vão embora
no ritmo de um poema
:::
Suite Bergamasque
Dazzled ,,, DandyOrion
Debussy, Dogma&Divine
Dynasty : Dandy & Lion
Shine on! O Sun-Shrine