Escrita em cena: escute o som dos anéis de Saturno

(Maria Aparecida Junqueira)

O som dos anéis de Saturno. Priscila Gontijo. Rio de Janeiro: 7Letras, 2020

Escrita em cena: escute o som dos anéis de Saturno

Maria Aparecida Junqueira




Ficando só, refleti algum tempo, e tive uma fantasia. Já conheceis as minhas fantasias. (...) A imaginação foi a companheira de toda a minha existência, viva, rápida, inquieta, alguma vez tímida e amiga de empacar, as mais delas capaz de engolir campanhas e campanhas, correndo. (...) Neste particular, a minha imaginação era uma grande égua ibera; a menor brisa lhe dava um potro. (Machado de Assis, 1979, p. 852).


Desconcertante e misterioso é o que escuto, é o que se escuta. Não há brisa, mas vento, ventania, tempestade. É o som dos anéis de Saturno de Priscila Gontijo.

Em saturno, o planeta, a ciência diz que intensas tempestades de vento caracterizam-no. Os anéis circundantes no seu plano equatorial não só o diferenciam no sistema solar, mas também dão-lhe charme. “Os anéis de Saturno são formados por partículas e fragmentos maiores de rocha e gelo, originárias de asteroides, cometas e luas que foram destruídos pela força gravitacional do planeta” (GUITARRARA). Uma espécie de escudo – captar objetos que passam por perto – e, simultaneamente, de beleza – valer-se dessa matéria. Os anéis são indicadores de beleza única, visual e sonora, olho e ouvido humanos têm ganho, a cada descoberta da ciência, perplexidade. Além dos anéis, tem muitas luas, a missão de exploração Cassini totalizou 82. Dizem que Saturno deve perder seus anéis daqui a 300 milhões de anos, não nasceram com ele. Earl Maize, diretor da missão Cassini, diz que "A região entre os anéis e Saturno é, aparentemente, um grande vazio". Saturno é conhecido como um gigante gasoso. Até Galileu era um ponto brilhante no céu. Planeta em transformação. É ainda um planeta desconhecido, errante, mas a ciência já descobriu várias de suas maravilhas: vulcões de gelo, qualidades de suas luas, atividade dos anéis, lagos de metano líquido, luz em crepúsculo, belezas indescritíveis.

Cosmologia. Cosmografia. O universo cresce em signo. Dimensão admirável.

Pés na terra, mente em estado de imaginação, grande égua ibera, companheira da existência.

De que som tratam os anéis saturnianos de Gontijo? Som entre anéis? Som entre anéis e Saturno? Som entre Saturno e seu anel mais próximo? E há vazios entre os anéis e saturno? O espaço soa que som? O som guia as personagens? Em que órbita giram? Um planeta errante, existência em errâncias.

É o pai da protagonista narradora, a qual quer viajar para outra galáxia, pai jornalista, que lhe “mostra o som dos anéis de Saturno”, e ela ouve “a trilha para armazenar a viagem dentro” (p.96) – longa, muito longa e entrecortada – um existir por tempos desconexos. Som que se repete no romance e é reencenado nos anéis. A voz do pai, justaposta ao som, nunca esquecida.

Ressoa como orientação ao escrever:

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Meu pai diz que sou muito imaginativa mas que isso não é perigoso.

Nenhum perigo, perigo nenhum, ele repete sem tirar os olhos do jornal.

Mas depois das duas advertências, meu pai explica que talvez seja melhor
eu escrever as redações na terceira pessoa. Assim, ela. Assim, ele.

Eles.

Isso cria um distanciamento moral e deixa o tranco menos violento,
diz meu pai (p.28).

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O pai permanece, ainda, em rastro de som, pondo um FIM sem terminar – o romance, a cena, o ato:

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Pai, o que é amor?

Um boi. Ou uma égua. Ibera.

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Que não termina, não começa de terminar, não termina,
não termina de começar,

vai do início, filha (p.203).

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Em três partes se divide este romance ou em três grandes atos, este teatro. A parte I, ato I com vinte e quatro cenas, a parte II, ato II com 18 cenas e a parte III, ato III, com dez cenas. Só as últimas sem título, são rastros, ruídos, som. Fatos e cenas se deixam preencher e ser preenchidos pelas anteriores. São interligadas por temas num movimento de ir e vir de som ritmado que explora o visto, o ouvido, o vivido, o experimentado, o fantasiado, o violentado na escrita e na vida, em surtos de angústia, melancolia e desamparo. Além da protagonista que narra, outra voz cruza a narrativa, cortando tempos e signos dissonantes. As personagens se extraviam de si ou em outros, num coro de vozes, em busca da “viagem dentro”.

À moda do teatro de Nelson Rodrigues, Priscila Gontijo amalgama em cada ato e entre eles, os três planos: memória, alucinação e realidade. Mostra o esgarçar do consciente e do subconsciente da protagonista menina e da família inteira em seus substratos de parentesco: a menina, as tias, a mãe, o irmão, o pai, a avó, em relações familiares degeneradas, destruídas. Ações entrecortadas, entre tempos descontínuos, articulam-se nos três atos. A última cena da Parte II, cena 42, A VOZ, enuncia:

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Nosso último ato. O infernal. A grande descoberta do vácuo. A tangível solidão da lacuna. Os parentes se despedem. Eles saem pela coxia da esquerda para entrar uma possível moradora ao fundo.

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SEM EPÍGRAFE. SÓ ALGUNS PARÊNTESES QUE SE REVELAM DURANTE A TRAVESSIA. NA ANGÚSTIA DO AQUI, TÃO PRESENTE ENCRUZILHADA.

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Do pai.

Da mãe.

Da casa. (p.159)

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Ou na Parte III:

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(...) Você me encara como se eu fosse culpada, como se fosse uma criminosa, mas esse pode ser o meu último minuto aqui dentro. Neste teatro.

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Começa o terceiro ato. Sinto uma espécie de contagem regressiva. Se tudo isso acaba, o que me resta?

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Silêncio. Recomeçou.

Se por acaso eu sair viva, para quem ligar? Entre todos vocês quem?

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Mãe, lembrei! (p184)

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Memória, alucinação, realidade – três planos rodrigues-gontijianos, três anéis a circundar, a envolver a protagonista menina. Entre eles e a menina: “A grande descoberta do vácuo. A tangível solidão da lacuna” (p. 159), o som dos anéis, a beleza da escrita – afunda, mergulha. "A região entre os anéis e Saturno é, aparentemente, um grande vazio", diz Earl Maize, diretor da missão Cassini. As cenas, as vozes, o som, a respiração, viabilizam a passagem de um plano a outro, por meio de cortes abruptos, imprevistos. A escrita se faz corpo, inscreve seu movimento em cenas-fragmentos que se repetem, deslocam-se em ritmo dançante. Um fio tênue, dançante cirze o narrar, insinuando tempos dos 8, dos 18, dos 40 – “Pergunto: Doutor, como se começa aos 40 anos? Mas isso ele não responde” (p.33). “Em poucos minutos e lá se vão quarenta anos. Ou mais?” (p.189).

Travessia vertiginosa, palco de transformações, a experiência desta escrita e de sua leitura se envereda para o delírio, exibindo sintomas de loucura. Sons e acordes dissonantes radicalizam-se na escrita e nos levam para o vácuo: “onde estamos?”. O pai pergunta e o leitor se embrenha por labirintos submersos atraídos pelo escuro e pelo risco do advir. Há um abismo na personagem e em nós, a escrita convida à “viagem dentro”, feita de “lufada gelada de vento” (p.153). A escrita de O som dos anéis de Saturno quer ser o abismo e, em sendo, exibi-lo naquilo que tem de irregular, impreciso, obscuro, informe. Fala de um excesso de vida, de forças em conflito, de um existir em entrechoque:

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Sempre fui sozinha, é só uma questão de continuar. Só que do lado de fora. Como se eu tirasse esse quadro do lugar para ver o que tem por trás. A parede nua. Tirar a parede e ver o que tem por trás. O banheiro nu. Tirar o banheiro e ver o que tem por trás. Um novo cômodo. Tirar o cômodo e ver a rua. Tirar a rua e ver a calçada. Tirar a calçada e ver o arranha-céu, tirar o arranha-céu e ver a montanha e depois a água que jorra por trás da montanha, os verdes vales, o deserto e subir até o céu. E acabou.

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É só virar do avesso. Como usar a meia ao contrário. Lá fora é o avesso (p. 65).

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Há nesse viver um risco, uma vida em perigo que narra o extraordinário, o sutil, o natural com a urgência dos tempos e um sofrimento implicado, intercambiado com a vida. Encarar a existência sem subterfúgios é o que a protagonista narradora busca na força de seus gestos. Um modo de se entrever Artaud e seu teatro da crueldade. Crueldade entendida como experiência vital, longe, portanto, de particularidades da vida, sentido enganoso em seu teatro. Para Artaud (2019, p. 89),

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“teatro da crueldade” quer dizer teatro difícil e cruel (...) não se trata dessa crueldade que podemos exercer uns sobre os outros despedaçando-nos mutuamente, (...) mas sim da crueldade muito mais terrível e necessária que as coisas podem exercer sobre nós. Não somos livres. O céu ainda pode cair sobre nossas cabeças. E o teatro é feito para ficarmos sabendo disso.

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Como escritora, dramaturga, roteirista, Priscila Gontijo enfrenta a palavra, o acontecimento, a força do gesto, na tentativa de empreender o que mais uma vez declara Artaud (2019, p. 95): “o apelo à crueldade e ao terror, mas em um plano mais amplo, cuja amplidão sonda nossa vitalidade integral e nos coloca frente a frente com todas as nossas possibilidades”. O som dos anéis de Saturno aposta em formas de ser/estar no mundo e com a vida, que expõe a sua inexorabilidade. É a sensibilidade do leitor que este romance dramático procura impactar, confrontando as situações de choque e suas perspectivas de conflito. Crueldade implacável tomada na direção do drama, cuja natureza se revela cósmica e amplia a nossa experiência do real, também em cosmografia. Gontijo não manifesta o som dos anéis conceitualmente, mas por múltipla possibilidade põe a escrita em experiência e experimenta a fisicalidade da linguagem nas dobras de imagens e nos meios de encenação da escrita.

Em meio a um jogo de loucura e sanidade que atravessa os personagens, o narrar vai se tecendo numa escrita experimental, quase marginalizada diante das inúmeras formas de produção artístico-cultural nesta sociedade contemporânea e tecnológica. A imaginação como “grande égua ibera”, também “pantera” “selvagem e feroz” (p.121), dramatiza as ações, os gestos no corpo da linguagem e no corpo da língua que elege em cena: como dizer o difícil e cruel.

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Sem insistir no caráter perfeitamente genial das manifestações de certos loucos, na medida da nossa capacidade de avaliá-las, afirma(mos) a legitimidade absoluta da sua concepção de realidade e de todos os atos que dela decorrem.

(...)

Pois um louco é também um homem que a sociedade não quer ouvir e que é impedido de enunciar certas verdades intoleráveis (ARTAUD, 2019, p. 36-164, grifos nossos).

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O som dos anéis de Saturno busca, na medida em que se faz, propor e descobrir analogias gestuais entre música, pintura, teatro, e o gesto feito som na dança dos Anéis de Saturno, planeta enigmático, fazendo seguir “todas as artes a uma atitude e uma necessidade centrais” (ARTAUD 2019, p.90). Daí vozes que se juntam a outras para coralizar o narrar, em som, canto e dança: Samba em prelúdio, Galope do diabo, Sonata Pathetique, Banda de pífanos de Caruaru, Ne me quitte pas. Da literatura aparecem Elena Petrovna Blavátskaya (1831-1891), conhecida como Helena Blavatsky ou Madame Blavatsky, escritora russa, cujo nome intitula cena implicada com conhecimento grafológico. E também a voz contemporânea de “literatura intercultural” da romena Aglaja Veteranyi (1962-2000), premiada na Suíça e na Alemanha pelo único romance publicado em vida (1999), Por que a criança cozinha na polenta (2004).

Aglaja Veteranyi é dramaturga, atriz, diretora, professora de artes dramáticas, escritora e fundadora do grupo de literatura experimental “A Bomba de Palavras”. Priscila Gontijo pondo a prova a linha narrativa almeja-a no limite, em língua estranha, procurando tornar indissociável a existência e a escrita. Exibe sua voz em vocalização coral à de Aglaja, fazendo soar: personagens anônimas, não caricatas; família desfeita; seres solitários com suas dores; melancolia, desesperança, mas há sonhos e esperança, da varanda se vê o céu; espaços sem aconchego; uma linguagem simples e frases curtas; listas, inventários de coisas, aquilo que resta na vida das personagens; para o mundo de fora, o de dentro. Há densidades e o leitor não se afasta, mas sente dor.

Há dissonâncias nas escritas e analogias entre os gestos narrativo-poéticos dessas autoras. Fabiana Machi (2017), em seus escritos e tradução de poesias de Aglaja Veteranyi, é perspicaz na apreensão de procedimentos centrais empregados pela escritora romena, nos quais pressinto a correspondência de Priscila Gontijo. Quem conhece O som dos anéis de Saturno ou mesmo Peixe cego (2016), seu romance de estreia, ou ainda a sua dramaturgia pode também pressentir traços em analogia com o poema traduzido por Machi (2017), presente no romance Por que a criança cozinha na polenta:

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A Casa

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Um estrangeiro nato perdeu os seus sapatos. Ele os tinha esquecido em sua casa e jogado a casa em um rio. Ou será que a própria casa tinha se jogado
no rio?

O estrangeiro nato foi de rio em rio.

Certa vez ele encontrou um velho debaixo d’água com uma tabuleta pendurada no pescoço: AQUI CÉU.

O estrangeiro perguntou: Como assim, céu?

O velho encolheu os ombros e apontou para a tabuleta.

A casa voltou a aparecer, mas em um lugar completamente diferente.

E, provavelmente, era outra casa, pois ela não se recordava mais dos sapatos do estrangeiro.

Mais tarde, a casa perdeu sua porta.

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O romance de Aglaja Veteranyi é autobiográfico, narrado por uma menina que, por meio do imaginário infantil, defende-se da degradação que a rodeia. Ambos os romances põem em xeque as relações do humano. A questão é como se livrar dessa realidade e reinventar a vida. Como escapar do campo de lamentação, desvencilhar-se da melancolia como queixa e acusação, discutida por Freud (2011) em Luto e Melancolia. A narradora de O som dos anéis de Saturno, indicia seu modo de conceber esse estado ao dizer:

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DESSA VEZ, PORÉM, A VOZ AUTORIZA que a natureza mostre a si mesma para o pintor. É só deixar a sua mão se soltar, como um ente autônomo capaz de interpretar por si próprio a realidade, diz a voz (p. 181).

(...)

Algo se perdeu nesse processo coreográfico entre humanos. Nos distraímos e os movimentos do par passaram despercebidos, o ritmo se quebrou.

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Tudo o que queremos fazer é dançar.

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É só deixar a sua mão se soltar, como um ente autônomo capaz de interpretar por si próprio a realidade, diz a voz (p. 183).

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Abandono e melancolia parecem alimentar-se de esperança, de esperança poética, aquela que se reinventa e que tem como alvo a invenção (BLANCHOT, 2001). Alimentar-se desse delírio articulado como necessidade do narrar. Não se trata de patologia, de projetar simplesmente para fora o torpor interior. Não. O som dos anéis de Saturno pode ser lido “Sob o Signo de Saturno”, planeta que rege os seres com disposição à melancolia. Ler à luz de Susan Sontag (1986, p. 98) e de seu apurado ensaio sobre Walter Benjamin, no qual observa saídas possíveis, dentre elas:

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Somos condenados ao trabalho; não fosse isso, poderíamos não fazer absolutamente nada. O próprio devaneio do temperamento melancólico é atrelado ao trabalho, e o melancólico pode tentar cultivar estados fantasmagóricos, como sonhos, ou tentar chegar aos estados de atenção concentrada proporcionados pelas drogas.

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A menina narradora de O som dos anéis de Saturno, entre suas características saturninas, encontramos esta relativa ao trabalho, que ressoa várias vezes: “Preciso terminar de escrever. Só isso. Talvez se terminar até amanhã! Juro. Amanhã termino. Entrego tudo no prazo. É só escrever para lembrar” (p.91). Outra característica definitiva no temperamento saturnino como assinala Sontag (1986, p.91) é a “relação consciente e implacável com o eu” que nunca é dada como certa. O eu é um texto, precisa ser decifrado, é um projeto a ser construído. A menina narradora se constrói na qualidade deste eu, que tem necessidade de estar só, que também dissimula e é sigiloso, compondo e afirmando seu temperamento saturnino.

A escrita de Priscila Gontijo em O som dos anéis de Saturno se mostra como lugar de resistência e prática de experimentação de linguagem. Abre uma zona de incerteza e põe o sentido em risco, nas encruzilhadas. É deste lugar que escreve e procura cuidar da palavra como um acontecimento gerador de sensação. É assim que suspende a temporalidade e encaminha seu leitor para um tempo de fendas e de reminiscências, de um eterno presente que se reinventa em cenas de escrita e faz soar o som dos anéis de saturno.

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Referências

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ARTAUD, Antonin. Escritos de Antonin Artaud. Organização, tradução e notas Claudio Willer. Porto Alegre: L&PM, 2019.

BLANCHOT, Maurice. A conversa infinita. Trad. Aurélio Guerra Neto. São Paulo: Escuta, 2001.

FREUD, Sigmund. Luto e melancolia. Trad. Marilene Carone. São Paulo: Cosa Naify, 2011.

GUITARRARA, Paloma. "Saturno"; Brasil Escola. Disponível em: https://brasilescola.uol.com.br/geografia/saturno.htm. Acesso em 12 de março de 2021.

MACHADO DE ASSIS, Joaquim Maria. Dom Casmurro: Obras Completas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1979.

MACHI, Fabiana. A Poesia de Aglaja Veteranyi. Escrito (nota e traduções). Suplemento Pernambucano. Jornal Literário da Companhia Editora de Pernambuco, 04/10/2017.

SONTAG, Susan. Sob o signo de Saturno. In: ______. Sob o signo de Saturno. Porto Alegre: L&PM, 1986.

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Website

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Por que os sons gravados pela sonda Cassini entre os anéis de Saturno deixaram os cientistas perplexos, 05/05/2017. Disponível em: https://bbc.in/3ezx5AO - BBCNEWS/Brasil. Acesso em 28 de fevereiro de 2021.