Futuro. Passado. Futuro?

(Abilio Godoy)

por Abilio Godoy

Escritor, mestre em teoria literária pela USP, autor de Plano de Fuga (2013).


Uma geração passa, outra vem, mas a terra sempre subsiste. O sol se levanta, o sol se põe e se apressa a voltar ao lugar onde renasce.”

Eclesiastes: 1, 5.



O que foi é o que será. O que aconteceu é o que há de acontecer. Não há nada de novo debaixo do sol. Talvez quase tão famosas quanto esses versos do Eclesiastes, atribuídos ao lendário rei Salomão, sejam aquelas palavras de Lavoisier que asseveram que nada se cria ou se perde; tudo se transforma. Com efeito, aprendemos já na escola os ciclos perenes da natureza. A cada vinte e quatro horas, a terra completa um giro em torno de si e, a cada 365 dias, uma volta ao redor do sol. Manhã, tarde, noite, madrugada. Primavera, verão, outono, inverno. Desde o Big Bang, os mesmos átomos se unem, separam e recombinam, criando, destruindo, reciclando. A matéria dispersa no universo se atrai, se aproxima, se condensa e se comprime até se repelir, expandir, explodir e se espalhar de novo. A energia liberada é absorvida e transmitida através da cadeia alimentar que compreende cada ser vivo do planeta e lhe possibilita por sua vez a perpetuação do ciclo de nascimento, crescimento, reprodução e morte.

Também o ser humano se recicla com o decorrer do tempo. A memória que construímos, as sensações que experimentamos e sobretudo as histórias que contamos, sobre Salomão, Lavoisier, átomos, estrelas, planetas, seres vivos; sobre quem somos, o que é o mundo e que lugar ocupamos nele, esticam-se e espalham-se a cada geração para em seguida tornarem a dobrar-se sobre si mesmas. Massa que se remistura nas mãos do padeiro. Cortes vegetais que se comprimem para formar um papiro. Textos sobrepostos e acumulados no palimpsesto. E, dentro da pequena casa que nos cabe no tabuleiro compacto das nossas vidas, um dia reconhecemos espantados no espelho os olhos – e o olhar – dos nossos pais e avós; os lábios – e a fala – dos nossos filhos e netos.

“Somos futuro passado futuro”, diz a voz poética de “Autorretrato segurando uma foto do meu pai” – contido no volume Sete e meio do poeta Danilo Bueno, publicado ano passado pela Urutau – ao pai, que, já falecido, é, todavia, mais novo do que ele na foto sustentada. “Num desses encontros improváveis / Estaríamos outra vez juntos”, ele sugere ao mesmo interlocutor ausente, no poema “Dois encontros”, “Eu levaria também o Joaquim, / Meu filho, / Um menino de cabelos anelados / Com os olhos da família”. Futuro, passado, futuro. Pai, filho-pai, filho. É nesta reprodução mínima do mais elementar ciclo da existência humana – cujo passado palimpséstico remonta à charada edipiana da esfinge nas figuras subsequentes da criança, do adulto e do velho – que o poeta centra a lírica desse bonito volume. “Os que foram os que são os que vão ser”, anuncia a epígrafe de Jorge Wanderley como um mote que o leitor reencontra a cada página. “Se refizer o coração / que apenas você ainda vê”, propõe o verso de “Xadrez sem mestre”, “lá os antepassados jogam partidas seguidas”.

Não obstante, o poeta sabe que as réplicas renascida dos ciclos divergem sempre em alguma medida do modelo original. Hoje é diferente de ontem. O filho é diferente do pai. Haverá outros instantes, e nunca mais o mesmo. Numa pletora de Aurelianos e José Arcadios, cada um terá sua própria idiossincrasia. Os fantasmas de uma família aos poucos se remisturam nas mãos dos vivos. Tensão que já se insinua no poema de abertura, “O problema dos espelhos opostos”, quando, em contraponto com a simetria manifesta das figuras duplicadas do baralho francês, a voz poética assegura que “O experimento dos espelhos opostos (feito em laboratório) falhou recorrentemente – é impossível manter a perspectiva do próprio espelho, obtendo-se uma percepção diminuta de seu reflexo transfinito”; e que culmina na súplica ao próprio duplo, em “DB antes de dormir”: “Ó meu duplo, / Ó meu irmão, / Não me abandone / Sem você / Sem você / Sou apenas meu nome”.

Assim, os rituais proustianos com que o poeta procura recuperar o tempo perdido; seu ímpeto de reencontrar parentes e amigos mortos e dizer “Aqui estamos outra vez”, “(...) outra vez juntos”, “Todos outra vez crianças”; seu reiterado retorno matinal à casa da mãe, quando “O tremor das panelas volta”, esbarram na constatação inelutável de que a sensação de permanência oriunda da repetição do ciclo é em grande parte ilusória, “O Castelo de cartas/ Invisível / Como as grandes esperanças”. Embora não se entregue a lamentações explícitas, suas perdas deixam-se sentir na melancolia com que, tal qual o personagem de Bergman aludido em “Eu, Antonius Block, movo minhas peças”, o poeta também joga xadrez contra a morte – e não nos esqueçamos de que, se o cavaleiro medieval testemunhava a hecatombe da peste negra, Danilo Bueno publicava seu livro em meio à atual pandemia. “Começa o jogo mais perigoso”, avisa o poeta em “O mistério não foi solucionado”. E “O segredo está”, confidencia, assim como o cavaleiro revela sua tática na cena canônica do confessionário, “Em iludir a madrugada / E ficar bem quieto / No centro da sala”. A partida, ele sabe, está desde o começo perdida. “A madrugada avança / E o passe de mágica / Falha”. “O mistério / Seca entre os dedos”. “A última carta nunca chega / Mesmo que o jogador / Seja pacientíssimo”. A espera ansiosa pelo reencontro é vã e, por mais que ainda traga consigo a memória dos seus defuntos, o poeta não se furta a perceber “O cemitério aumentando de tamanho / A cada ano / E a certeza / De que o amor vai nos destruir”. “O que há agora”, é a pergunta insistente com que parece se despedir da memória paterna, “O que há agora / além de trevas, pai?”. “Tudo que faço parece / Que faço pela última vez”. “O rei que não está”, ele é obrigado a reconhecer, “Jamais voltará”.

O filho, contudo, resta diante dele em sua concretude imediata, com novas demandas, e novos rituais. A vida se separa da morte para renascer imanente, real, sem qualquer sentido mágico, “Com os olhos da família”. O filho ancora a poesia no presente, inventa novas regras para os jogos, rabisca os livros com sua própria arte e sugere, quem sabe, a esperança de poesia no futuro, que, todavia, os versos de “Todas as coisas acontecem precisamente agora” reconhecem como duvidoso: “Com o máximo de cuidado / O futuro já existe / Em vários futuros / Não em todos”. Pois é assim mesmo, com o máximo de cuidado, que o poeta recomenda ao filho, em “Carta”, que “Seja o que você quiser / Quando tiver que ser // Seja seu próprio / Pai // (...) Seja seu próprio nome / E seu nome próprio / Só você pode estar aí // Aí só você / Meu filho”.

Inevitável ponderar se, com esse conselho, Danilo Bueno não se dirige talvez também ao leitor, inalcançável, na outra margem da poesia. Só você pode estar aí. Seja, portanto, seu próprio pai, seu próprio nome. Não se esqueça dos fantasmas e do passado. Não se pode escapar do ciclo da vida e da morte, do amor que vai nos destruir. Pode-se, quem sabe, escolher para si um nome próprio, inventar as próprias regras, adotar-se a si mesmo como próprio filho – o primeiro elo de um futuro que ao menos exista, com o máximo de cuidado e alguma fé na poesia.


Referência: - BUENO, Danilo: Sete e meio. São Paulo: Urutau, 2020.