Abolição do real – a escrita na cama

(Tiago Cfer)

por Tiago Cfer

Autor do ensaio Desabrigo-Mundo - Narrativa Século XXI (a ser publicado em breve)






Não preciso nem mesmo ir ao campo. Não é necessário. Mando meu corpo vestido... Quanto a mim, durante este período, fico deitado na minha cama, debaixo de um cobertor escuro, todo estendido sobre mim, exposto ao ar que sopra pela porta entreaberta.

Franz Kafka



VR Metamorphosis: VRwandlung – Kafka in virtual reality. “What does a beetle read?” | Photo: Goethe 1


Nietzsche e Beckett


Uma certa fisiologia textual apreendida destes dois nomes talvez ainda forneça algo de interessante para a atividade escritural hoje. Alguma textura nova em meio ao excesso de imagens violentas, ordens e redundâncias sempre urgentes que prescrevem e impregnam a nova normalidade. Quem sabe alguma trilha ética e estética capaz de recuperar a escrita como ato e posicionamento vitais em meio à acelerada virtualização – ou desencarnação – da vida.

Nietzsche e Beckett, diferentemente de Rousseau e Kafka, não permanecem no âmbito da suspeição de um “complô universal” para preservarem a fabulação em torno de um castelo – escrita e deambulação até a exaustão de uma linguagem esmagada pelas estruturas opressivas de soberania. Além de esquadrinharem as razões da perversão degenerativa de modos de vida que se servem à gestão de sua permanência numa espécie de sala de espera, eles vão aos centros cirúrgicos da vida para nela operarem mutações, “transvalorações”. Cirurgiões de si, levam a experiência biográfica ao extremo: engendram uma língua inseparável de sua experiência, uma linguagem que se enuncia ao mesmo tempo em que se transforma em destino.

A controversa ideia de “sabedoria” desenvolvida por Nietzsche ao longo de Ecce homo expõe um propósito filosófico, um gesto existencial que pode ser compreendido como permanente combate às formas de opressão e destruição da vida que se passam, ao longo da história, como modelos exemplares até tornarem-se ideais, normas.

A fortuna de minha existência, sua singularidade talvez, está em sua fatalidade”1. Onde, para um leitor desavisado, talvez soe um pessimismo de Nietzsche neste enunciado, celebra-se a conquista de uma filosofia nova. “Eu sou um mensageiro alegre (...) sou necessariamente também o homem da fatalidade”2. Fatalidade, neste caso, significa exatamente o contrário de um sujeitar-se aos fatos. É o modo como o filósofo enfrenta a cultura e recusa seu caráter moral – religioso, científico, filosófico –, produzindo-se como acontecimento único.

Nietzsche revela como ninguém que as funções sociais da linguagem têm, antes de tudo, a finalidade de barrar nossas potências vitais com circuitos de significados desgastados. Jamais expandi-las. Com os valores que nos chegam da história (justiça, honorabilidade, liberdade, amor, etc.), ao invés de uma liberação dos indivíduos e da vida comum, testemunha-se um acúmulo de pulsões e gestos reprimidos, patologias aviltadas, obstinações doentias, fundamentalismos violentos, culpa, punição, vingança, ressentimento. “A língua, como performance de toda a linguagem, não é nem reacionária, nem progressista: ela é, simplesmente, fascista” (Roland Barthes).

O atual estado da vida pública por si só seria suficiente para atestar o que a crítica de Nietzsche, na segunda metade do século XIX, já nos dava a entrever.

Assim, agir contra a linguagem, a língua, e os hábitos históricos nelas sedimentados, é um procedimento que, desde o filósofo, se impõe à escrita. O que obviamente não ocorre por simples denegação, recusa e indeterminação ordenadas – sendo isso, inclusive, uma armadilha para o texto. Mas por uma longa elaboração existencial, um processo de montagem de si por meio de uma linguagem que está disposta, numa primeira via, para seduzir e enganar.

Nesse sentido, a “transvaloração de todos os valores” implica a instauração de uma “antifilosofia”: “Pensamos que é preciso ter vivido de maneira totalmente ‘antifilosófica’ – de acordo com as noções recebidas até então, e não, principalmente, como um recluso virtuoso – para que se possa julgar os grandes problemas a partir de experiências vividas (...) – Durante muito tempo confundimos o Sábio com o cientista e, por muito mais tempo ainda, com o homem educado religiosamente”3.

A filosofia nietzscheana realiza-se como diatribe de uma existência contra as figuras do ressentimento. Partindo da atestação de que a cultura é o princípio da decadência, toda moral utilizada como disparo para a ação (ou inclinação ressentida) precisa ser cuidadosamente abolida. No limite desse enfrentamento à má consciência, o filósofo expõe sua noção de “fatalismo russo”: “aquele fatalismo sem revolta, com o qual o soldado russo para quem a campanha torna-se muito dura finalmente deita-se na neve”4. Nada aceitar, acolher, engolir, em situações de ameaça. Não mais reagir. “Porque nos consumiríamos muito rapidamente se reagíssemos, não reagimos mais: esta é a lógica. E nenhuma chama nos devora tão rapidamente quanto os afetos do ressentimento”5.

Deitar, portanto, quando o combate se torna absurdo, não é um gesto de derrota, mas traição ao impulso ressentido do herói arquetípico, mártir social. Algo que exige certa cautela, coragem e sabedoria de quem incursiona no pensamento e na escrita: saber a hora de parar, descansar, decidir pelo intervalo para um “mais-viver” do texto – intrepidez de quem recua e escrutina uma enfermidade ou crise para reformulá-la, transformá-la em recurso à vida. Isso tem a ver com a arte do estilo, com a inversão fisiológica, em Nietzsche, do que que se entende por saúde, ou arte do grande ritmo: “comunicar um estado, uma tensão interna de pathos por meio de signos, incluído o tempo desses signos – eis o sentido de todo estilo (...) Bom é todo estilo que realmente comunica um estado interior, que não se equivoca nos signos, no tempo dos signos, nos gestos – todas as leis do período são arte dos gestos”6.

Num momento como o de agora, em que a realidade se impõe alarmante, e somos compelidos a agir de modo o mais previsivelmente precipitado, Ecce homo: como alguém se torna o que é nos oferece elementos para uma espécie de “sabedoria da paragem”: repouso, sondagem, discernimento do que realmente se faz necessário. Bem nessa hora em que a noção mais cara à metafísica colapsa, e passa a ser identificada com qualquer motivo ou artifício justamente para acelerar as ações (cf. os decretos governamentais de flexibilização do essencial durante a pandemia, 2020-21), a ideia de amor fati – “não só suportar, mas também amar o que é necessário” – ganha maior sentido.

Ela compreende a paixão de uma individuação desatrelada da pressa objetiva, do fanatismo da ação. A escrita como um modo de ser inessencial e necessário. Ciente de sua completa inadequação às ordens do tempo, o escritor deita em sua cama para examinar o mal-estar da época em seu próprio corpo. Agita-se, mas permanece deitado. Há aí uma disposição muito distinta daqueles que vivem na azáfama metafísica, de sala em sala atrás de uma consulta, cura, solução. A alquimia do verbo, em Nietzsche, tem o toque de uma paciência fatal através da qual a palavra tece seu destino: “quando a verdade sair em luta contra a mentira de milênios, teremos comoções, um espasmo de terremotos, um deslocamento de montes e vales como jamais foi sonhado. A noção de política estará então completamente dissolvida em uma guerra dos espíritos, todas as formações de poder da velha sociedade terão explodido pelos ares – todas se baseiam inteiramente na mentira: haverá guerras como ainda não houve sobre a Terra. Somente a partir de mim haverá grande política na Terra”7.

Diferentemente do excesso de lucidez visionária que antecede os desastres mundiais em Nietzsche, as personagens de Beckett, em meio a destroços, à devastação do espaço ocasionada pelas Guerras Mundiais, apresentam um plano de despovoamento e perda da visão. O “último homem” nietzscheano agoniza. Enturvado, mutilado, imobilizado, encontra-se, entretanto, preso ao movimento automático e incessante de alguma ordem terminal. Seria a narrativa uma necessidade inessencial?

Desde o escuro de sua masmorra o narrador reengendra um corpo, uma linguagem, um mundo. Confinada na massa cinzenta do crânio, sua escrita procura forjar uma imagem com a qual possa lampejar as trevas, atravessar seus muros.

A prosa beckettiana persegue uma fórmula de Kafka: “A palavra, não a vejo. Invento-a”. Opera por rupturas gerando novas derivações, se constrói sob formas quebradas de uma linguagem que, por isso mesmo, já nasce rompida da ordem das coisas. Prepara, precede sua matéria não por excesso de consciência, mas por experimentação meticulosamente desenfreada – anseio, cegueira e esmero de uma escrita iniciada na aleatoriedade infinita. Como bem demonstrou Deleuze, a grande questão da literatura de Beckett é o esgotamento: “a mais elevada exatidão e a mais extrema dissolução; a troca indefinida das formulações matemáticas e a busca do informe ou do informulado. Estes são os dois sentidos do esgotamento, e os dois são necessários para abolir o real”8.

Embora este processo não se dê em sequências claras e distintas, em Nietzsche a lucidez precede a loucura, enquanto em Beckett ocorre o contrário. A visão surge após uma série exaustiva de combinações de linguagens, lembranças, vozes e objetos; uma longa experimentação de lógicas, histórias, cálculos, de tudo o que mancha e sobrecarrega as palavras. Ela surge com a desconexão das palavras de seu lastro familiar – traumas e tramas –, com o esvaziamento do espaço, a despotencialização da linguagem. Aliás, este é um ponto em que a literatura de Beckett e a filosofia de Nietzsche coincidem com Bartleby, em sua “potência de não”.

A radicalidade combativa destes dois autores contra tudo que é “natural” na escrita participa daquilo que Blanchot mapeia em O livro por vir como “um novo entendimento do espaço literário”. Figura como gesto primicial, grau zero, começo desse espaço. Recusa a qualquer religiosidade implícita na linguagem, “escrever é primeiramente querer destruir o templo antes de o edificar; é pelo menos, antes de ultrapassar seu limiar, interrogar-se sobre as servidões daquele lugar (...) Escrever é, finalmente, recusar-se a ultrapassar o limiar, recusar-se a ‘escrever’”9.

Escrever para esgotar o poço, o fosso existencial, como em O despovoador. Um cilindro subterrâneo e escuro de 16 metros de altura e 50 de diâmetro onde vivem duzentas pessoas, uma por metro quadrado. “Buscadores” incessantes que nunca se deitam, submetidos a lógicas as mais estranhas e aleatórias – “Deitar-se é algo que se desconhece no cilindro e essa postura conforto dos vencidos lhes é aqui recusada para sempre”10. Escrever e conquistar um breve olhar para fora, instantâneo, como ocorre com o mais velho escalador do cilindro quando descobre o rosto da “primeira vencida, a referência”, e seus olhos, antes cobertos por longos cabelos ruivos, então reabrem os dele. Ele “acha enfim o seu lugar e sua postura sobre o que a escuridão se faz ao mesmo tempo que a temperatura se estabiliza na vizinhança de zero”11.

Dos cadernos de desenho de Franz Kafka

Está em Beckett o corpo virtual confinado, vida cerebral explorada até às vísceras, feito matriz comportamental deste novo século. O quarto transformado em escritório, no entanto, sempre foi o ambiente “familiar” do escritor. Se a existência convertida em empresa, hoje, nos parece algo assustador do ponto de vista ético, uma vez que a ideia de liberdade se extingue em proveito de um controle absoluto, isso ocorre principalmente porque a lógica do trabalho produz uma realidade ameaçadora à vida. O confinamento voluntário do escritor tem o propósito de contraefetuar essa lógica. Ele não foi forçado à clausura para servir de terminal a projetos fundados em interesses alheios. Se o cárcere do trabalhador de hoje é sua casa, seu quarto, este sempre foi para o escritor o lugar onde ele enfrenta a derrota cotidiana de um corpo expropriado. Ao criar um mundo alternativo, a escrita torna-se fiação de um destino que escapa aos sistemas de captura e predestinação da existência. Interrompe os códigos comunicacionais e os fluxos comportamentais modelados por governanças que se instalam como linguagem primeira no corpo social.

Nesse ponto, parece que a única via para um governo de si se abre apenas com a escrita, como se não houvesse outra alternativa fora dela: me escrevo ou sou escrito. Isso implica dizer que a incumbência de cada escritor seria realizar, ao seu modo, uma abolição do real.


Na cama com Campos de Carvalho


Um fantasma perfura a vida diária, fissura a cabeceira dura da realidade, dissipa-a com efeitos de ficção, artifícios, anti-realidades. As alterações realizadas no mundo pela ação fabuladora são da ordem do imperceptível e insignificante, porém o modo como se alastram na imaginação coletiva e se efetivam em corpos reais nos dá prova de que o embate mais concreto da vida ocorre em planos imateriais. Constrassensualidade da realidade escrita: quanto menos se desloca, maior é o alcance da viagem – algo que implica outra compreensão de posicionamento, corpo, distribuição de energia; compreensão essa, no entanto, relegada à sombra desde que desautorizada pela lógica aristotélica – possiblidades de ser mais de um corpo ocupando o mesmo espaço, movimentar-se sem sair do lugar, baralhar espaço e tempo.

Há uma paixão do escritor por invenções técnicas que proporcionam um certo distanciamento físico concomitante a um maior elo não-presencial entre os homens – transportes discretos e virtuais de palavras, vozes, imagens para qualquer lugar do espaço. Invenções que proporcionam à experiência humana um jogo de duplicação indefinido. Paixão de Kafka por instrumentos que “representam a desforra vampírica do fantasma ou reintroduzem “o fantomático entre os homens” (o correio, o telégrafo, o telefone, a telegrafia sem fios)”12.

A escrita ficcional de Campos de Carvalho incorre nesse movimento. Avanço expansivo de uma experiência à medida de sua desmontagem da realidade, implica um salto da imaginação frente à impossibilidade e inoperância da vida: contrai a aflição da linguagem hegemônica em seu desempenho asfixiante para repousá-la em um corpo imóvel, distante – fora de dentro que se nega a reagir. E então, disposta a agonística numa posição aparentemente ociosa, vegetativa, promove um verdadeiro combate político, a contraefetuação do estado de guerra das coisas em uma nova sintaxe sobre este cenário; o arvorecer de outros espaços e semióticas para atravessá-lo. Assim, cada livro se assemelha à antinatureza de um fogo-fátuo – de origem discreta, sua matéria alastra-se queimando por onde quer que passe até que desapareça antes de ser totalmente consumida.

Lugar onde a recusa radical se realiza, a contingência da mensagem de um livro, além de anular a funcionalidade e a soberania da linguagem, carrega uma potência ilimitada de gerar outras infinitas formas de negação e relação. Suas palavras liberadas podem tanto se referir como não mais não se referir ao estado das coisas. Clinâmen, estrutura dissipativa, se houvesse um paradigma do livro esse seria sua “potência de não”.

Contra-lógica existencial que substitui o contrato social por um pacto diabólico, a atividade fabuladora é a mãe dos duplos e das simulações; cria um impasse comunicacional que assegura o distanciamento necessário para a proficuidade de seu trabalho. Vampirismo às avessas, nutre-se de uma solidão simbólica, remanso povoado, justamente o contrário de uma socialização real, da agitação esvaziada que caracteriza o vampirismo comercial e turístico. Como na carta-justificativa de Macedonio Fernádez a Jorge Luis Borges: “Caro Jorge Luis, desculpe-me por não ter ido ontem à noite. Eu estava indo, mas sou tão distraído que no caminho me lembrei que havia ficado em casa. Estas constantes distrações são uma vergonha, e às vezes esqueço de me envergonhar também”.

Aí onde o trágico e a ironia do cotidiano dão lugar a um novo valor, o humor, cresce uma comunicação desimpedida, a apresentação de si e dos motivos de trocas e relações que constituem a história multiplicada pelos jogos de duplicação da escrita. Mostra, mostrações, ao invés de um mercado de identificações.

Assim, um livro funda uma nova língua capaz de reformular a sensibilidade, o erotismo, a percepção, as palavras, a imaginação; uma superfície de contato mais complexa e tramada à qual outras línguas inventadas possam se articular, experimentar éticas e estéticas desvinculadas dos modelos e limites que tolhem a ação cotidiana. “Deixo as contradições para os que não tenham nada mais sério em que pensar, e pensam o seu dia de vinte e quatro horas e a sua hora de sessenta minutos, nem um segundo mais. A lógica dos lógicos não me interessa, o seu ontem e o seu hoje só me causam náuseas, seu relógio de cuco (mesmo de bolso) não me desperta qualquer curiosidade: também tenho o meu cuco entre as penas e nem por isso ando a consultá-lo como a uma pitonisa. Não sou o que sou neste instante, mas um só desde que nasci: múltiplo, múltiplo, múltiplo. Cada fio do meu cabelo é uma verdade diferente, e todos me pertencem: respiro por todos os poros, cada um por sua vez, e só assim não morro de asfixia. O que pode pensar um lógico através dos seus poros é que eu não sei”13.

Já que a realidade se funda na desregulamentação econômica e na moral fiscalizadora da política, o livro literário compõe uma peça do tempo, do pathos desse absurdo. Essa montagem de época, entretanto, não se rende aos seus tribunais. Como as escadas para escalar e isolar os buscadores do poço de O despovoador (Beckett), cada livro de Campos de Carvalho realiza uma espécie de tratado wittgensteiniano: sua linguagem oferece-se escada que se queima enquanto é subida. Travessia do tempo que não deixa rastros para retorno nem reconhecimento. O que não trata de descortesia com o leitor. Pelo contrário, é um modo de impedi-lo à tentação de se tornar semelhante, seguidor.

O humor de seus livros não tem nada a ver com a arte formadora de plateias sorridentes com sua distração desesperada. Apresenta uma superfície singular na qual a tragicidade e a comicidade da época são desmontadas em uma língua tresloucada. Como a estranheza e incompreensão do riso de Kafka quando lia seus textos não confere à sua literatura o tom angustiante e absurdo, a atmosfera triste de uma tragédia intimista que grande parte da herança crítica a ela outorgou – mas justamente o inverso: dá testemunho do surgimento de uma força nova, jovial, adivinhadora do futuro –, a literatura de Campos de Carvalho não corresponde ao surrealismo a que pretendem associá-la. Se o senso realista de sua época – que irá culminar na espetacularização do real – não vai muito além de lamentar a espécie de mundo grand-guignol que ele próprio protagoniza, o humor kafkiano e carvalhiano serve de dose paregógica para tal incontinência. Obviamente seu barbarismo nada tem a ver com os juízos emitidos pelo público “embasbacado” com sua exposição amoral das obscenidades da vida. Não se confunde com a imagem que uma cultura ocupada com a produção de atrocidades dele pinta, mas a dispersa, fá-la vazar. Como a imagem de escritor recluso, intimista, retirado no quarto, que em Kafka tentam colar. O autor transfigura essa imagem. O quarto e a cama passando a funcionar como máquina apreensora e reprogramadora dos fluxos burocráticos que tramitam a guerra dos mundos. Além de instaurar um mapa inusitado do tempo, de agenciamentos reais e ainda por acontecer, essa literatura cria linhas de fuga, formas nômades que se despregam do estado de coisas mais atual. Faz da abolição do real seu realismo expandido.

Em Chuva imóvel, o mote narrativo é o trabalho atômico (“Atoms at work”). Se a guerra nuclear não nos deixa outra saída se não a de ultrapassar a linha do espetáculo de horrores a que nos submete – “quero ver se mostram tudo mesmo, já que são cogumelos que se mostrem como cogumelos, mágica feita pela metade não tem graça nenhuma: ou então devolvam o ingresso!”14 –, este livro é um convite à imobilização.

PASSAR A LINHA – isto que é o mais difícil. As fronteiras deles só existem no mapa, é tudo uma linha só, o horizonte sempre em frente, e atrás, e por todos os lados – não adianta descer do trem nem pegá-lo, nem de foguete espacial chegaria a dois metros de onde estou: estaria apenas dando cambalhotas. Tentarei assim mesmo, não para fora mas para dentro, o espaço apenas para virar-me ao avesso, como se faz quando se dorme, quando durmo. Visita ou não, conviva ou estrangeiro, vou fazer-me difícil para que ao menos se assustem como me assusto, como ainda fiz ainda há pouco, montado sobre meus pés.”15

Negando-se a compactuar com a guerra de retóricas de sua época, a composição literária inevitavelmente abre um espaço mais amplo para pensar a problemática de seu tempo. Está em Campos de Carvalho uma exposição meticulosa da violência interiorizada, do cinismo descarado inerente à Guerra Fria, bem como suas repercussões no trabalho, na publicidade, arranjos familiares, sociais, no corpo, no sexo, na escrita. Pornógrafo por excelência, suas narrativas repetem o gesto de desnudamento das disparidades societais, da incongruência das decisões e transições coletivas, com humor talvez ainda mais ampliado que o de Witold Gombrowicz. Se o autor de Pornografia desejava “atravessar a forma para chegar ao meu próprio “eu” e à realidade, um louco rebelde”16, aquele fez-se de louco a ponto de sua obra testemunhar um grande riso contra si mesmo. Golpe de duplicação, o autor desaparece rindo d’ele narrador.

Perplexo ele, não eu, aqueles olhos em brasa que jamais esquecerei, não vejo mas vejo, o meu inimigo ou simplesmente o Inimigo, movimentando todos esses cordéis ou não os movimentando, todas essas cordas, os próprios elefantes movimentando, e os bulldozers, mais este peso e esta asfixia, as nuvens paradas no céu, o pântano e a areia movediça, o cheiro de putrefação: ATOMS AT WORK. – É ele o dono de tudo e o dono de nada, tão nocivo quanto Deus se não for o próprio Deus, o álibi de que se serve Deus para lavar as mãos sempre sujas, como se serve também do homem, ou da fera, ou de qualquer dos seus elementos desencadeados. Ele, qualquer que seja o nome: mas o Inimigo.”17

Em um ensaio intitulado “Encamados”, Beatriz Preciado, hoje Paul B. Preciado, observa que a confrontação da linguagem visual pornográfica no escritor argentino Osvaldo Lamborghini alcançava um discurso crítico mais forte que o dos situacionistas. O filósofo considera que “a cama de Lamborghini é, como a de Sade, uma cápsula de subjetivação poética, uma célula epigenética na qual se cultiva uma forma de subjetividade dissidente”18.

Nesse sentido é que podemos, se não conceber cada livro de Campos de Carvalho como um catre – entre tantos que desfrutamos no percurso de leitores –, ao menos lê-los (contra eles) na cama. O que já seria uma outra relação com o mundo.






NOTAS E REFERÊNCIAS:

1 Nietzsche, Friedrich. Ecce homo: como alguém se torna o que é. Trad., notas e posfácio Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 23.

2 Id., p. 110.

3 Klossovski, Pierre. Nietzsche e o círculo vicioso. Prefácio de José Thomaz Brum; trad. Hortência S. Lencastre. Rio de Janeiro: Pazulin, 2000, p. 21-22.

4 Nietzsche, F. Op. cit., p. 30.

5 Ibid.

6 Id., p. 57.

7 Id., p. 110.

8 Deleuze, Gilles. Sobre o teatro: Um manifesto de menos: O esgotado. Trad. Fátima Saad, Ovídio de Abreu, Roberto Machado. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2010, p. 72.

9 Blanchot, Maurice. O livro por vir. Trad. Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 303.

10 Beckett, Samuel. O despovoador, (1968-1970); Mal visto mal dito, (1979-1981). Trad. Eloisa Araújo Ribeiro; edição preparada por Vadim Nikitin. São Paulo: Martins Fontes, 2008, p. 33.

11 Id., p. 34.

12 Deleuze, Gilles e Guattari, Félix. Kafka Para uma literatura menor. Trad. e prefácio Rafael Godinho. Lisboa: Assírio & Alvim, 2003, p. 60.

13 Carvalho, Campos. A chuva imóvel. Belo Horizonte: Autêntica, 2018, p. 20.

14 Id., p. 15.

15 Ibid.

16 Cf. a parte dos Diários de Witold Gombrowicz apresentada no livro Ficção completa: Bruno Schulz. Trad. e posfácio Henryk Siewierski. São Paulo: Consac Naify, 2ª ed., 2015, p. 410.

17 Campos de Carvalho, Op. cit., p. 76.

18 Cf. El sexo que habla. Osvaldo Lamborghini. Museu D’Art Contemporani de Barcelona, 2015, p. 161.