Como criar para si um romance-rizoma


(Michel Mingote F. de Ázara)

Como criar para si um romance-rizoma




Por Michel Mingote F. de Ázara


(Pós-doutorando em Literatura Comparada pela USP)





“Um livro não tem objeto nem sujeito;

é feito de matérias diferentemente formadas,

de datas e velocidades muito diferentes”

DELEUZE; GUATTARI.

FIGURA 1: SYLVANO BUSSOTI, XIV piano piece for David Tudor 4. Fonte:https://encryptedtbn0.gstatic.com/images?q=tbn:ANd9GcSQEJHFgB_iBifP8QC1oV1Pf5m1At667xazlYT5FXYYEmZFZQU4gCuqBWZuSdzB6hzTq8c&usqp=CAU. Acesso em: 03/08/2021.

1°, 2° e 3° - Princípios de conexão, de heterogeneidade e de multiplicidade

O personagem nasce no meio. Não existe ponto de partida nem ponto de chegada, apenas conexões, fluxos de toda ordem que formam novas existências ficcionais. O próprio personagem vai perdendo determinadas características e adquirindo outras. Vai se transmutando, tornando-se outro. É um caso de devir. Ele cresce horizontalmente. É necessário traçar então um diagrama, uma maquete, um painel, um quadro. Qualquer ponto – qualquer cena, qualquer sequência, qualquer evento – podem e devem ser conectados com qualquer outro. As vozes narrativas ou os diversos locus enunciativos se contaminam mutuamente. Então torna-se um caso de cartografia aberta. Os diversos eventos narrativos se inter-relacionam e traçam rotas labirínticas e acentradas de leitura. Não é da ordem de, por exemplo, Se um viajante numa noite de inverno (Calvino) ou mesmo O Jogo da Amarelinha (Cortázar) em que vários enredos alternativos são oferecidos ao leitor dentro de uma gama de possibilidades. No caso do romance-rizoma, a leitura pode começar e terminar em qualquer ponto. O romance (ainda o romance) como um campo experimental, aberto às diversas contaminações oriundas de campos diversos e configurados na máquina performática:


O campo experimental, resultado da máquina performática, constitui-se como conclusão de uma série de operações: abrir o texto a uma multiplicidade de conexões e construir uma sequência que recupere signos ínfimos e despercebidos. No campo experimental, o que está em crise é a hegemonia textual como única fonte de autoridade, mas não a textualidade em si mesma (AGUILAR; CÁMARA, 2017, p.11-12).


É um caso de Heterogênese, de ramificações não uniformes, desiguais e múltiplas. O personagem é um ser ctónico ( Donna Haraway) que cresce profusamente com formas variadas e diversos nomes nas águas, nos ares e nos lugares da terra. É um ser tentacular: “os seres tentaculares criam fixações e separações, cortes e nós; criam uma diferença; tecem sendeiros e consequências, mas não determinismos [...]” (HARAWAY, 2019, p.53.Tradução minha).

FIGURA 2: Constant Nieuwenhuys. Projeto New Babylon. Fonte: https://carlaannechapman.files.wordpress.com/2016/01/newbab-9.jpg. Acesso em: 03/08/2021

FIGURA 3: The Plug-In City, Peter Cook, Archigram,1964.Fonte:https://images.adsttc.com/media/images/52cb/1f98/e8e4/4ee3/4f00/000e/slideshow/1382975218_51d71b74e8e44ed538000023_cl_sicos_de_arquitectura_the_plug_in_city_peter_cook_archigram__736_medium.jpg?1389043605. Acesso em: 03/08/2021

FIGURA 4: Constant Nieuwenhuys. Projeto New Babylon Nord, 1958. Fonte :https://static1.museoreinasofia.es/sites/default/files/boletin/noticias/babylon-boletin_0.jpg. Acesso em: 03/08/2021.

O personagem é um ser de sensação (Deleuze), um composto de perceptos e afetos. Da mesma linhagem de Odradeck (Kafka) e dos “Bichos” (Lygia Clark). No plano arquitetural, o romance diagramado em rede se avizinha da “Nova Babilônia” (Constant Nieuwenhuys – figuras 2 e 4) e da cidade interconexa “Plug-in City” (Peter Cook – figura 3). Cidades tentaculares, em rede, onde cada parte da estrutura se conecta a outras através de um sistema de conexões múltiplas e circuitos comunicacionais e informacionais. O personagem vai se disseminando em múltiplas direções. Ele mesmo está em constante deslocamento. Sempre em trânsito, vai se transmutando na estrutura labiríntica do romance-rizoma. Acontecimentos banais, reflexões, atos, gestos, relatos, pornografias, delírios, equívocos, cenas e fluxos se plasmam na teia aberta do romance que propõe um novo paradigma enquanto rede.


4°, 5º e 6° - Princípio de ruptura a-significante, princípio de cartografia e de decalcomania


“Escrever se encontra em aberta correspondência com a sonda de um campo, posto à prova, a começar daquele de quem executa um projeto criativo”.

VASCONCELOS.


Escrever como se pintasse uma tela aberta (Pollock). Efetuar cortes e rupturas a-significantes, traçar linhas de fuga na escrita e na linguagem. Neste sentido, o ideal de um romance-rizoma “seria expor toda coisa sobre um tal plano de exterioridade, sobre uma única página, sobre uma mesma paragem: acontecimentos vividos, determinações históricas, conceitos pensados, indivíduos, grupos e formações sociais” (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p.25). Uma escrita cinemática em que várias telas são exibidas concomitantemente numa estrutura diagramática. Se trata de um mapa aberto, conectável em todas as suas dimensões, com múltiplas entradas. Em consonância com a Pós-poesia de Mallo, um pós-romance (figuras 5 e 6) ou ainda um romance expandido que trabalha com o lixo informativo, o Spam. Nas palavras do autor Espanhol, a respeito da pós-poesia, a criação de uma rede complexa e fora do equilíbrio onde há abandono, ruína e processos em formação. Ou ainda, um território de fricção, mestiço e desconhecido: extrarradios (MALLO).

É necessário criar então, através da escrita, um plano de consistência (imanência), um espaço de experimentação atravessado por intensidades, hecceidades (DELEUZE) – individuação sem sujeito – para romper a dicotomia entre interior/exterior, dentro e fora, sujeito e objeto, e criar uma zona de contaminação mútua, de imbricamento, de troca de fluxos. A individualidade dá lugar a uma vida singular imanente, neutra, pura potência: “[a] vida do indivíduo deu lugar a uma vida impessoal, e entretanto singular, que desprende um puro acontecimento, liberado dos acidentes da vida interior e da vida exterior, isto é, da subjetividade e da objetividade daquilo que acontece” (DELEUZE, 1995, p. 2-3). Tudo se dá neste plano, fita de Möbius, escadaria de Escher, espaço aberto às diversas intensidades que atravessam o personagem em movimento, como bem concebe o filósofo José Gil:


O que todas estas estratégias implicam é um contínuo vaivém entre o homem e o meio que o rodeia; entre as forças exteriores e os fluxos do corpo; entre os estratos e os desejos. Em resumo, supõem um corpo que recebe todas as espécies de energias e que tenta combiná-las com as suas próprias energias (GIL, 2008, p. 200).



FIGURAS 5 e 6 : Michel Mingote F. de Ázara. Trecho do “Romance-rizoma” (pós-romance).

O protagonista do romance-rizoma assume então a figura do múltiplo, tanto através da sua deriva constante quanto através da estrutura emaranhada do plano traçado no diagrama. O mesmo ocorre com as diversas vozes narrativas. Marcadas por cores diferentes, elas também vão se deixando contaminar e se indiscernibilizando. Ocorre uma espécie de curto-circuito na linguagem que desencadeia os múltiplos devires que atravessam o personagem e as diversas vozes narrativas:


Devir-mulher, devir-criança; devir-animal, vegetal ou mineral; devires moleculares de toda espécie, devires-partículas. Fibras levam de uns aos outros, transformam uns nos outros, atravessam suas portas e limiares. Cantar ou compor, pintar, escrever não têm talvez outro objetivo: desencadear esses devires (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p. 55).



O diagrama desenhado em diversas folhas coladas à parede instaura o plano de imanência, a zona de indiscernibilidade que desencadeia os devires de toda ordem. Dessa forma, o pós-romance ou romance-rizoma se propõe a ser um espaço de experimentação, de abertura às novas possibilidades de criação/invenção hoje, para além de esquemas pré-estabelecidos e para além também de formas narrativas configuradas por políticas editoriais literárias voltadas a determinados segmentos mercadológicos, dentro de um modelo já dado e esperado de consumo.





Referências bibliográficas

AGUILAR, Gonzalo; CAMARA, Mario. A máquina performática – a literatura no campo experimental. Rio de Janeiro: Rocco, 2017.

DELEUZE, Gilles. A imanência: uma vida. Revista educação e realidade. UFRGS, Trad. Tomaz Tadeu. Vol. 27, n° 2, jul./dez. 2002. Disponível em: <https://seer.ufrgs.br/educacaoerealidade/article/view/31079/19291 >. Acesso em: 02/08/2021.

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Introdução: Rizoma. In: Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. v. 1. Trad. Aurélio Guerra Neto e Celia Pinto Costa. Rio de Janeiro: Editora 34, 1995,

p. 11-38.

______ . 1730: Devir-Intenso, Devir-Animal, Devir-Imperceptível. In: Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Trad. Suely Rolnik. V. 5. Rio de Janeiro: Editora 34, 1997, p. 179-214.

GIL, José. O Imperceptível Devir da imanência: sobre a filosofia de Deleuze. Lisboa: Relógio D’Água, 2008.

HARAWAY, Donna. Seguir con el problema: generar parentesco en el Chthuluceno. Trad. Helen Torres. Bilbao: Consonni, 2019.

MALLO, Augustín Fernández. Postpoesía: hacia un nuevo paradigma. Barcelona: Anagrama, 2009.

VASCONCELOS, Mauricio Salles. Avital Ronell: a questão, o escândalo, a cultura test drive. São Paulo: Córrego, 2019.