LITERATURA-VIDA EM Bráulio Pedroso (Novela da Noite), de Mauricio Salles Vasconcelos

Por Bruno Henrique Coelho

 

... Surge como um regimento de um conjunto coletivo, o chamado “mundo”, revelado à maneira de uma intrusão, já em sua nascente 

     - Mauricio Salles Vasconcelos [1]

 

Gosto particularmente da constatação de Bakhtin sobre o romance: a de que uma das dificuldades (e belezas) singulares é seu inacabamento específico. No entanto, é muito difícil encontrar integralmente este inacabamento-beleza em uma obra de arte literária como o que se lê (e se vive) em Bráulio Pedroso (Novela da Noite), de Mauricio Salles Vasconcelos. Como a vida, o romance publicado em 2018 é quase indefinível, servindo como uma aula de literatura e reflexões sobre o estar (“Estamos: traço mínimo de vínculo para o tão grande ensejado enlace indefinivelmente cortante e nascente”[2]) e o ser neste mundo entrecortado por tantos tempos.

E há outro ponto neste começo, o da literatura-vida. Entre os modernistas portugueses, lá no fim dos anos de 1920, José Régio[3] propunha que a literatura viva era literatura original, reforçando – até certo ponto – a visão de gênio artístico diferente daquele das pessoas comuns e quase independente do tempo em que é gerada e de que é geradora. O que compreendo disso, desde minha primeira leitura de Bráulio Pedroso (novela da noite), é diferente, posto que a literatura-vida de Mauricio Salles Vasconcelos respira, reflete, caminha e se transforma tal como as pessoas são (ou, ao menos, deveriam ser).

Nesse sentido, apoio-me em Deleuze para estender o termo. No primeiro ensaio de Clínica e crítica, intitulado A literatura e a vida, Deleuze investiga o que é a literatura e o que nos leva a escrever, em questões que passam pela criação de um simulacro da língua e vão até “ontologia” da literatura. Em uma de suas belas constatações, logo no começo do texto, ele define a escrita como o “devir”:


Escrever é um caso de devir, sempre inacabado, sempre em via de fazer-se, e que extravasa qualquer matéria vivível ou vivida. É um processo, ou seja, uma passagem de Vida que atravessa o vivível e o vivido. A escrita é inseparável do devir....[4]

 

Por isso, considero literatura-vida como o resultado escrito desse ato de devir; no texto, esse inacabamento semântico específico próprio de todas as coisas que vivem (e se vivem) e que, por isso – aproveitando da etimologia – não se definem, não se acabam, não se dão um fim porque são vida. Talvez isto seja a “travessia” rosiana: em Grande Sertão: Veredas é o símbolo final, o do infinito, a lemniscata, opondo-se ao sinal de negativo disfarçado no travessão que abre aquele romance. “(...) Existe é homem humano. Travessia”[5]. “O devir está sempre ‘entre’ ou ‘no meio’”,[6] no atravessar.

Assim compreendo Bráulio Pedroso (Novela da Noite) e, por extensão, toda a obra literária e didática de Mauricio Salles Vasconcelos.

Já no prólogo de Bráulio Pedroso, a soma de procedimentos e elementos literários utilizados revela habilidade singular em criar uma narrativa que transcende os limites convencionais da literatura mais badalada. O efeito de uma câmera simulado em palavras, vai aos poucos nos conduzindo ao protagonista Niro Zaremba, figura em trânsito entre suas cidades-porto interpelado por sua prática docente, pela pesquisa que realiza sobre o trabalho do novelista que dá nome ao livro e por sua vida pulsante em diversas latitudes no começo dos anos 2000. A forma da escrita na abertura do romance oscila entre orientações técnicas para um operador de câmera e a narração algo filosófica que atravessa toda a escrita de MSV:

 

Zoom da casa em retiro (onde o escritor está morando, alguns poucos anos antes de morrer). Estou aqui por razão da montagem de uma de suas peças inéditas, dirigida por ele mesmo (...).

A primeira novela escrita por ele pontua a entrevista numa pulsação secreta, ainda que minha pauta se concentre no teatro – tendo em foco sua peça mais recente, Nicolau –, de onde o autor emergiu (desde sua estreia com a premiada encenação de O fardão) para instalar uma verdadeira revolução televisiva....[7]

 

Desdobrando-se em uma experiência literária que se assemelha à própria complexidade da vida, assim como Niro é atravessado por memórias, sexo-desejos e planos, a estrutura do romance se vai fazendo em múltiplos gêneros e linguagens. A narrativa central (? Creio mesmo que não se pode afirmar que haja uma narrativa central dentro do que agora compreendo como literatura-viva) é intercalada de outras narrativas, de imagens, e a poesia inscrita no narrado aos poucos se conforma em poema. O enredo é uma teia intrincada de reflexões sobre o estar no mundo, pesando, portanto uma diferença fundamental entre esta literatura que vive e aquela do poeta português, porque mesmo na linguagem aparentemente mais banal ou mesmo no sexo mais carnal em que Zaremba, à semelhança de Gogol, personagem de Bráulio Pedroso em Nicolau, é reduzido apenas a seu membro, como se essa sua parte existisse para além da pessoa, nisso mesmo é que se revelam outras dimensões dos sujeitos e de uma época: “Quando você, Niro, você mesmo Niro – sua sexualidade inteira aparece nas menores coisas enunciadas...”[8].

Assim, o recurso ao intertexto surge, desde a primeira página, não como uma piscadela cúmplice a iniciados, mas como um elemento orgânico de construção sobre o qual o protagonista reflete sobre si, seu mundo e seu objeto de pesquisa. Em alguns pontos na memória e no presente do narrado, Niro Zaremba segue paralelo a Pedro Gogol, personagem de Nicolau. Se Gogol pode ser lido, no contexto da trilogia fálica de Pedroso como uma reação às “castrações” sociais e morais impostas durante a ditadura, em certo sentido, Zaremba é a recusa à sublimação. O que se lê em Nicolau: “... Gogol merece ser exibido em um congresso internacional. Mostra como o falus simbólico independe do falus real. Como? Vou lhe explicar. Gogol supera a castração, imaginando uma vida própria para seu falus, a quem denomina ‘Nicolau’”[9]. E em Novela da noite:


“Niro” – vem –

Continua a chamar o pau à parte, com meu nome – não sei –

 – Ou será por mim, por inteiro?[10]

 

Além disso, cada figura que se move[11], cada situação, parece se abrir em um caleidoscópio de realidade ficcionada, tornando-se um catalisador para questionamentos ao mesmo tempo mundanos e filosóficos, como é a multiplicidade de tempos experimentada tanto pelas figuras do romance como pelo próprio leitor (“Um fio único de simultaneidade se sobrepõe -”[12]). No texto, isso assume a forma de transmutações: a narrativa tradicional, aquela com um narrador dominante nos romances mais stricto sensu, cede ora a resenhas, ora a resumos, ora à especulação-comentário-anotação, ora a roteiros, rompendo, pois, com romance stricto sensu e com a primazia de um narrador dominante. Paradoxalmente, essa é a característica mais exuberante que percebo em Bráulio Pedroso (Novela da Noite) enquanto literatura-vida: o texto pode ser cada uma dessas coisas sem ser nada disso.

A noção de literatura-viva, então, deve ser reinterpretada em Vasconcelos. Não apenas original; ela é pulsante, acompanha a dinâmica da vida cotidiana. As personagens se desenvolvem e se transformam, assim como as pessoas reais. Não é uma literatura isolada do tempo ou da sociedade; ao contrário: ela respira os filmes, as novelas, os tropeços, os interditos, os poemas. E, assim como nas artes plásticas, deixa ver no seu acabamento as marcas das ferramentas: o cotidiano, o trabalho do professor-artista (ou artista-professor) e o apego ao material da arte nas coisas menos visíveis do dia a dia, além, é claro, de exibir os procedimentos intermidiáticos, como os efeitos de câmera transpostos para o texto, o roteiro, as rubricas de autor.

E há outra questão muito importante. Vasconcelos percebe a centralidade da telenovelística na formação cultural e na própria intepretação das identidades do Brasil: “Tal como a novela se ocupa do vazio/potencial deixado pelo Narrador em retirada. Desde os eventos/adventos: modernidade no cume de uma era técnica galgada pela TV diária ao longo da noite”[13]. O que se desenha no título do livro com o nome de uma novelista revolucionário e contestador, move-se em várias direções do tempo e do espaço, se transformando conforme um texto igualmente contestador.

Por fim, afunila-se o romance em tino final sobre o próprio fazer literário, afinal, no final, é o próprio livro que se revela.

Eu não diria que, em Bráulio Pedroso (Novela da Noite), MSV tenha escrito uma história. Ele cria, com força contínua e avassaladora, uma narrativa-ser-vivo que respira, pulsa e se transforma nos contornos complexos e belos de transbordos de vida. E então, de novo, Deleuze revê as imbricações de literatura e vida: “escrever é um devir alguma coisa. Mas também não se escreve pelo simples ato de escrever. Acho que se escreve porque algo da vida passa em nós. Qualquer coisa. (...) Escrever é devir[14]”. Escrever é devir talvez quando


tudo está dizendo de um foco de contemplação bem minucioso, milimétrico, sobre a velocidade das coisas no tempo. Este mesmo, tempo, quase invisível por obra do emparedamento panorâmico...”[15].

 

Sei que não posso falar por ele, mas, pelo que escreve, imagino que, para Mauricio Salles Vasconcelos, talvez não haja distinção entre o escrever e o ser porque as duas coisas se atravessam.


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NOTAS: 

[1] VASCONCELOS, Mauricio Salles. Bráulio Pedroso (Novela da Noite). São Paulo: Giostri, 2018, p. 156.

[2] Idem.

[3] RÉGIO, José. Literatura viva. Revista Presença, n. 1, Coimbra, 1927, p. 1.

[4] DELEUZE, Gilles. Crítica e clínica. Tradução de Peter Pal Pelbart. São Paulo: Editora 34, 1997a, p. 11.

[5] ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001, p. 749.

[6] DELEUZE, 1997a, p. 11.

[7] VASCONCELOS. Op. cit., p. 9.

[8] Idem, p. 96.

[9] PEDROSO, Bráulio. Dor de amor. A Fula do Bucalão. Nicolau (Trilogia Fálica). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984, p. 156. 

[10] VASCONCELOS. Op. cit., p. 91.

[11] Em minha mais radical leitura, o próprio texto de MSV é – em si – uma figura movente.

[12] VASCONCELOS. Op. cit., p. 83.

[13] VASCONCELOS. Op. cit., p. 257.

[14] DELEUZE, Gilles. O abecedário de Gilles Deleuze. Entrevista com Gilles Deleuze. Editoração: Brasil, Ministério da Educação, TV Escola, 2001. Paris: Éditions Montparnasse, 1997, VHS, 459 min.

[15] VASCONCELOS. Op. cit., p. 65.



Referências bibliográficas

DELEUZE, Gilles. Crítica e clínica. Tradução de Peter Pál Pelbart. São Paulo: Editora 34, 1997.

_____________. O abecedário de Gilles Deleuze. Entrevista com Gilles Deleuze. Editoração: Brasil, Ministério da Educação, TV Escola, 2001. Paris: Éditions Montparnasse, 1997, VHS, 459 min.

PEDROSO, Bráulio. Dor de amor. A Fula do Bucalão. Nicolau (Trilogia Fálica). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984.

RÉGIO, José. “Literatura viva”. Revista Presença, n. 1, Coimbra, 1927.

ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.

VASCONCELOS, Mauricio Salles. Bráulio Pedroso (Novela da Noite). São Paulo: Giostri, 2018.

VASCONCELOS, Mauricio Salles. Bráulio Pedroso (Novela da Noite). São Paulo: Giostri, 2018. 

Bruno Henrique Coelho

Professor, escritor, ensaísta, Mestre e doutorando em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa pela Universidade de São Paulo, onde pesquisa a literatura angolana contemporânea.

Publicado em 29/10/2023