O BUFÃO

(José Emilio-Nelson)

OFICINA ORBITAL –



JOSÉ EMILIO-NELSON


Pouco conhecido fora de Portugal, o autor de A alegria do mal cria dissidência com os modelos comumente timbrados como código e cânone literários para valoração de experiências em dado gênero, caso da poesia.

Emilio-Nelson dá acesso, em seu substancial e inigualável projeto, a um esplendor criativo, poucas vezes lido na atualidade. Conjuga exuberância verbal com uma imaginação grafoplástica concentrada nos planos mais sutilizados da escrita, ao mesmo tempo conduzida por escárnio e escavação de uma erótica, permeada de escatologia e estruturas de agressão (como diria Noel Bürch sobre a força pregnante e provocadora da imagem do cinema, em variados exemplos desde seu surgimento).

Excessivo, exorbitado, esse universo anti-lírico – embora corteje com apurado desempenho formal variadas e consolidadas dicções – fundamenta-se nos mais arrojados cumes da história do gênero. Capaz de comover e remover, num só ato, pátinas do padrão poetizante quanto mais dialoga com várias tradições e frentes/fontes contemporâneas, J.E.M se revela irrefreável inventor, merecendo ser erguido a uma condição dos mais plenos destaque e desfrute: na liberdade mesmo, indicadora deste termo, consonante com a tópica multívoca, frutífera, aí presente. Ao compasso de uma prodigiosa variação de enfoques/estilos, para ser fruída, difundida largamente.


MSV




Uma seleção de sequências/seções do poema


O BUFÃO

Y en la Corte bufón a lo divino. (Quevedo)


Uff! Falava de Brueghel e já era tal e qual um ossário,

Carroça de caveiras,

Onde amontoava o cadáver dos condenados a arder, não o justo.

A errar calcinado pelas mil mãos do horror

Até ao espectro maternal da Morte.



*


Tão brejeiro que mastigava para todos (soa melodioso):

“O homem, por cortesia de Deus, tem duas cabeças, a mulher, enganosa,

duas bocas” (prosimètre).

Pensar é com ele, gentilmente, gastar é com elas, festejadas.

“Não sei, não sei”, sussurrou, mexeu-se um outro atrás do bilhar.

Tateou as virilhas, pegou no taco desajeitadamente, era a sua vez,

Recatados, uns outros riam.


*


Calçapneus, calçasdestofos, as pestanasvaretas

E o que os retrovisores espelham, eu disse-te?


É o próprio sucateiro na sucata.

Rasgam vidros os arbustos oleosos.

Os cães dão conta do cliente.

Parafusos e depois a matrícula, os documentos, claro,

E os que vão lá, só isso.


*


Uma manhãzinha em couro acabrunhante

Atravessa a ingenuidade da onda

Que se abre limpa à dura prancha.

Faz um e mais pavões.

E, com isto, espichando-a em espumas

Que embranquecem o negro das suas pernas de pneu.



*


Uma camisola veste-lhe o tronco,

A manga curta

Dá-nos a tatuagem inteira.

Azul ferrugento, verdete de âncora.

Tudo nele é músculo de bronze.

Mas ao andar, vai como a de Camões,

Vai à toa.





*


Na primeira página do Jornal, a abrir (caixa alta),

A bicheza da manicure que mordeu as unhas do cliente

Que a agrediu com uma joelhada (sem querer, ao que se julga), a quem

ela acusa de não pagar.

Uns anúncios e uns casos de micciobilia.

Num desenho de imprensa, bem discreto,

Nato-Peter Pan dão estrelas ao céu.



*


No espelho, rutilante, onde outros amarram

Os terços, pendurou uma pele de raposa.

A cauda baloiça cambaleante a cada curva.

Do emblema dos cromados à camurça do volante ensebado,

À almofada tricotada do assento, a cor berrante do tejadilho.

Tudo é parecidíssimo.



*


A minha mão esquerda (ou a direita?) faz de Jekyll.

Mirra-lhes os seios, queima-lhes os cabelo,

Achata-lhes as nádegas. Que sejam iguais.

A mão direita (a esquerda?) acaricia-lhes os passos.



Tapa-lhes a boca. Ata-as

Num laço largo de bombom (e é Hyde).



*


E por último, porque joga o rancor contra a solidão, lances? E para quê?

Empurra-se, debilitado esmalte dos seus músculos, tateando, arriscando-se.

O mais velado em rolo de letra minúscula emparedada (12m x 11cm, rectoverso).

Com a pluma cravada, espetado até à morte,

Em Charenton, ao escrever escarnece.



*


Que raio do Céu reduz a Commedia, rapsódica, a mal-estar de bufão, um interdito?

Bufão, escaravelho que sangra as asas no excremento consolador.

(E pensava delirante nas Grottescas de Piranesi. Falava-se de fogaréu-

pluma

de cinzelagem macabra.)

Bufão, Buscón.


(Aparte) que a embriaguez lhe dê a dor.

(Prosaísmo de pequena comédia.)

Un rayon blanc, tombant du haut du ciel, anéantit cette comédie. (Rimbaud)


[2004]