FISSURA
(trecho)
(trecho)
Retornados inodoros aqueles que guardam suas sementes:
Adormecerá os restos este vazio permanente. – Neige e Audrey Silvain.
Discutíamos sobre como o corpo humano, por mais resistente que seja, é fácil de se matar; que as pessoas que tentam suicídio e falham falham menos por um esforço vindo dum tal inconsciente individual de continuar vivendo que por sempre optarem por métodos bonitos e ou agradáveis, que se não quisessem ser tão compassivas para-consigo ou fazer algo teatral provavelmente morreriam mesmo. A sociedade criou os modos mais eficazes de satisfazer consciências infelizes, daquela gentinha miserável que acha que o extremo de si mesmas é elas mesmas, que uma vez embaixo da terra vira problema dos outros suas mortes (o que é de fato); ou aquelas cuja beatitude atingiu a proporção áurea de deliberadamente querer foder com os outros usando o próprio corpo. Ela diz que todo mundo sempre descola do próprio corpo uma overdose, um sangue escorrendo hemorragicamente dos pulsos, coisa e tal, mas nunca pensam realmente em injetar soda cáustica. A galera no nosso entorno que pega de tabela a conversa fica horrorizada, com aquela sublimação doméstica de falar que somos doidas ou que é um assunto teórico sério; nem sei se nois não liga ou se injustamente ligamos – provavelmente alguma mistura das duas coisas, como cachaça e limão; e na falta de gelo pra quebrar, bebemos do jeito que tá, uma vez que já foi suficientemente quebrado –; todo o aspecto tenebroso de nossas falas emanando dos olhares de fora enunciam o dissabor do direito e do dever, do imperativo viva. Parece que estão dormindo a cada teco que damos – acordando para o dia distorcido e elevado da compreensão despretensiosa.
Depois de gastar bastante onda em outra roda, Claude colou em nois, repetindo a mesma estória; todo um rolê de ter conseguido umas sementes de argyreia nervosa, a onda que fez ele ter todo um prazer oral chupando os próprios dedos que o levou ao orgasmo enquanto via mandalas “perfeitas”, ele disse, de olhos fechados enquanto ouvia dub; continuo ouvindo por curiosidade histórica, Mika por outro lado – desvanecendo-se de mim – tá fascinada; penso em quanta arte sublime foi feita no início do século, ao longo do XX, com galera usando esse tipo de coisa; os clássicos que sobraram são só a cachaça e o pó – se considerarmos benzos drogas merdas –, nada de psicodelia, enteogenia, a velha heroína foi substituída por opioides em comprimidos; questiono se o mundo enlouqueceu o suficiente e se não há um plano global coibindo o uso de determinadas paradas que fariam alguém se estranhar com a realidade; a contracultura, foi uma mentira, mas pelo menos os sorrisos eram genuínos. Acho que é isso, o que faz desse trem real; o sorriso da Mika. Já não é sobre verdadeiro e falso – como viciosamente classifico as coisas. Ela escuta Claude tagarelar com entusiasmo, com toda a visceralidade melancólica de quem não tem mais brilho nos olhos, e sorri. Como seria afinal, se eu tivesse network com os playboys que ele tem, usar argyreia com a Mika? seria outra coisa; fazer do real outra qualidade, cobrir as ruas da cidade com o sorriso dela, algo homogêneo com o céu, com as cores cinz’avermelhadas das brumas sangrentas do tráfico, o real em todas as suas diferenças ao mesmo tempo, decupar tudo lambendo seu cu, nem verdadeiro nem falso, genuíno, o sistema nervoso das máquinas padecendo de dor, de fome, com a falta de algo pra beber, afundando em vontades de saber que fogem da informática, dos dados, do acúmulo, viver um dispêndio, o frio do mundo com o calor de sua bunda. Ou isso é uma trip, ilação com tudo que tô ouvindo, minha própria onda feita de escuta-pó-cerveja. Dou outro teco, fica mais intenso, caio em mim, numa unidade apática iludida de sua própria sorte, de seus próprios narcisos crescidos em eras mortas, o dionisíaco-pessoal, igual a si mesma, minha miséria junkie; olho pra Mika e me abandono.
No antigo Saraiva o céu se mantinha por e pondo sobre as ladeiras uma enevoada luz rósea que me parecia uma expressão de sobriedade. Entramos no carro. Seguindo pela Rondon Pacheco com uma velocidade, pelo menos pra mim, agradável; abraçadas, fazendo carinho uma na outra, a luz de led levemente rosada me incomodava, pois atrapalhava a visão do céu crepuscular, mas acalmava Mika da abjeta sensação que tinha quando estava dentro desses veículos; no mesmo instante que atravessava por cima duma avenida que cortava Cazeca-Saraiva, o carro foi diminuindo a velocidade, e por mais improvável que seja – esses carros sempre têm uma velocidade constante em vias como esta – cogito que tinha sido hackeado, começo a olhar ao redor, nada chamável de atípico, alguma coisa deve tá acontecendo; o tempo vai passando, Mika pergunta se tô bem e digo, me fingindo impávida, “tô, uai”; checar o painel é inútil e nessas de ficar olhando pro lado de fora ergo a cabeça e vejo rente a nós uma figura humana vestida de preto, prostrada nas grades cinzas da ponte que precede o Condomínio Carajás; o vulto passa por nossa frente, o carro por cima do cadáver; quando Mika pergunta o que houve, o carro, junto a todos os que estavam atrás, volta para a velocidade anterior; podemos ver apenas sequências de automóveis como se pulando ao passar por um buraco no asfalto. Ela olha pra esquerda e diz que ama aqueles prédios pintados do mesmo modo lúgubre que rima com o crack vendido por lá desde sempre. Seu ânimo nublado e sardônico sempre me agrada, mas fico perturbada em como deixa simplesmente desvanecer todo o hediondo atrás de nós com tanta facilidade ou sou eu que me descontrolo pela cólera pós-paranoia de ficar vendo até o possível aquele tum-tum que ia esmagando o corpo pouco-a-pouco; pergunta “quê foi”, porque tô tão agitada e nisso noto finalmente e me sentindo estúpida pela demora que o evento deu-lhe toda a serenidade que tornou o passeio não só tolerável como agradável.
No fim da partida, o carro estacionou bem onde havíamos programado, alguns quarteirões pra baixo; logo à frente tinha uma máquina A.P.D, Mika disse enquanto subíamos a rua, “sabe”, falou sobre como elas são nossas motrizes e transmissão e instrumento de homogeneização de todo mundo, dispositivos de exclusão das diferenças, que inda que ainda sejamos filhas de Homens, noutros tempos poderíamos transar com anjos intersexuais, que a virgindade era algo a ser adquirido e que espontaneamente viríamos a ser quem somos, que o fundo e a superfície dos olhares eram o mesmo, que até acreditando em alma as pessoas ainda estavam dispostas a realmente transformar a carne, como vísceras saindo pra fora num movimento da natureza. Ignorei o que disse sobre esses tais outros tempos, mas disse que não dava pra simplesmente excluir as diferenças, que cada pessoa continuava única; ela deu uma gargalhada breve e alta, disse que tá bom, que não tá afim de me convencer de nada, que só acha que não ando olhando muito bem ao redor. Lembrei do mendigo chupando os restos da garrafa autossolúvel de cachaça, comentei com Mika e ela disse que isso, exatamente.
Ana Abrahão é travesti pós-exibicionista; trabalha com a escrita dos outros.