Ninguém sobe

(Z.O.D) 

Os capítulos a seguir foram extraídos de um romance em andamento, ainda sem data prevista de publicação.

ANDAR DE CIMA

  

A obsolescência dos espremedores se aproximava. Quanto tempo resistiram objetos restritos de função, incapazes de, simultaneamente, servir dados, fazer fotografias e reproduzir canções? De que adianta suco sem melodia? No andar de cima, havia pertencimento à época dos utilitários designados, como fósforos e agitadores de berço. 

Recolhem sumo, moem o bagaço privado das sementes em prol do ácido ascórbico, néctar moderno.  

Chusma distinguia o nascimento do dia pelo som; começava azedo, sem direito a saborear a própria maldição. Todos os dias se levantava com o chocalho cítrico. Poderia afirmar quão suculentas estavam as frutas. Imaginou que SetentaEdois não tivesse sorte nas compras que antecedem fins de semana, ou pelo menos foi essa a sugestão recebida do triturador quando se debatia com mais violência/ sábados e domingos.  

O remoer liberta o líquido coagido pelo pequeno motor, comparável ao gemido interno que seus ossos propagavam depois de mais uma noite. A dor era menos musical. Quando se levantava com algum senso de justiça, forçava-se a crer que o espremedor poderia auxiliá-la mais que um despertador. Talvez porque os despertadores fossem igualmente monofuncionais, encontraram na sonolência de Chusma a brecha: lótus a desabrochar, conferindo-lhe um alvo, desdobrando sua retidão em tentáculos. 

Também o ar do andar de cima por vezes invadia o quarto, dissipando-se ao encontro de suas paredes sem quadros, pintadas com falso branco, que não reluz nem hospitaliza.  

Ar sem perfume, todavia. Não violaria o olfato. Cheirando bem quiçá aprumasse um odor criado em laboratório. Corante saborizado e dotado de essência minuciosamente esboçada em tubos de ensaio, gosto legítimo do campo. Não era de comida o cheiro do andar de cima. Excetuado o insistente suco, nunca escutou barulho, menor que fosse, nem uma moeda caída ou batida de martelo para pregar enfeites presenteados. Não raro os silêncios guardam mistérios, entretanto esse era desprovido de segredos, vinha côncavo.  

Jamais acessara o andar de cima; Chusma julgava exagero de fôlego tomar as escadas, ao passo que chamar o elevador seria vexatório, além do perigo de encontrar um dos moradores e com ele dividir segundos. Teria que sustentar o silêncio compartilhado, que desfalece rápido na menção de saudar ou levantar o verbo a serviço do constrangimento. A personagem não pegava o elevador pra nada, e o motivo era esse; embora quisesse acreditar na existência de outras razões, não havia.

Jardim de rosas com torre, Ilka Gedő, 1971 

ANDAR EM CIMA DO ANDAR DE CIMA

  

[modo diuturno] Vendo de baixo posso contar gotas pacientemente, como se me levassem algures

só infiltram e > 

[oye/ como va + dueto de furadeira com solda + panela de pressão, apenas quinze minutos depois de começar o chiado (corra, portanto)] 

Escolheria este entre os males oferecidos; achei que gostasse assim, pra frente. Deixo de < 

Nas gotas descendentes noto coloração turva, caem sobre o tapete indiano que ela me trouxe. Os padrões circulares, entre magenta e grená, talvez remetam a um deus, não sei, perguntaria o que só ela saberia responder, ainda que soe como acinte demonstrar que não prestei atenção, distraído pelos cortes no ar de sua mão sempre em gestos.  

     

De novo > as gotas colhidas com pano claro de chão, embora puído, checar a cor por trás do pigmento. Estendo o desgastado sobre o tecido simbólico, conto mais, a força dum amarelo solar. Evito pensar que as paredes do andar de cima suam urina, mas parece 

 

[é um cheiro de mato cheiroso/ um aroma de selva gostoso/ é um banho pra te perfumar + eu que já andei pelos quatro cantos do mundo procurando + cheiro de feijão queimado] 

 

Conto gotas, fenômeno digno de estupefação. A novidade se impõe, suponho num friccionar de dedos — a infiltração cultivada no andar de cima deixaria minha sala em patamares fisiológicos. Logo aqui, memorial de insultos que não respondi à altura, recanto de longilíneos prazeres encerrados em mensagens breves, “não é você, sou eu”, e tantas aflições que não poderiam ser ditas em meio a um processo civil.  

Cabe resolução? Deveria reclamar com o vizinho ou agradecê-lo pela fonte invertida nisso que chamei lar (CASA 4)?

     

Um dia se resolverá. Não com naturalidade, é bom que se diga. Altivo no lance duplo de escadas, dados/golpes que não tratei de experimentar, bater 3 vezes na porta (intimida mais que campainha) e, à frente, vai na face robusta do condômino a fala ensaiada entre mania e marofa de carnaval

 

meu querido, o seu apartamento está mijando no meu

Torre Tatlin, Raúl Prieto Fernandez, 2011 

ELEVADOR

  

Nenhuma planta à vista no pátio. Poderia perguntar ao Responsável, mas ele não sabe e, se soubesse, não diria. 

O poço é por onde se estreitam o elevador e seu limite de 420kg em seres/objetos, totalizando [420 + os quilos ou toneladas da cápsula]. Testes anuais nos cabos de aço aferem 

o suporte de força está adequado ao peso

funcionamento regular das frenagens de urgência, exigidas em romper mecânico

Convocado também para inspeções fora de rotina, Supervisor vinha quando o modal apresentava alguma irregularidade, frêmitos estranhos, sensações de travamento ou engasgos na porta de correr. Numa de suas investidas, garantidora da segurança geral, desceu pelo poço a partir do terraço (inacessível aos moradores) dependurando-se em cordas rijas e garantidoras da intenção de garantir uma segurança geral em nome da ELEVE-SE S.A. A iluminação parca da cisterna sem água resultava da mescla = dia nublado, luz que não penetrava extensão inteira, e cada vez menos, conforme descia até a caixa, travada no terceiro andar, e a lanterna de estimação, escudeira desde os tempos de escotismo, superestimada como instrumento de trabalho >>> quase nada via quando pousou na parte superior da cápsula, algo que poderia complicar a execução do serviço, não fosse ele um domador das organelas que compõem um qualquer elevador. 

Em meio ao burburinho na Área Comum >PARALISAÇÃO DO ELEVADOR<, Síndico não sabia dizer se era fosso ou poço ao que SetentaEdois respondeu: é poço, fosso é quando tá na horizontal; de pé, picolé, deitado é só palito.

Z.O.D escreve e pesquisa. Publicou uma pequena coletânea de contos no Lápis e vez ou outra alimenta este blog.