Arte, Arquivo, Acontecimento

(Mauricio Salles Vasconcelos)

Arte, Arquivo, Acontecimento


por Mauricio Salles Vasconcelos

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O arquivo do qual provém a escrita e para o qual se encaminha é vivo. Por mais que o inanimado percorra feito um subreptício thriller a tecnologia. Situado entre o instantâneo e o deferimento, o ato de arquivar não se encerra num circuito letrado – dentado/adentrado – como premissa. Nem se sustenta por mero atrelamento às formatações midiáticas, modeladoras de uma pregnante imagética e do impacto informacional, próprias de uma era high-tech global capital. Subjaz a todo acervo/arsenal de dados in fabula o fator do exscrever (J-L Nancy), de uma extração, da contraefectuação de uma ocorrência, de um tempo, em seus reservatórios memoriais.


O timing se revela alterno – Ao pulsar da temporalidade textual enquanto vivência partilhada entre diferentes concepções de épocas, culturas e vidas, refazendo as pautas de cronologia e evento em planos tão abertos quanto cruzados de leitura. Arquivo/Memória/Montagem Heterodoxa: de Freud a Avital Ronell (arché do romance familiar rumo à anarquivização dos coletivos contemporâneos); de Godard a H Helder (mapa/moviola/esferográfica travelling); de Ana Cristina César a Raquel Nobre Guerra (feminização interventiva do gesto de anotar); de Lyn Hejinian a João Vário (decurso do diagrama “minha vida” sobre linhas extemporâneas dos anos vários).


O fluxo info não naturaliza procedimentos mecânico-conectivos. Induz à pesquisa (um trabalho sobre si/autor/obra e domínios os mais diferentes de conhecimento acionados dígito a dígito). A partir de um amplo e recombinável repertório icônico – verbal – gnosiológico, apreendido em incessantes frentes e fontes cognitivas.


Ao andamento do toque digital – mental – corpóreo – correlacional por máquinas de escrita em meio a existências em emergência – Sob a pulsão indescartável do que quer ser escrito agora. Apenas agora.



Tony Smith, Playground 3_3, 1962-2003

O arquivo – estocagem portátil – pautado por cortes e colagens intempestivos, provindos das relações entre o acaso (tempo fora-dos-eixos, em vias de inscrição) e os registros viabilizados por dispositivos diversos (filmes, cassetes, polaroides, computadores), vêm pontuando desde os anos 1960 uma insurgente revolução eletrônica. Tal como W S Burroughs definiu a vertente – no contrafluxo do fetichismo/funcionalismo – deflagrada pelo pick-up rizomático imanente ao humano multimediado. Mais do que um cut-up, para lá do recorte, dá-se a abrangência de recolhas e reengenhos dos elos entre ações de corpos em vasta sintonia com o aleatório e códigos maquínicos. Pick it up! Assim Deleuze prefere renomear – em lugar do cut and paste – tal proposição intelectivo-cartográfica de redes neuronais/nocionais (preconizadas por Burroughs) compostas para fora da Gestalt meramente operacional da tekhné.


Desde tal formulação, seguem-se trilhas desatreladas da noção de que a escrita “vem da mente”. Nada a ver com escrever sobre – rompida fica a mecanicista ordenação de ideias proferidas por um monolítico, soberano lugar autoral com sua estável bagagem de recorrências e recursos.


Ainda que inseparável de uma presença real – atribuível à história de corpos com seus bens simbólicos, imateriais, já há algum tempo decorrida entre séculos e ciclos de poder, prazer e cultura –, toda autoria se lança a contar de coordenadas vividas, precisas, para o gesto desprogramado de uma incursão. Passa-se ao ato, então –


Após anunciadas desaparições e mortes, a literatura subsiste e toma plano cada vez mais relevante enquanto gesto mapeador de seu ressurgimento, sempre em desbravação. Ante tecnologias/suportes/superposições mnemotransmissoras –


Desde os sinais mais abissais enfrentados pela cena techno instalada por Burroughs no espaço da letra/leitura, culminante na tattoo writing de Kathy Acker (onde pulsa uma corporalidade frontal em intenso compasso com infinitas referências escriturais), passando-se pelos blog-ups do espanhol Agustín Fernández Mallo, transformados em programa aberto de uma literatura móvel. Até se suplementar pela forma-livro reconfigurada por Mark Z. Danielewski enquanto casa-de-folhas, narrativa exploratória de ambientes/labirintos discursivos como se adentrasse um locus a cada página, a cada linha.


Desde quando o regime ordenador on-line de matéria/memória significa orbitação on-time.


Da capa de Senhor Roubado, livro de Raquel Nobre Guerra

Mesmo quando não há referência direta a tal aparato maquinal-instrumental, a todo escritor não escapa a exigência de um campo-de-provas a ser armado como situação e atualização de um projeto jamais salvaguardado na esfera das Letras. Arquivar não prescinde de uma gênese em processo e profusão do que se plasma a cada momento, irredutível ao identitário (imagem já formada) e ao originário (iteração do fundamento). Cada escrito põe em causa seu modo de produção, indissociável da sondagem sobre o estado dos signos e das coisas (veja-se Foucault, leitor de ficções) inerentes às histórias da literatura em sua (des) continuidade.


Em meio a arquivos, artes/áreas do saber/linguagens compactadas em fluxo corrente/construto de uma pretensa sincronia universal de interações/informações, escrever desponta como narratividade singular de um campo-de-forças e provas desenrolado sob o signo do acontecimento. Ao avesso de um real estratificado, endereçável a categorias inseridas num concerto englobador de acessos orquestrados pelos poderes da nomenclatura e da disciplinarização.