Narrativas de

Lara Perussi

Lara Perussi é professora, mestra em Letras pela Universidade Federal de São Paulo (2020) e, atualmente, doutoranda em Teoria e História Literária na Universidade Estadual de Campinas. Tem artigos científicos publicados e, em 2022, permitiu-se experenciar a escrita literária novamente.

Esclarecimentos:

 

“C”: mulher recém-divorciada e protagonista dos contos.

“N”: ex-marido de “C”.

“D”:  o novo amor de “C”.

Setembro 

 

“Em setembro será diferente”, “N” disse. Diferente, por quê? Ele mudará de apartamento? Finalmente lhe dirá algo a respeito dos papéis do divórcio? … Ou será que o divórcio, palavra pesada talvez por conta do som fricativo do “V”, já está encaminhado? Tão depressa! Não, não é possível, “C” dizia a si mesma, sem saber ao certo o que pensava disso.

Uma merda de dia parece pedir por uma frase bosta, inconclusiva e superficial, como um casamento de menos de dois anos, seguido de um namoro pacato, de quatro. Em setembro será diferente … 

Frase de bosta? Talvez palavrões como os condenados pelas igrejas nos cultos de domingo fossem mais adequados à descrição daquela situação, sobretudo, porque foram estes que ela mais ouviu, quando a boca que antes lhe oferecia beijos doces e quentes, abria-se com paixão avassaladora para fazê-la sangrar. Mas os palavrões eram contidos, porque “C” havia aprendido, desde pequena, que algumas coisas não podem ser ditas, sobretudo por “mocinhas” (apesar de as palavras “mais feias” sempre envolverem mulheres: paradoxos).

“Em setembro será diferente”, era a promessa. Promessa vazia como todas as outras que ele fizera. Se ela o visse saberia. Saberia que a gentileza fingida e nauseante de “N”, a indiferença, as invalidações, os gritos e silêncios atordoantes lhes assombrariam por muitas primaveras.

A sina 

 

Um tranco fez com “C” tivesse os seios espremidos nas costas do homem que estava à sua frente. Teria ele notado? Provavelmente não. Seus seios não eram tão grandes assim para que o incomodassem tal qual ou mais do que o cheiro da manada de trabalhadores (ou vagabundos sem bom-senso) que enchiam aquela minhoca barulhenta que, ora abaixo, ora em cima da terra, parecia levar todos onde queriam ou onde deveriam estar. Apenas os sortudos (e “C” conhecia poucos desta natureza) atendiam ao dever e a desejos pessoais ao mesmo tempo. 

“Anhangabaú”. Minutos se passam. “Paramos para a retirada de um usuário da via.” Suspiros de desapontamento, palavrões e até gritos de nervoso despertaram “C”, que pensava se os seios seriam indiferentes a “D” como foram ao Homem- costas.  Ele, se os visse, sentiria vontade de beijá-los ou ficaria decepcionado com a sua medialidade? Ficou aliviada com a interrupção de seus pensamentos, um tanto quanto indiscretos, mas enojada com o rapaz ao seu lado, que fungava constantemente o nariz farto, perto de si. Brigar? Não. Ainda teria de dividir aquele espaço minúsculo com o projeto de homem, provavelmente futuro engenheiro e neoliberal, por alguns tantos minutos, multiplicados por um suicida que uma senhora do vagão chamava, ininterruptas vezes, de egoísta “como escolhera dar fim à sua vida miserável em horário de pico? Total falta de empatia”. 

Lembrou-se de Tia Marta, a mulher que a vovó culpava ano após ano por ter estragado o Natal de 2000. Por que uma pessoa decide botar fogo no próprio corpo no dia 24? Como fazer o almoço premeditadamente feliz do dia 25 com uma notícia dessas na família?

“Falta de empatia”. A velhinha do vagão, talvez bondosa como a vovó, continuava. “C” pensou sobre como a palavra que a velhinha usava estava na moda. As palavras têm dessas. Entram e saem de moda. Talvez como o próprio suicídio. Anos atrás, a notícia de um usuário ter se jogado na via poderia parecer mais interessante do que se afigurava naquela quarta à tarde. Algo que antes interromperia o tédio, agora parecia fazer com que ele aumentasse, tornando o espaço já limitado do vagão, num lugar quase inóspito à sobrevivência.

Uma mulher de meia idade pareceu começar a respirar com dificuldade. Provavelmente estava no meio de uma crise de pânico. “C” pensou em dizer-lhe algo, mas a mulher logo fechou os olhos e, inclinando a cabeça sobre as mãos, estendidas e firmes na barra de ferro, parecia tentar controlar o mal-estar. Ao que parece, a mulher se sentia mais tranquila em pensar que estava sozinha no ambiente, sem aquele monte de gente fedida lhe espremendo o corpo.  E ela realmente estava. Estava sozinha, ainda que aquele monte de gente fedida lhe espremesse o corpo e “C” chegou a esta conclusão. No mesmo momento, o fecho dianteiro do seu sutiã abriu. Teria de descer na próxima estação para fechá-lo. Talvez até pudesse perguntar das circunstâncias que envolviam o caso do suicida “egoísta”. Talvez alguém finalmente repararia nos seus peitos, agora livres e despontados, enquanto estivesse na plataforma.

O vagante no quarto 

 

Descansar, para “C”, era preciso, imperioso. O corpo moído pedia, clamava por isso. Na cama, ela sentia a coluna dolorida, a cabeça pesada e os braços tensionados. A janela do quarto permitia que a luz amarela dos postes da rua incomodasse os seus olhos cansados da realidade. Sentou-se na cama, estendeu os braços e fechou as cortinas para deixar de ver (pelo menos com os olhos) a rua pela qual costumava caminhar todos os dias.

A ausência de um corpo masculino ao seu lado e de uma aliança grossa em seu dedo pareciam evocar presenças antes rechaçadas por “C”. A relativização do que por muito tempo chamou de “pecado” também. O medo de ofender um Deus sempre ofendido, com pensamentos ou atos, cedia lugar a um vazio abismal.

Respirar lhe era custoso ou pelo menos pensar em respirar profundamente, como os manuais e vídeos de meditação lhe sugeriam, o era. A dor inominável que aprendera a chamar de angústia “dera as caras” em seu quarto escuro, pouco depois de alguém arrastar um móvel no apartamento de cima. Encolheu as pernas antes estendidas, pôs a mão na pelve. A cólica, parceira fiel da angústia, avizinhava-se. Era a natureza, em toda a sua força, gritando para fazer-se notar. “C” era mulher e, por vezes, era conveniente esquecer-se disso. Conseguiria, um dia, gerar um filho?  A expressão “relógio biológico” começava a martelar em sua cabeça. Ela queria gerar um filho? Junto a “relógio biológico, juntaram-se as palavras “instinto”, “culpa” e “divórcio” … Incomodada com os ruídos que se faziam e atrapalhavam o seu descanso, ela mudou de posição, acreditando que assim, talvez, o seu corpo sugerisse à sua mente outros caminhos a tomar. Virada ao lado direito, “C” abraçou o travesseiro, agora sem dono, com a esperança de, assim, aplacar a dor ambígua (indicadora de vida e violenta como a morte) que sentia. O calor do travesseiro suavizou a cólica, “C” alegrou-se com a sua pequena conquista e, por um momento, breve momento, sentiu a sua mente silenciar-se. No silêncio, contudo, surgiu a imagem de “D”. Imagem tão intensa quanto a cólica que lhe incomodara até então. O sorriso endurecido, o olhar senil, as mãos grossas… Palavras soltas que, vez em quando, trocava com “D”, assim como olhares e sorrisos fragmentados, faziam-lhe quase esboçar um sorriso. “C” gemeu. Seu útero contraiu-se, sem aviso, e a dor, parceira de todos os meses, fez questão de mostrar que ainda estava ali, apesar de ter se escondido por um momento. “C” abraçou o travesseiro com mais força, mas cogitou que virar de bruços seria melhor, o fez.

De cara no travesseiro, levemente sufocada, “C” pensava em tudo o que diriam, aqueles com quem convivera na infância e na adolescência, sobre a sua vida e o que chamariam, levianamente, de suas decisões. Levianamente, porque ela não havia escolhido se divorciar. Talvez sequer tenha escolhido casar! Alguns diriam que ela sempre fora estranha, outros associariam a sua perdição aos livros com os quais sempre fora apegada. Diriam que ela era uma puta fracassada. Provavelmente com palavras diferentes, retiradas das Sagradas Escrituras, mas diriam. “C” era mulher e, por vezes, era conveniente esquecer-se disso, mas a igreja não se esqueceria.

Por um momento “C” lembrou-se do ex. Não, ele não tinha mãos grossas como as de “D”, “N” era mais delicado em suas formas. As risadas espontâneas, as conversas de domingo à tarde… Poucas lembranças do casamento eram boas, mas durante o namoro e o noivado houve momentos bons. Teriam sido reais? O que foi, de fato, real? Outra pontada na pelve fez com que “C” mandasse à merda “N” e todas as mentiras que lhe contara. Sentou-se na cama, abriu a gaveta da cômoda ao lado, tirou um comprimido de uma cartela quase vazia e tomou-o a seco. Quando era criança, “C” tinha medo de morrer engasgada ao tomar comprimidos. Pelo menos este medo não havia se concretizado. Ela também tinha medo de nunca nenhum homem querê-la: este medo ela não sabia dizer se havia se concretizado ou não. “N” a teria querido algum dia ou apenas desejou querê-la? Deitou-se de bruços novamente. 

Talvez fosse a sua fé no medicamento que havia tomado, mas depois de alguns instantes, a cólica silenciou-se. “C” não queria pensar em “N”, assim como não desejava ver a rua pela qual passava todos os dias. Evocou, novamente, a imagem de “D”. Ele era a sua cortina. Cortina de fumaça, alguns diriam. “C” visualizou, mais uma vez, os lábios de “D” encostando nos seus. As mãos grossas no seu cabelo, nos seus seios, nos seus quadris. Imaginou-se engalfinhando-se nele, como nunca fizera com o seu marido (único macho da sua vida), pôde sentir o atrito das genitálias se encontrando... O corpo de “C” estremeceu.  Era a natureza, em toda a sua força, gritando para fazer-se notar. As mãos de “C”, antes envoltas no travesseiro desceram e fizeram o que o sonho não podia fazer. “C” gemeu, não mais por conta da cólica.  Respirou aliviada, apesar de sentir-se suja.  O prazer sempre lhe parecia errado, ainda mais o autoprovocado, clitoresco, que havia aprendido ser egoísta.

Palavras soltas que, de vez em quando, trocava com “D”, assim como olhares e sorrisos fragmentados, dessa vez, lhe fizeram sorrir. Imaginou-se abraçando o peito nu, que, diferentemente da rua que a cortina tampava, não conhecia. Viu-se prenha.

Encontro

 

Naquele dia, ele se aproximou como quem pisa em campo minado, devagar, sutilmente (criança assustada). Sorriu timidamente, parou diante de mim, apertou minha mão direita, acariciando-a com sofreguidão. Logo em seguida, saiu, sem ferimentos aparentes.