A causa justa (fragmento)

Osvaldo Lamborghini

A CAUSA JUSTA (fragmento)

OSVALDO LAMBORGHINI


A Causa Justa, juntamente com O Menino Proletário e Ivan Cloaca, compõe a primeira versão, feita em livro, de Osvaldo Lamborghini (1940-1985) para o português. Pedro Magalia e Mauricio Salles Vasconcelos traduziram as 3 narrativas do grande e irreverente escritor argentino, com publicação programada para o segundo semestre de 2021 (Editora Córrego/Coleção Vírus).

Estudado por Paul B. Preciado, admirado por César Aira (organizador de sua obra completa em prosa e poesia), tornado autor de culto, Lamborghini surpreende a cada linha, seguindo trilha singular, numa vertente em que Sade e Céline se reconfiguram nos anos 1970-1980 numa formulação narrativa única, estonteante. Imperdível, o surgimento em língua portuguesa de um projeto literário inigualável, recepcionado por leitores do espanhol com fervor por força de um universo radical de experiência/linguagem.



Bastou a Tokuro olhar mais uma vez para o cadáver de Jansky para sentir-se vencido, completamente vencido.

Voltem os três ao chuveiro, não abram as janelas, não saindo de lá até que eu diga — ordenou, e ficou a sós com o cadáver do que fora seu amigo. Cobriu-o com uma toalha e deixou passar alguns minutos. Em seguida, na posição marcial funerária, meditou profundamente em silêncio. Talvez mais do que em silêncio:

Porque Tokuro, ex-chefe de ocupação das Filipinas, leu o livro da Casa Imperial A causa justa, que Tokuro não discute, mas pensa: nem todos têm o mesmo direito ao heroísmo, à lealdade, à justiça, Tokuro educado Samurai e depois no Colégio da Marinha, Tokuro triste e cheio de tristeza no coração pela imensa extensão de mortos e piadas, pensa, volta a pensar — sem lágrimas, porque isso é proibido — que paixão se exaltou em combate e cometeu o pecado de esquecer a inteligência. Grande pecado, mata um rapaz confundido com criminosos. Então, se Tokuro não entendeu A causa justa, toda sua vida significou o grande rastro de uma existência equivocada. Grande pecado de inteligência e também pecado moral. Pecado que começou na infância e juventude. Pecado de vaidade e de covardia também. Humildemente teve que pedir permissão ao pai para se retirar em um convento, meditação. Tokuro, todavia, não entendeu bem o ontem, tampouco hoje. Talvez vaidoso tenha dito talvez porque estava talvez confuso. Talvez quisesse honrarias e que Imperador dissesse "Que corajoso Tokuro!", e que grandes mestres das armas, começando por si mesmo, fizessem um gesto de aprovação. Tokuro sempre esteve sozinho desde que chegou à Grande Planície das Piadas. Até que um dia, por acaso, conversou com o jovem Jansky — que hoje Tokuro matou — na cafeteria da Empresa. Especialistas os dois em eletrônica, tinham assunto. Não apenas isso. Os dois queriam se aprofundar em eletrônica, e o generoso Jansky se ofereceu para traduzir material polonês, traduzido do russo. Sentiu uma viva chama de prazer e gratidão Tokuro. Pensou ainda que podia agradecer da mesma maneira, lendo material japonês e alemão, idiomas que o polonês não dominava. Combinaram que sim, mas o tempo passava e os dois solitários e tímidos nada faziam. Por sorte, numa noite em claro, Tokuro meditou seriamente na diferença entre Palavra Cumprida e Palavra Quebrada. Teve que confessar. Eles estavam fazendo Palavra Quebrada. No dia seguinte falou com Jansky, confessou o que se havia confessado. Jovem, mas com grande sentido do dever, Jansky também confessou: estava se comportando mal. Eles decidiram começar três vezes por semana, na casa de Tokuro, mais perto da Empresa. No começo foi difícil. Eles tinham material de trabalho, mas havia o medo de falar. Jansky olhava as recordações imperiais de Tokuro, principalmente o sabre Samurai, só que sem nenhuma palavra. Até que, envergonhado, em voz alta, Tokuro se lembrou da Palavra Quebrada. Começaram a trabalhar. Em poucos meses adiantaram uma barbaridade. Porque o material exigia também a leitura de Física e outras ciências. Desde o primeiro dia, pegaram o costume de anotar o que parecia importante e desconhecido na imensa planura das piadas. Em uma certa tarde releram notas. Encontraram enorme utilidade para a Empresa. A lealdade os obrigava a entregar cópia do Relatório. Dois dias estudavam por semana. No terceiro, escreviam. Jansky escrevia — a quem hoje Tokuro matou — porque sabia perfeitamente o castelhano. O que era lógico aconteceu: trabalho em comum traz amizade. Até confidências. Jansky contou sua paixão pelo boxe. Pareceu mal a Tokuro contar que Tokuro foi campeão de boxe Armada Imperial, até que se dedicou por completo ao caratê. Amizade deve excluir rivalidade. Jansky sabia de Tokuro carateka. Como, ia perguntar, também boxeador? Não, não estava certo. Tokuro carateka. Jansky boxeador. Também ia perguntar o que todo mundo pergunta: qual o melhor? Tokuro não gostava de mentir, queria tampouco ofender o amigo contestando: — Caratê melhor. Trabalho em comum traz amizade. Amizade também traz um ao lado do outro por puro gosto, em passeio. Assim conheceram zoológico, que nunca tinham visto. Percorreram tudo, admiraram animal por animal, porque todo animal tem algo extraordinário, mas a coisa que acharam mais estranha foi a caverna dos tadeys, animal de continente remoto, quase igual ao homem, mas irracional e sem poder dizer palavras. A única coisa que envergonha, os costumes tadeys. Totalmente sodomitas durante o dia, nem olhavam para as fêmeas, totalmente normais de noite, e prolíficos: era preciso controlar a natalidade. Parecido, quase igual ao homem, isso deixava todo mundo assombrado. Agora cientistas revisavam teoria Darwin. Mas não havia dúvida, eram animais, inclusive faziam "porcaria” diante de todo mundo, fornicavam entre o mesmo sexo sem cessar. A diferença era que tinham um membro muito pequeno e o que mais os agradava era a posição passiva: o mais forte obrigava o outro a ser ativo. Contudo, não eram tão corrompidos como o homem. Houve a necessidade de se colocar vigilantes, porque depravados mostravam o membro ao tadey, pobre animal, ao ver o que para ele era enorme, ficava como louco, um deles chegou mesmo a se matar investindo contra as grades. Outro passeio era se encontrar para um café, conversar, contar da Polônia e do Japão. Enquanto falava, Jansky um dia confessou que era de seu gosto — frisou — “Fazer Teatro”. Ator?, perguntou Tokuro. Jansky respondeu que não, algo mais chegado a uma “piada”. Ele explicou o que era. Tokuro disse que isso devia ser bom para seu amigo, que era um rapaz, não para um cavalheiro mais velho, como ele. Mas Jansky contou que havia ensinado a “piada" a um amigo tcheco, e com este tcheco representavam de vez em quando nas esquinas lotadas de Varsóvia. Tokuro pensou que fosse costume polonês. Entre os costumes deles estava então "Fazer Teatro", muito de vez em quando; para não desrespeitar a cidade. “Fazer Teatro” significava fingir um encontro em esquina cheia de gente, como Peru, Avenida de Mayo, Corrientes e Montevidéu ou algo parecido. Assim que se encontravam, discutiam raivosamente, mas cada um na sua língua, um em polonês, outro em japonês. As pessoas começavam a se agrupar ao redor, e quanto mais pessoas, mais eles gritavam. Então acontecia algo incrível, nada menos que enormes pradarias de “piadas”: as pessoas começavam a tomar partido. Apaixonadamente. Pessoas brigavam entre si, uns estavam dispostos a se deixar matar a favor do japonês, outros queriam linchá-lo porque davam razão polaca ao polaco. Claro, evidente, Tokuro era japonês, mas nem sabiam a que idioma pertenciam as palavras de Jansky. Não tinha a menor importância, às vezes quase tumultos e violência. Tokuro, que no começo hesitou, o mais divertido dos dois agora. Cada vez mais coragem, apresentação todos os dias. De repente encerravam discussão e caíam fora, deixando quase cem pessoas-planície em discussão, a ponto de se pegarem. Ponto de encontro, apartamento de Tokuro, para comentar e rir, gargalhadas impossíveis de conter. Tokuro ria como criança, como nunca na vida tinha rido. Lembrava, por exemplo, palavras do taxista: “Se o japonês (seguramente sabe caratê) me diz isso eu mato ele, olha que eu juro pela minha mãe”. Taxista gritava pra Jansky: “Pode vir, colchão mijado (Jansky era louro), repita pra mim se tiver duas bolas no saco, você não vê, otário, que o japonês não te mata com Kung Fu porque tem pena? Seguramente porque é homem direito, oriental sério, pra não quebrar o coração da sua pobre mãe. Vem pra luta, filho da puta, eu me cago pra sua mãe!...” Mas acabou por vir um alerta para que terminassem o jogo. Foi em Pueyrredón e Las Heras por volta das sete e meia da tarde. Um homem violento, porém sério, não violento “de boca”, magro, olhar de assassino profissional, sacou revólver e apontou para Tokuro. Jansky que por acaso tinha grande pegada, conseguiu descarregar golpe tremendo no braço do revólver e conseguiram escapar. Naquele dia, pensaram seriamente em encerrar aquilo. Melhor contentar-se com a piada que faziam na cafeteria da Empresa — os outros não achavam graça —, assim que se viam e quase ao mesmo tempo se perguntavam “Fazer Teatro?”... não continham as gargalhadas. Eram sérios, se tivessem se comprometido em não encenar nunca mais, seria promessa cumprida. Só que, haviam apenas hesitado, continuavam a pensar a respeito. Desceu uma definitiva e vergonhosa cortina sobre Reconquista e Paraguai. Carro da polícia e policiais que saem e fazem eles subirem na viatura. Polícias, nenhuma palavra na viagem para a delegacia: acreditavam que eles nada sabiam de castelhano. Uma vez lá, “piada” involuntária. Oficiais falavam do controle de passaportes, da confusão com as embaixadas, como se eles não entendessem. O que parecia o Superior disse: “Cuidado para ninguém se safar”. (Tokuro relacionou safar com o zarpar dos barcos. Pensou que tinha sido descoberto como ex-oficial da Marinha Imperial e morria de vergonha. Vergonha agora explicar a verdade, e que sabiam o castelhano. Sobretudo o esforço feito pelos oficiais, dirigindo-se a eles por sinais no pedido de passaportes. Trocaram um olhar com Jansky: ainda que vergonhoso, dizer a verdade, confessar, ou passar por criminosos? Não fazer nenhuma gracinha, “piada” para policiais, algo estranho neste país. Agora, polícia, não entender língua. Ficou claro, são dois engenheiros eletrônicos da "Egometrix", a multinacional mais importante com filial no país. Mas mesmo assim, policial que os levou para a cela, disse a ele (com certeza, falaria um dialeto, não entendeu completamente): "Tintureiro de merda, vamos te processar por escândalo na via pública!” Tokuro não protestou por "de merda" porque ele se tinha portado mal, compreendia cólera da polícia. Mas quis esclarecer sobre a profissão — engenheiro eletrônico, não tintureiro — por medo de confusão legal. Nada. Tinham caído na mão de homem severo, mas injusto e que não compreendia bem o castelhano. Usou cortesia e paciência. Ele explicou novamente: tintureiro não, engenheiro eletrônico. Mas, policial surdo? No Japão, surdo não podia ser policial. Outra “piada”? Não havia maneira de entender. Insistiu. “Eu disse para calar a boca, tintureiro de merda ou vou te fazer passar a ferro os uniformes de toda a corporação!” Melhor calar-se. Outro “de merda” e caía em cima para quebrar Polícia, processo por assassinato. Confusão também com profissão de Jansky, policial doente mental, monomaníaco? Jansky protestou com um empurrão. A polícia achou que ele era sindicalista. Soltou um grito: "Espera pra ver, garoto esperto, polonês comunista, com certeza se você está na Argentina é porque anda na onda de Walesa, o democrata, quando são todos a mesma merda!” A Empresa Importante conseguiu tirá-los sem processo: “Delegado Suborno”, explicaram outros empregados no escritório. Não entendeu nem quis: tinha medo agora de que tudo fosse “piada” e terminasse mal.