Hospi-TÁ-LaR 

(Luís Figueiredo)

A atendente que não levantava o queixo era a responsável por organizar toda a documentação que permitiria a ele tirar a Licença para Acompanhamento de Familiar Doente. 

A atendente estava sempre com os olhos nos documentos ou na tela, ele teve a ligeira impressão de que os olhos dela eram dois glóbulos totalmente brancos, mas que ao contrário de cegueira eram capazes de aferir os mínimos detalhes de um documento, digital ou analógico, de forma que um deslize nas diretrizes arquivísticas criasse a barreira impeditiva no fluxo dos processos. 

 

Está tudo certo… Aparentemente. Agora vai para o setor dos ArquiVistas. Se tudo estiver ok, em 15 dias o Perito visitará o quarto e dando o parecer favorável a licença é deferida.

Mas e se o Perito der o parecer desfavorável? Eu já estou aqui sem trabalhar.

Neste caso, você sofrerá desconto nos vencimentos por não ter trabalhado.

Mas eu ficarei sem dinheiro…

São os ônus e bônus de ter um familiar aqui no Hospital.

 

Ônus e bônus de ter um familiar doente.

 

Por algum motivo lembrou de Bono Vox. Ele odiava U2.

 

 

O Perito nunca apareceu, mas a secretária da escola acabou ligando e avisando que a licença havia sido deferida. Como estava sempre sozinho, com a mãe ao lado entorpecida de morfina, qualquer um que lhe dirigisse meio sorriso era motivo o bastante para uma conversa. Um bom lugar para encontrar alguém era o hall de entrada. Ali ficavam aqueles que esperavam pela chamada de internação. Alguns esperavam por meses, outros em instantes já eram chamados. Vozes diziam que a intervenção de um Padre famoso desatava nós e abria caminhos, para poucos o chamado era mero acaso.

Sentou-se ao lado de um homem cabisbaixo. Puxou assunto e jogou o jogo mental da loteria dos servidores. Todos ali, ou eram servidores, ou dependentes destes. De tal sorte, que criou a loteria - um jogo mental. Antes que seu interlocutor se revelasse, ele apostava em qual das quatro áreas a pessoa estaria: Saúde, Educação, Polícia ou Judiciário.

Aquele senhor, pelas roupas mais simples não seria do judiciário, o olhar de desânimo, a voz desgastada e ao mesmo tempo três tons acima do comum indicava ser professor. Na loteria dos estereótipos, confiou nisso.

 

O senhor é professor?

Sou sim. E você? 

Também. A gente se reconhece, né?

 

Trocaram um olhar. A cumplicidade dos afogados.

 

Faz tempo que você está aqui?

Alguns dias, estou acompanhando minha mãe, por sorte minha licença foi deferida hoje. Fiquei mais tranquilo.

Que bom. Eu estava aqui com minha esposa. Pólipos intestinais. Só que os ArquiVistas estão embarreirando o tratamento. Ela precisa operar, mas como os índices de sucesso nas operações do setor 28 estão baixos, dizem que a Arconte mandou segurar operações delicadas. Daí eu estou aqui, e ela está naquelas cadeiras desconfortáveis no espaço de espera, aguardando um encaixe.

 

Ele tentou um olhar de compreensão. Talvez tenha conseguido, pois o senhor tocou-lhe os ombros.

 

Foda, né?

Foda.

 

Levantou-se sem jeito e saiu condolente. 

Sentiu dó da Senhora Pólipos Intestinais. Não haviam perguntado os nomes. Não fugiram do costumeiro. Naquele lugar todos eram doença ou companhia.

 

Às 10 da manhã os médicos chegavam. Vinham em bando, todos com seus jalecos brancos inexpugnáveis. Olhavam por cima, sempre em direção a um horizonte além de quem com eles estivessem falando. Aqueles que acompanhavam os pacientes esperavam nas portas dos quartos, enquanto a falange branca adentrava quarto por quarto. Em suas pranchetas haviam anotações herméticas, com hieróglifos intrincados, o destino semanal dos doentes ali repousava. 

 

Bom dia.

Bom dia.

Maria. É sua mãe?

Sim.

Nenhuma melhora no quadro, aguardamos os dados do setor de radioterapia e quimioterapia. Se possível será agendado o início da rádio e da químio, mas a fila está grande e a prioridade é determinada por pareceres técnicos.

Desculpe, doutora, mas como assim?

Com base nos dados, a fila para a rádio e quimio se movimenta.

Mas… isso quer dizer que ainda vamos esperar para o início do tratamento? O caso dela não é urgente?

É sim. Por isso ela está na lista de espera… dos urgentes.

 

Depois de um tempo já não sentia mais dor. Era só um saco de carne com dentes pontudos e proeminentes. Ela não falava mais. Mirava o teto e repetia dois movimentos. Escrever na lousa e fumar um cigarro. 

Ele, ao lado, na cadeira incômoda. Rumina como que ao restar só um corpo, uma casca sem mente, esse corpo repetia o trabalho e o vício. Tudo aquilo que mata deixa marca. Não admitia, mas há algum tempo sabia que não havia mais nada ali. Acompanhava um casulo.

Começou a vagar pelas alas do hospital e no espaço para fumantes encontrou uma moça. Loira, pálida, esguia. Em sua pulseira de acompanhante havia um sobrenome impronunciável, que futuramente se revelaria lituano.

Acompanhava o pai e reclamava do irmão que não trazia calcinhas para ela, obrigando-a a roubar as calcinhas descartáveis de uma doente.

Riram e esse tipo de humor o atraiu. Ainda mais quando ela, enlouquecida como ele por estar dois meses ali, afirmou que no último andar havia um poço de suicídio em que bastava apresentar a pulseira de acompanhante e se atirar. O poço tinha conexão direta com o necrotério e era a única forma de sair lá de modo digno.

Luís  Figueiredo  

Doutorando em Literatura Hispano-Americana pela Universidade de São Paulo – USP, é também Professor de educação básica na Secretaria Estadual de Educação do Estado de São Paulo.