Resposta ao livro O homem tematiza o homem

(Lucas Miyazaki)

Lucas Miyazaki é autor do romance Catálise e da dramaturgia de Não ela: o que é bom está sempre sendo destruído. Publicou os livros Celular.quitinete.rua (2017) e Elefantes (Prêmio Nascente 2015). Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa - USP

Tematizar o homem. Belo enunciado. Penso, então, na forma escrita de retornar a esse ponto.


***


Nesse final de semana (sábado, 29 de maio, 2021) aconteceu o lançamento do livro O homem tematiza o homem: escrita masculina no século XXI, obra resultante de junção de textos surgidos a partir de uma conversa organizada por Ana Paula Ferraz, de que participei na companhia dos escritores Felipe Souza, Marcelo Ariel e Mauricio Salles Vasconcelos.



Não planejava dizer nada na live de lançamento da editora (Piscina Pública) mas, sendo pego de surpresa, fui jogado na roda por Marcelo Ariel.


Três palavras me saíra da boca (cuja dicção é, não raras vezes, digressiva demais para colocações rápidas em uma ciranda de live cronometrada) — sexualidade, erotismo e pornografia.



Nunca considerei que minha escrita literária se erguesse por qualquer um desses pilares, ao menos não de forma tão explícita como, por exemplo, em Battaille, Hilst ou Perlongher; mas ao retornar à palavra homem, só consigo compor um átomo cujos elétrons sejam sexualidade, erotismo e pornografia.


E voltando à leitura da coletânea recentemente publicada, constatei que essas indicações de fato orientaram a minha fala de então. Fácil constatação, feita a partir da leitura do ebook disponível no site da editora e rápida rememoração do evento, mas que evidenciou

uma outra, referente a um elemento também pulsante ali,

ainda sem nome, na conversa em torno da palavra

homem.



Esse outro elemento



um tipo de atmosfera

causada pela escrita — que vem a calhar ser masculina

(eu sou um homem e estou vivendo no século XXI.)


Está relacionado a um vício:

habitar

espaços

microcelulares que são, ao mesmo tempo, projeções macrocelulares. Ainda que me falte uma série de conhecimentos científicos para tal


(essa perspectiva só me foi possível com o avanço da ciência),

quero dizer que há sempre

um encaminhamento da

escrita para registrar as dissociações

causadas à minha existência

segundo coordenadas da vida

micróbica/sideral

— ou micro e macrocelular.




O movimento escritural viciante em direção à expansão extrema

da atmosfera,

o outro elemento, não possui um termo preciso.



Posso afirmar que é algo muito distinto,

mas análogo,

ao número mil e um,


número intangível para os seres humanos da época pré-newtoniana.

— Hoje, um título como mil e uma noites só pode ser lido no plano da especulação: um número muito grande.

Sabemos que é um número metafórico quando pensamos, exemplo, no número de células que nascem no nosso corpo

(300 milhões por minuto)

ou na idade da terra

(4,54 bilhões de anos).



Uma fabulação inaugura-se a partir de uma placenta primitiva onde quase se desfaz a possibilidade de comunicação;

ou leva o leitor, feito o rato da fábula de Kafka, para esse centro, fazendo tudo culminar na dissolução pelicular.




Uma das possibilidades da narrativa de inscrição no papel que existe no mundo é justamente essa de criar um

“espanto das células” (Gombrowicz).


Chegar ao magma da linguagem, como propõe Hjelmslev —


imagens, tecnologias, sociedades.

A escrita,

acessar esse magma,

mostra um dos seus gestos instigantes e infindamente múltiplos, quando a comparamos

às tantas outras linguagens narrativas e líricas que, nos dias streamings de hoje, competem com o que resta da chamada literatura.




Ainda que seja a placenta primordial e esquecida o que se espera inusitadamente encontrar em algum beco a ser desvendado nas páginas escritas, descobre-se, ao mesmo tempo, não haver nada de fixo ou propriamente originário em uma existência. Evidencia-se, pela travessia no livro, que tudo que é fixo e originário (homem, mulher, pai, mãe, ser humano, cultura)

vacila diante de um punhado de sintagmas fonológicos justapostos em contato com os poros — papel, ar, retinas, boca. Habitar espaços do infinitamente microscópico e planetário, levando-nos a relâmpagos fractais.



Outro exemplo para o “susto sideral” é a possibilidade de

retornar ao animal humano, tema caro à filosofia contemporânea.

Não relacionado



a um conhecimento aguçado da ciência, mas sim (ciências e filosofias) apenas na medida em que ela torna-se um


vago espectro à deriva



no campo de linguagem possível para se falar sobre a casa em que habitamos,


como um retorno inesperado do vôo sideral.


Voltamos,

então,

aí sim,

mais inesperada e espantosamente,

ao tema latente desse vício

da ambiência

atmosférica causada

pela escrita (micro e macro)

e pela leitura.

Não é o vazio,

não é a disjunção em si;


mas é a casa nascida dela,

o prazer

que estava contido na pele,


a capa do corpo, o encontro (ou sonho, já basta)

da maior cultura



possível que se possa ter notícia e a partir da qual

se possa pertencer.


Uma vez que não paramos no vazio sideral ou no distópico,

uma vez que o espanto

dissociativo surgido na alquimia

das frases fez erguer a casa possível,


nenhum corpo passará de forma universal, sem o sexo,

sem o desejo que envolve a reprodução de vida e sem


o desvio tecnológico

possível à

explicitação das atividades sexuais que envolvem



a palavra homem.




E tal empreitada, para que seja

real, científica, filosófica,

literária à historicidade do momento

presente, só pode ser inventada,


reinventada e continuamente proposta por uma escrita


igualmente inaugural. Uma escrita sempre feita ao retorno inexistente — ou ainda:

à abertura,

ao salto extremamente novo,

à fuga.


O pensamento nunca para,

o ruído nunca cessa desde o Big Bang

e nos resta apenas inventar

os regressos fabuláveis.


Ao invés do ponto neutro, sem sexo,

“mineral”, “virtual”, “objetal”


escrever sendo homem (e no“século XXI”),


traçar o caminho de fuga a partir dessa capa máscula, ou devolver uma proposição

que finalmente

disputa por

uma forma na palavra

homem?


A fuga para além de binômios

como homem-mulher jamais será óbvia


— ao menos, estamos longe disso, ainda que sejam categorias que facilmente derrapam assim que começamos a pensar nelas,


categorias fractais variando

entre micro e macro. E essa fuga torna-se cada vez mais

surpreendente e desafiadora — agora, voltando à pulsão sideral micróbica


na minha escrita


ao enlace entre o convívio deste corpo (de homem) com o de um outro (um menino, como dizemos), o meu parceiro, pessoa transmaculina que,

em microdoses,

disputa uma forma de homem, ainda que essa palavra soe, agora,

exagerada no nosso vocabulário.


Não ousaríamos dizer


nós, homens.


Mas, depois da escrita

— dramaturgia e encenação de uma peça na qual as palavras, junto ao teatro físico destes dois corpos, escorregam

(Não ela: o que é bom está sempre sendo destruído)


e de uma prática sexual pública envolvendo litros

e mais litros de gosmas rubras

(Pornô shows),


uma reutilização dos enunciados,




nós, homens, retorna das placentas peliculares.


Na travessia da fuga,

no vício escritural da atmosfera

captada por uma linguagem das partículas,


ou qualquer outra que nos é real (ciência, filosofia, tecnologia),

desse outro elemento orbitante da linguagem,


um nós, homens, então, ergue-se



depois de tocar os espaços

do gozo e mudança nos fluxos sanguíneos,


bem quando restaura-se e vitaliza-se o abrigo físico da palavra,



o real puro nascido da fábula.


Homem: capa do corpo,

cultura —


ainda que seja pela cisão,

pela exclusão e diferenciação, ou pela hibridização

ou comunhão ritualística da espécie.

Cena da peça Não ela (2020)

Residência da peça pelo Centro Cultural da Diversidade (2021)

Performance no Pornô Shows (Dir.: Janaína Leite)