Histórias conturbadas - Apanhadores de... (Priscila Gontijo)

Histórias conturbadas - Apanhadores de cogumelos & novas formar de narrar

por Priscila Gontijo

(Dramaturga e escritora, doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa/FFLCH-USP)

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Fotografia de Anna Tsing publicada no livro: The Mushroom at the End of the World: On the Possibility of Life in Capitalist Ruins. Segundo Tisng, “Elaine Gan tornou-as utilizáveis com a ajuda de Laura Wrigh” (TSING, 2015, p xi).




Não é difícil compreender que para aceitar a multiplicidade do mundo há que se conviver com tecnologias avançadas, com espécies companheiras e criar as condições necessárias para coexistir com humanos e não humanos em sua heterogeneidade. Acredito que uma das maneiras de criar laços, de tecer conexões e de pensar novas formas de nos relacionar atravessa a narrativa de ficção.

Na conversa com sua tradutora para o espanhol, Helen Torres, em maio de 2020, Donna Haraway, autora do livro Ficar com o problema[1], diz que “Histórias de Camille” trata-se de sua primeira tentativa de escrever uma ficção especulativa, uma ficção científica. A fábula surgiu de uma oficina de narração junto à Vinciane Despret e Fabrizio Terranova em que muitos fatos científicos são usados para construir uma história.

As histórias de Camille funcionam como um esboço de histórias possíveis, um tipo de revezamento, como um jogo de cordas com histórias entrelaçadas. Segundo Haraway as alianças de Camille consistem em trabalhar com e para os humanos e os não-humanos. No ensaio, “The Carrier Bag Theory of Fiction” de Ursula Le Guin, citado por Haraway na conversa com Torres, Le Guin fala sobre:


(...) a necessidade de deixar de contar o conto fálico, o conto do herói com as armas, o conto de viagens fálicas que regressam com a recompensa...basta de histórias fálicas! Precisamos contar as histórias dos detalhes minuciosos de como viver e morrer juntxs, as histórias de colecionar e compartilhar e pegar e dar que não são, de forma alguma, histórias inocentes, mas são histórias de viver e morrer como uma sacola de rede, como uma mochila, como uma espécie de coleção. Essas são as histórias que Le Guin pensa como a forma da ficção. Então, não se trata do espaço da matriz com o significante privilegiado que se desloca através do relato, senão algo mais parecido com essa mochila portadora feita por um coletivo de mulheres (...) (Haraway, 2020)

Quando Haraway diz que nossas práticas de contação de histórias estão repletas de formas de imaginar e performar mundos que façam mais sentido, alguns conceitos de Anna Tsing parecem ecoar das profundezas do bosque, clamando por modos alternativos de uma nova escrita, onde habitar um devir-com seja não só possível, mas almejado. Essa nova forma de ficcionalizar urge por uma comunicação transespecífica, feita de encontros imprevisíveis, a partir da floresta de cogumelos Matsutake. Ao descobrir iguarias nascidas das ruínas, poderemos – quem sabe – expandir com os limites do narrar.

Em seus livros, Tsing abandona a etnografia e se aproxima do texto literário em uma perspectiva dialógica. Em The Mushroom at the End of the World: On the Possibility of Life in Capitalist Ruins, por exemplo, Tsing mostra que o trabalho com fungos é capaz de atravessar os limites entre ciências naturais e estudos culturais e revelar um conhecimento não apenas crítico, mas criador de mundos.

O que está em jogo é construir narrativas mais densas sobre os fenômenos com os quais nos deparamos. E para isso não apenas são necessárias outras formas de ver o mundo, como também ter a capacidade de escutá-lo, de pressenti-lo, de aguardá-lo e de compreender que não há apenas um mundo, mas variações dele, em planos distintos. É necessário deslocar as bordas indisciplinares para o centro das coisas.

Em Viver nas ruínas: paisagens multiespécies no Antropoceno, Anna Tsing menciona que a “‘virada acadêmica’ para a multiplicidade se destaca com os múltiplos aparatos de conhecimento atuando simultaneamente” (Tsing, 2019, p.142). Uma de suas intervenções metodológicas foi fundamentar pesquisa e análise em uma paisagem, pois “uma paisagem pode existir em qualquer escala, mas sempre envolve uma diversidade de fragmentos. (...) Pensar com paisagens abre a análise para uma multiplicidade entrelaçada” (idem, p.149). Esses métodos se reúnem para possibilitar o conceito de assemblage. Assembleia é uma ferramenta para investigar “como variadas espécies em um agregado de espécies influenciam umas às outras. (...) e nos mostram histórias potenciais em formação” (idem, p.150).

O termo, usado como conjunto de coordenações através da diferença, ganha de Tsing o aditivo “polifônico” e assim, pode apontar para uma nova dimensão da escrita narrativa. Escrita essa em que a percepção aprecia os múltiplos ritmos temporais e trajetórias do agenciamento, ao contrário do ritmo do progresso.


Esses ritmos têm sua relação com as colheitas humanas; se adicionarmos outras relações, por exemplo, a de polinizadores ou outras plantas, os ritmos se multiplicam. A assembleia polifônica é a reunião desses ritmos, resultam de projetos de criação de mundos, humanos e não humanos (idem, p.152).

Nesse sentido, a proposta de uma escrita Matsutake ou de uma multiespécie narrativa não tem unidade e nem é passiva. Ela obedece a uma via não cronológica e sua presença espacial é indefinida, dispersa, sua indeterminação faz parte da história. Colher a palavra como um apanhador de cogumelos, a recompensa sendo o grau mínimo: uma multiplicidade de cheiros vertiginosos nascido entre bons parceiros: plantas, animais e fungos. Nessa nova forma de narrar no contemporâneo, o verdadeiro ato criativo se revela nessa zona de histórias conturbadas e contaminações ferozes, essas “zonas serpentinosas”, para usar um termo de Haraway. Nesta proposta de criação de uma narrativa especulativa interessa investigar vazamentos, ranhuras, rachaduras, aquilo que escapa, as indeterminações, oposições contínuas sem sínteses, aquilo que não é visível, explicável, fixo, porque não é mais possível acreditar em lugares estáveis ou falar de parentesco no capitalismo.

Tanto Haraway com suas histórias de Camille quanto Tsing na floresta de Matsutake conseguem provocar cortes na marcha de progresso e possibilitar uma redefinição de arte, cultura e pensamento. Para além do multiculturalismo, as histórias de Camille permitem construir redes, entendendo que o entrelaçamento entre humanos e não humanos gera movimento. As escritas de nossos dias seguem temporalidades múltiplas, revitalizando descrição e imaginação. Todos nós temos essas linhas de vida de caráter heterogêneo da comunidade, linhas étnicas, poéticas, narrativas, sexuais, de relatos da terra, dos corpos, como informam Deleuze e Guattari, em Mil Platôs.

Nesse laboratório cósmico de misturas, de comunicações, de trocas e de coexistência de mundos, nada se separa, mas abre-se a ideia de perspectiva de mundos mais que humanos, afinal, como aquela piada séria feita pelo companheiro de Haraway: não é humano, mas húmus.

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Referências:

DELEUZE, G.; GUATTARI, F. “Micropolítica e segmentaridade.” In Mil Platôs. Capitalismo e Esquizofrenia. Vol. 3. Coordenação da tradução de Ana Lúcia de Oliveira. São Paulo: Editora 34, 2012.

HARAWAY, D. Staying with the Trouble: Making Kin in the Chthulhucene. Durham and London: Duke University Press, 2016.

______. Ficar com o problema: gerar parentesco no Chthuluceno, a ser publicado pela n-1 edições em tradução de Ana Luiza Braga. Entrevista com Donna Haraway, feita por sua editora para o espanhol, Helen Torres. Tradução: Ana Luiza Braga, Caroline Betemps, Cristina Ribas, Damián Cabrera e Guilherme Altmayer. Revisão: Ana Luiza Braga. Disponível em: https://n-1edicoes.org/137 Acesso em: 27/11/20.

______. Antropoceno, Capitaloceno, Plantationoceno, Chthuleceno: fazendo parentes. Tradução: Susana Dias, Mara Verônica e Ana Godoy. Artigo publicado no site ClimaCom Cultura Científica, 2016. Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/4197142/mod_resource/content/0/HARAWAY_Antropoceno_capitaloceno_plantationoceno_chthuluceno_Fazendo_parentes.pdf Acesso em: 06/12/20.

LE GUIN, U. K. “The Carrier Bag Theory of Fiction.” In Dancing at The Edge of The World. Thoughts on Words, Women, Places. New York: Harper & Row, 1990.

TSING, ANNE. The Mushroom at the End of the World: On the Possibility of Life in Capitalist Ruins, Princeton University Press, 2015.

______. Viver nas ruínas: paisagens multiespécies no Antropoceno. Tradução: Thiago Mota Cardoso et al. Brasilia: IEB Multi Folhas, 2019.



[1] Helen Torres, ao entrevistar Donna Haraway, faz perguntas em relação à situação atual em diálogo com citações do livro Ficar com o problema. A primeira citação é do capítulo Pensamento Tentacular: “Como podemos pensar em tempos de urgência sem os mitos autoindulgentes e autorrealizáveis do apocalipse quando cada fibra de nosso ser está entrelaçada, e é até mesmo cúmplice, das redes de processos nas quais, de alguma maneira, é preciso envolver-se e voltar a desenhar?” (Haraway, 2020)