Gestações

 (Pedro Magalia)

À vista

Julien Duval/Amazing Aerial Agency

À vista: terra. O barco aproximava-se. O autor sozinho e sua câmera, que enfoca a ilha. Por onde entrar? Explorar a diferença entre pisar nas espumas, descendo mastro, harpar a embarcação à âncora, sentir o frio gélido do mar, tocar o areal impregnado de pedras e filmar o movimento dos pés pela sequência das fotografias fremendo diante da natureza. Os pés brancos e molhados – a sensação de algo inesperado acontecendo. No entanto, somos apenas águas pedras moídas ervas rasteiras e carne. Essa carne que se entranha no espaço afundando as unhas na argila molhada e me faz deitar ir rolando até me tingir do barro. Aponto a câmera para o céu azul para enquadrar a estrela do dia.

 

Já misturado à ilha moldo minha obra e a gravo. Minha intenção é mostrar que só há o quem da enunciação, articulada em outra dimensão, levando-me de encontro ao pensamento que imitará minha morte como personagem. Eis o primeiro capítulo: Daquele que se despiu para penetrar a terra.

 

Capítulo segundo: O autor sonha que voltou a ser menino e realiza o desejo de subir na mangueira para ir chegando cada vez mais longe de galho em galho com agilidade e paciência até apoiar-se na madeira bem formada da onde colhe o fruto maduro. Detalhe: close nos dentes agarrando-se aos fiapos amarelos. A língua estuporada absorvendo a madureza caudalosa do lento processo que se deu entre a germinação e o amadurecimento; restando o caroço mastigado e seco, firmei os pés sobre o sustento para apontá-lo como um cetro contra a gravidade.

 

A semente cai em silêncio me desequilibrando até atingir o solo com sua secura rasante. Ali olho para baixo e algo aparece me encarando. A câmera tomba pela distração da minha cabeça abaixada, quase lá embaixo vai parar. Um ponto cor de cobre tal a manga. Resolvo ir obedecendo à gravidade e, apoiando-me nos galhos, vou descendo cuidadoso. Cada vez mais próximo vou desvelando um corpo, de cabelos castanhos, esse corpo é do meu diferente, é mais macio, circuloso, com pitangas maçãs abacates pétalas… Aproveito para me estender ao solo e bater fotos suas, mas ela arranca o instrumento das minhas mãos e aponta o foco contra meu rosto.

 

3: O herói e a heroína encontram-se pelas lentes e iniciam um jogo selvático pela mata até as pedras da costa litorânea:

 

Uma sensação esquisita de que algo acontecerá me rodeia. Talvez me lembre de já ter estado na ilha alguma vez. Porém ela ainda me atrai e a ideia da interlocução causou uma impressão positiva. Parece que gosto de ser a ela submisso. Meus esconderijos são sempre descobertos… Mas desta vez foi muito mais rápido. Uma sereia que me levará ao abismo para me afogar depois com todo meu consentimento. O fato de se estar em um lugar flutuando sobre as águas repleto de árvores frutos areia espuma onde apenas estão duas pessoas é por si erótico. Ela sai andando de costas distanciando a lente entretanto sempre a me enquadrar. Percebo ser um convite. É curioso: o modo que usamos para nos expressar com o tempo se torna mais importante que os próprios sentimentos expressados por meio disso. Na cidade era banal o tédio. O café oferecido na cama como carinho e depois o que mais se faz: sair para trabalhar.

 

Próximo capítulo: A alteridade é a condição para o prazer:

 

Já há algumas horas caminhava sem rumo pela ilha e não a encontrava. Não sabia onde teria se enfiado, ainda por cima com a câmera que pertenceu ao meu avô. Embora fosse legal ganharmos mais elenco, assim haverá enredo e trama. Não combinamos o roteiro, porque o jogo aleatório é mais excitante. O problema é: ninguém que tenha enfrentado a solidão quer saber de permanecer sozinho quando o outro vai embora. Irei às pedras tanto por instinto como por pressentimento. Pois algo precisa acontecer na próxima cena.

 

Escalando uma atrás da outra com agilidade fora do comum para um vivente urbano, as rochas iam me ferindo a pele amiúde e cortando-me as unhas. Quando já sangrava em demasia olhei acima por distração e a flagrei disparando o flash com audácia. Zoom e todos verão sua piroca disse rindo. Tentei subir até lá a fim de alcançá-la porém quando cheguei no seu encalço ela já havia apoiado a câmera no topo mais alto da encosta e saltado penhasco abaixo até desaparecer da tela para ouvirmos seu mergulho.

 

Resolvi enquadrar a última paisagem e saltar atrás deixando agora as águas me conduzirem. Ágil nadadora, em vão tentando alcançá-la, quando percebi deixava-me puxar pela correnteza e não consegui chegar ao nosso encontro, ela já quase na praia...

 

Não lembro como comecei a me afogar. Acordei cuspindo mar, os pulmões se liquefazendo, seco gosto de sal na boca. Aparece seu rosto de cinismo, sempre fazendo pouco da minha força, ou fraqueza.

 

Quando acordei naquela noite, ouvindo os estalos da fogueira, fui até ela, que estava agachada à beira do fogo de câmera às mãos. Longe do filme, o pressentimento ganhou a forma. Finalmente, nasciam personagens. Mas eu já queria subir no barco e voltar consigo para nossa casa.

 

Como se a visse pela primeira vez, não sei por qual motivo ou se pela sombra gerada pelo fogo, achei que estava grávida... Ao notar minha presença, levantou-se e subitamente passou a me enquadrar. Depois de tudo, antes de nada, falou: Agora sim, vamos começar:

Preciso dizer que vou embora

Isabel Kwon 

O demônio fala o que é perturbador. O rádio-telefone diz coisas, repetidas ao vácuo embora ditas num timbre que se infiltra dentro dos ouvidos. Tem apenas um olho, mas encara também com seu não-olho. Este parece inclusive trazer uma confiança maior, costurado por dentro o vazio de fora. Enquanto isso, ele no meio dos dois, dorme a senhora de cabelo laranja, no banco do ponto de táxi onde os três estão sentados. Ela dorme e parece sonhar. Talvez sonhe com a música que o outro vai entoando tentando sintonizar a antena com um sem-saber e ruídos. Queda o radinho de pilha ao lado para fingir que amarra os sapatos calçados sem cadarço e bate no tambor improvisado (banco de madeira) enquanto os calça novamente para em seguida descalçá-los. Passa a viatura com estrondos de sirenes, quase atropela alguém. (Agora a menina senta-se conosco, sem olhar a ninguém. Batom estridente. Olhos sombreados. Calça colada no corpo. O branco ao redor da pupila contrastando ora com a íris, ora com a pele. Levanta-se quando chega um motorista. Como se pedisse informação sobre caminhos parece querer combinar algo com ele, mas este desaprova. Aparece um sujeito de óculos escuros, branco, barba por fazer e camisa aberta no peito. Começa a conversar com o taxista apontando para ela). Os pés dele (o caolho) cheio de frieiras. A de cabelo laranja, agora acordada, balançando as pernas como criança sobre o balanço. (Aqueles pés com frieiras e o olho inexistente certamente diziam alguma coisa sobre estar sentado ali sem nem ter almoçado. O “ponto de táxi”. – Tá olhando o quê, seu safado? não te deram educação, não? Olhava mesmo sem um olho, inquirindo, e o menino não sabia se ele falava com o rádio mesmo. (Alguma coisa está acontecendo aqui. Um acerto entre a menina, o homem do peito aberto e o motorista. Os dois entram no carro branco e os três somem).
 
Será que estava atrasada? Ou errou o ponto de encontro? Todavia os policiais continuam encarando. Enfim ela veio. E sentou-se do nada, quase sem ver a senhora de cabelos laranjas, contrariando uma primeira intuição de que fossem atores. E falava, falava, falava... coisas sem nexo dizendo do que via todo o tempo, as pessoas passando, sentando, acendendo um cigarro, engraxates de sapato, do que no fundo todos nós participávamos, “humanos”, “políticos”, sentados no fundo dos ônibus contra o vento forte que bate contra nosso rosto invadindo a janela aberta pela metade. Estava mudada. Levanta e, num primeiro momento, não deu para imaginar que isso significasse Segue-me. Mas agora já estava quase tocando a faixa de pedestres e ela sempre caminhando a passos lentos, lentamente, dobrando os joelhos e pousando o pé seguinte à frente do caminho. Neste momento, o maior espanto em vê-la outra vez foi sua magreza. Meu Deus, como está magra! a própria dizia a si caçoando dos ossos pontudos. Mesmo assim se mostram os olhos puxados e o lábio rosado. Era ela. Fez que vai atravessar a rua porém se detém ante a faixa. O sinal está vermelho, embora nenhum carro esteja ocupando o espaço. Então o verde aparece e começa a atravessar lentamente a rua, bem devagar, colocando um passo à frente do outro com um vagar insuportável. O farol começa a piscar piscar piscar foi piscando cada vez mais rápido até que estancou no homenzinho vermelho de vez. Ainda estavam no meio da via e os carros-ônibus-motos-caminhões buzinavam e avançavam enfurecidos, ela agindo como deveria ser ou parecer, como se nada estivesse acontecendo ou acontecessem todas as coisas ao mesmo tempo. Para sobreviver, se deve persistir do seu lado, acompanhando o passo de tartaruga, foram caminhando, anônimos, anódinos, e ela ia dizendo Eu sou a menina que sorri da janelinha do ônibus O cara que buzina enfurecido O ambulante vendendo e comprando ouro A moça dos lábios queimados se arrastando no chão Às vezes saio nua nas ruas Às vezes paro e peço um café coado com um copo cheio de pedras de gelo Às vezes beijo na boca mesmo sem ter vontade, a boca de ninguém, ou alguém, boca nossa, e estrala, espantando todo o meu silêncio... Mas continua a me seguir. Todos os dias na minha frente você permanece atrás de mim, mesmo quando não te vejo.
 
Vai se dirigindo ao meio da calçada. Segue-a ato contínuo e as pessoas vão se esbarrando. Agora parece estar se guiando por um som, uma música dançante, um swing de discoteca, até arrisca ensaiar alguns passos, mas, vagarosa, ninguém percebe. Por que não tirá-la pra dançar? Quem sabe ela ensina, porém não quer magoá-la, que tem tido tanta paciência em se deixar seguir... Seria, inclusive, o momento ideal para buscar o caderninho no bolso de trás e rabiscar qualquer coisa, mas ao tatear o espaço entre a orelha direita e o boné não encontra a caneta. Então os olhos encontram a vitrine das perucas. Como é possível perder o único presente ganhado na vida? É como ver-se desenhado num buraco.
 
De todas as cores há: loiras ruivas negras amarelas vermelhas azuis, talvez até laranjas, e abaixo da escadinha há ainda prateleiras e mais prateleiras de cabelos e mais cabelos acima dos bustos maquiados. Ela pergunta: Aqui se compra cabelo? Hoje não, mas volte no sábado e alguém vem medir. Sabe se paga bem? Depende... Varia de acordo com o tamanho. Acha que consigo quanto? E soltou o coque deixando seus fios caírem até as canelas. Isso causou um espanto ainda maior, pois ninguém diria que estivessem daquele tamanho e ela prometeu voltar antes de qualquer resposta. Não prende os cabelos de volta, escorrendo aos pés. Ganha a escada e, só agora, subindo no seu encalço, reparou que está descalça, até começar a cruzar as vias novamente, e atrás das suas pegadas os fios vão sendo pisados e repisados por cada sola das ruas agora sem carros do coração da cidade, fato que a fazia atrasar ainda mais o passo e ir tropeçando a esmo após os outros nela tropeçarem.

 
Entra no boteco à frente da galeria e, após todos encararem, ela diz Somos de Saturno. Senta-se na bancada. Pediu um café bem forte e um copo com cubos de gelo enquanto ele ia afastando as tranças do caminho tentando tirar as sujeiras que restam nas ruas, chicletes grudentos, folhas, cacos de vidro, notas fiscais. Vai se comovendo com esse toque apesar de tudo, enredando as palmas no que passou a ser familiar; ela vira a xícara no copo e toma de um gole o conteúdo. Para de mexer no meu cabelo. Envergonhado, não sabia como agir. Queria explicar que fazia aquilo para o bem, porém não encontrava palavras. Entre a raiva e o susto, senta na frente dela e a olha bem olhado. Não sabe se o reconhece. Então ela se levanta após deixar uma moeda em cima do balcão. Foi imitar seu gesto para continuar seguindo mas ela põe uma mão no ombro dele e diz Você fica. Então a espera sair. Quando deduziu que podia sair sem ser visto, ruma à calçada. Procura por perto, corre em todas as direções, pergunta inclusive aos que passavam se haviam visto a mulher ou, antes, o cabelo, ou depois, e cada um ia negando o que dizia o olhando como se fosse feito de mentira. Finalmente, ganhou dele. Por seus finos fios infinitos. Cada fio que crescia depois dela ter sumido era um dia a mais na sua espera. Deve tê-los prendido, outra vez. Pois se apertasse o passo derrubaria as pessoas. Ou então correu como louca uma carreira de uma vez e agora estava muito longe, talvez outra vez inalcançável.

 
Resolveu rumar à vitrine das perucas e permanece ali algum tempo substituindo o reflexo da sua face pelos manequins, e quase riu quando percebeu o bigode despontando ralo. Por um segundo pensou em não pedir mais pra raparem seu cabelo, mas certamente não dariam nada. Decidi ir procurar a caneta. Vai descendo a Barão de Itapetininga olhando pra baixo e vê os pés descalços um pouco adiante, corre e, quando dá por si, era um homem catando latinhas.

 

***


Arch Daily

Não sabe há quanto tempo está andando. Desaba em pé e sente vontade de chorar. Não pode ao menos rabiscar qualquer ideia. Dinheiro para comer tem pouco e não quer gastar de cara o que roubou antes de fugir. A espera por anos. Entretanto não sabe se voltará, nem pra onde foi ou se mudou de nome... Iludiu-se decidindo ir embora, pois pensava que lá fora a vida dizia outra coisa. Mas parece que aqui todos estão repetindo o mesmo. Cuidado com os passos: não deixe os pés parados. Lembrou do sábado, porém nem sabia que dia era hoje, ou onde ficava a vitrine. O “ponto de táxi” outra vez na frente. Sentou entre o baterista e a velha de cabelo laranja, que dormia... Porém acordou subitamente para dizer Tudo o que ele está dizendo é mentira. Porque todas as palavras são mentirosas. Você mesmo pode perceber – nada significa nada. Seus óculos de míope, esse cabelo laranja, sapatos sem sola e radinho de pilha que serve de celular. Acredita em espíritos? Crê que eles nos enviem mensagens? Pode ser, porém ninguém por aqui se entende. Falamos a mesma língua, mas dizemos coisas diferentes, e isso o que dizemos não sabemos da onde vem. Então o baterista pede ao aparelho para aguardar na linha mais um momento, porque precisa atender um cliente no balcão. Diga – diz tirando a caneta de trás da orelha e estendendo o rádio. Qual vai ser o pedido, amigo? Estou pronto para ouvir, ou melhor, servir-te. – A caneta, não titubeia. A caneta, quero a caneta, que estava atrás da sua orelha e agora nos dedos. Pode não parecer, mas essa caneta já foi minha. Como não roubou, peço pra devolver, porque agora ela pode encontrar seu dono, certo? Nada é certo até que se prove o contrário! disse ele cuspindo ofensas contra o moleque. Como poderia provar, aliás, que seria sua a caneta? Eu posso até contar a história dessa caneta. Mas preferiu abrir o caderno para mostrar a cor da tinta. E franzindo as rugas o homem disse que achou a caneta sem tampa, Além disso, não sei escrever. Toma. E a aspereza da ponta risca em falso a folha em branco apoiada sobre as palmas carcomidas. Olha, exclamou de repente, uma mulher sem cabelo atravessa a rua, quero dizer que está careca. Quando se deu conta até a caneta havia abandonado para seguir aquelas solas encardidas.

 
Agora andava depressa. Parece que havia invertido seu modo de ser. Talvez os cabelos fossem o que pesava. Prática e esguia, difícil de acompanhar, os pés nus sumiam entre os calçados. Até que entra por uma porta. O lugar estava repleto de cartazes com homens e mulheres que estouravam seus músculos contra os olhos dos passantes. Espalhados ao redor, milhares de potes, parecidos com os que se guarda produtos de limpeza, tubos côncavos, embalagens brilhantes. Ela pega uma revista, ele observando de longe, sai com a revista repleta daquelas imagens de corpos distorcidos retorcidos e quando viu a estava oferecendo a um catador de papelão. Então ela abaixou a calça até os tornozelos dela se livrarem completamente, rasgou de vez a blusa rota e passou a caminhar nua cada vez mais veloz, notada em escândalo. Ele, morto de vergonha, não sabia o que fazer; no entanto, não queria ser descoberto. Enfim, ela para na vitrine em oferta e pede para provar o florido de girassóis. A vendedora, sem graça, pediu pra sair da loja mas ela tirou a roupa do manequim e vestiu assim mesmo, deixando o lugar com uma etiqueta ainda grudada na alça, caindo pela costela, um alarme disparando, ela sai em disparada, a vendedora gritando pra pegar a “careca”, ele pensa em pagar o vestido, mas volta a nota pro bolso e corre.

 

***

 
Cansado de andar e esperar, sentou na guia abaixando a face contra o lodo. Tinha a perdido novamente e não se conformava. Começou a chorar, mas quando olha à frente estavam as perucas misturadas com o som de discoteca. Levanta e vai até lá, paralisando a visão ao perceber o destaque atrás do vidro. Seus cabelos à venda. Os cabelos dela. E no reflexo da vitrine, do outro lado da rua, única mulher careca, a vê subindo os degraus abaixo da fachada escrita com a palavra HOTEL. Corre ao seu encontro. Vinha descendo a mesma escada a menina do ponto de táxi junto com o homem de camisa aberta e o motorista, agora também de peito afora, apressados.
 
Acima ela havia se servido da chave, o número do quarto estampado no chaveiro. Depois de subir mais três lances de escada, adentra a suíte de porta aberta no último andar da construção antiga, repleta de quartinhos espalhados pelos corredores. A cama coberta de imitação de tafetá. Em volta dela e acima espelhos e mais espelhos para todos os ângulos possíveis. Ouviu que ligou o registro. O vapor da água ia esfumaçando as janelas. O passo miúdo foi levando o menino até lá. Quando afastou um milímetro a porta, uma força repentina a repeliu de vez o descobrindo. Ela sentada no vaso. O fio do mijo ecoando na louça enquanto encarava sem dizer palavra. Por fim, se serviu do rolo de papel, dobrou uma folha, limpou e foi entrar no chuveiro para começar a cantarolar uma melodia suave e aguda, uma canção que ele reconhecia de um passado recente, quando tinha medo ainda de dormir no escuro.

 
Resolve se despir também, descalça os chinelos e entra ali no estreito espaço que untava os dois corpos na água morna. Serviu-se do sabonete. Há quanto tempo não sentia um cheiro bom. Ia ensaboando a pele dela, a face, os lábios feridos, axilas, orelhas, seus braços cheios de pequenos furos, botões, pétalas, a cabeça raspada arrepiava de tocar, calos e aspereza. Por fim os pés, que tingiam a espuma de azinhavre. Começou a massageá-los, se estendendo no chão para beijar, passar a língua entre os dedos... Com toda a força e todo o amor podia ter pedido, podia ter implorado ou gritado o mais alto que podia pedindo uma explicação, entretanto decidiu ficar calado.

 
Pois ela o foi levantando com cuidado até erguer totalmente o tronco e molhar sua face, os cabelos, o peito, e assim percebeu como tinha crescido e, apesar de franzino, estava forte. Uma sensação de limpeza o invadiu. Um gosto de liberdade. Até ela fechar a torneira após muito tempo que estavam abraçados. Pegou a toalha e foi enxugando seu garoto com vagar, fazendo cócegas, dizendo palavras doces, sons sem significados evidentes, e parecia que lembrava dessa voz contando aquelas histórias… Ela também se enxugou por completo. Depois, pegou um batom vermelho que estava apoiado na pia. Foi tingindo os lábios à frente do espelho, que agora também ia iluminando o outro rosto, feliz atrás do seu e foi apontando o batom a ele até lhe riscar os lábios e a repelir e se atracarem já no chão dando risadas, até ele finalmente perguntar o que significava a palavra “táxi”...
 
Após ficarem ali estirados por horas sem nada a dizer, ele, orgulhoso, pensou em mostrar os desenhos, mas ela falou: Preciso te contar um segredo. Fez menção para acompanhá-la. Foi seguindo atrás dela até as duas abas da janela se abrirem. Um corte do horizonte difícil de enxergar entre os prédios foi revelado. No fim dele, uma serra inebriada.
 
Tira a etiqueta do vestido e se cobre com ele. Calça o par de sandálias que estava debaixo da cama. Toda a cidade deveria reverenciar sua Rainha Careca. Vai caminhando até dobrar o lance de escadas, seguir rente à porta de vidro, que puxa para sair à rua. Ele atrás dela enquanto se perdiam na multidão.

Um gato preto

Arquivo Pessoal

Repara: o bicho de um feto. No tapete urdido em cordas. O foco da câmera captura o iluminado em sol. As arestas enquadram o retrato expondo a nudez felina sobreposta ao negrume. Gato preto é morte. Mas assim dado à luz pelo instantâneo é parido duas vezes (talvez sequer tenha saído do útero). E o mesmo sol que em iluminação o fabricou a partir da energia animada pelas sombras prende-o a si por um raio-cordão. Seguindo o organismo a espreguiçar sem sentir saudade da mãe que fora outrora a sua, ele se distrai. E seu rabo espanta a mosca.

Sobre o autor

Pedro Magalia é professor, tradutor e escritor. Como tradutor, publicou junto com Mauricio Salles Vasconcelos o livro O Menino Proletário, 3 narrativas de Osvaldo Lamborghini, inédito em português até então. Como escritor, é autor do conto retículo, publicado na antologia 9 autores: 9 histórias. Como ensaísta, tem 2 ensaios publicados na revista de crítica literária Cisma, sobre o cancioneiro de Lupicínio Rodrigues, e sobre o conto O Ovo e a Galinha, de Clarice Lispector. Atualmente, está finalizando a tradução do livro A La Santidad del Jugador de Juegos de Azar, de Hector Libertella, também inédito em português, a ser publicado ainda neste ano.