Sonilóquio (Priscila Gontijo)

Priscila Gontijo é escritora, dramaturga e pesquisadora, mestre em Literatura e Crítica Literária pela PUC/SP, doutoranda em Literatura pela USP, autora de Peixe cego (7Letras) e O som dos anéis de Saturno (7Letras). O trecho aqui transcrito faz parte do romance Peixe cego, romance finalista do Prêmio São Paulo de Literatura 2017, e cria um diálogo com o encontro “Escrita e ansiedade” organizado por Carolina Zuppo Abed


"A Pisadeira", Brazilian Folklore. Digital painting by Pâmela Souza. 3508 x 4960p



SONILÓQUIO



Não é que ela nunca pensasse em sexo, pensava. E nas noites chuvosas se acariciava sob o lençol sujo. Mas, na atual circunstância, acalentar qualquer expectativa em relação ao outro era no mínimo improvável. Agora, por exemplo, esgueirava-se pelo corredor do prédio para não esbarrar na síndica: Dona Sônia, uma alemã com humor polonês.

Mentir? Mentia. Ainda não tinha depositado. Nada. Nem um único tostão.

Acreditava no fundo que aquelas pequenas mentiras a conduziriam num futuro próximo a uma espécie de verdade.

E preferia uma mentira legítima do que uma verdade emprestada.

As ilusões. Melhor não jogá-las no lixo. Nunca se sabe qual delas te mantém em pé.

Sobreviver a cada manhã, conseguir algumas horas de sono e não deixar os fungos brotarem no meio da louça empilhada já eram atos heroicos dentro daqueles dias sufocantes na cidade-pedra.

Os fungos. Não podia se furtar em achar beleza na podridão.

E havia Boris Gruschenko, a mancha de infiltração do teto. Seu melhor amigo.

Agora ela precisava de um emprego. Fixo. Um contrato. Formal. Estava cansada de tantos bicos. De perambular por ruas cinzentas e inóspitas. De ser empurrada no metrô lotado, pedir empréstimos aos pusilânimes engravatados e implorar por oportunidades desafiadoras. Chegara ao ponto de persuadir mendigos, entrever oráculos entre os desconhecidos e pedir conselhos aos feirantes. Precisava urgentemente de um sinal.

O termômetro marcava quarenta graus. Isso do lado de fora. O de dentro estourava o peito como um incêndio. A gastrite reinava a par da eterna mania de perfeição. Por exemplo, este livro. A narrativa seria realizada no tempo passado ou no presente? Naquele sono pingado da última noite, ou seja, um cochilo de meia hora, teve um sonho premonitório. E no sonho os tempos se misturavam. Alguém sussurrou. O peixe, o gato ou a Matriochka? “Escreva em três tempos. Cruze-os, enlace-os, transgrida. Seja este o tempo presente: um entrelaçar de sonho.” Esse livro exigia dela uma disciplina asfixiante, pois que realizado entre pesadelos e acrobacias emocionais. E os reveses do cotidiano? O cotidiano a ancorava num silêncio cada vez mais amotinador. E a cólica renal não a deixava em paz.

Café, cigarro, café, cigarro. Às vezes, um mate. Uma rosquinha murcha. Amendoins.

Fazia muito tempo que uma noite inteira de sono era impossível.

Em suas intermináveis reflexões madrugada adentro, anotava estratégias de sobrevivência.

Imaginava que, se adotasse um velhinho, por exemplo, talvez aplacasse um pouco a solidão.

Mas, logo em seguida, sobrevinha outra ideia, ainda pior. E ela se dava conta de que das duas uma: ou esse ancião seria abandonado por ela como o foi seu cacto, outrora tão resistente, ou ele decerto morreria, restando-lhe apenas memórias afetuosas de conversas de fim de tarde. Ela permaneceria implacavelmente só. Ou até torturava-se – mais só do que antes, pois que com um a menos.

Um anão. Um amigo anão seria uma possibilidade de compreensão nessa terra de ninguém. Por que não um anão?

Simplesmente porque ainda não conhecia um. Faltava um anão.

Justo nesse momento, reparou a meia furada, bem no dedão esquerdo do pé.

Esmagada pelas dívidas e lançada a um cotidiano sobressaltado pelas indagações, devaneios e pré-datados, ela arranhava os dias fazendo bicos de toda espécie. Sem o menor talento para as coisas práticas do dia-a-dia, sonhava com uma Moscou luminosa, garantia de noites tranquilas e um refúgio para tantas exclamações.

E sonhava com os cafés, a gélida madrugada, a centelha criativa. Estrangeira aqui, desde sempre. Deslocada entre a flamejante extroversão de um povo. Sem samba-enredo, sem ginga, sem calçada. Pisando cautelosa, pelas beiradas. Lá, seria exatamente o que era: arisca. Inconvincente. E se alargaria como um céu de inverno. Poderia ser velha em Moscou. Ou ser criança em Moscou e conversar com os peixes em voz alta. Entre tabernas e construções milenares, pertenceria à cidade. Rainha anônima trafegando em idioma estrangeiro e tão familiar. A voz paterna rasurando investidas malsucedidas, palavras escolhidas a dedo. Desde criança, a vista espichada nas traduções.

Nos becos, há amizade. Entre os mujiques, os gatos cegos, os chás com eslavos idosos. As criaturas embriagadas de sonhos. A velha artilharia. Lá, a sua presença não seria desprezada. Lá, finalmente, seria acolhida.

Moscou era a sua Parságada.

Se eu fosse amiga de um anão, talvez isso me reabilitasse do grande buraco. Aquele fosso sem fim. Aquele medo do futuro, do vazio e da absoluta falta de sentido. E, até pegar no sono, ela escutava as manhas vigilantes desses fantasmas perdulários.

Três horas e quarenta e cinco minutos. Irina! Acorda. Está na hora.

Na hora?

– Da Pisadeira.

– De se preparar para o sol. Vai nascer.

– Os passarinhos já estão cantando.

– Avisando. Mergulha essa cabeça na água.

– Receitinhas contra a insônia.

– Três receitinhas. Valiosas.

Eu não quero acordar. Tenho medo. Tenho pouco tempo. Se penso sobre o tempo, não durmo. Meu organismo não é como o da anêmona, quanto mais afobada for a respiração e quanto mais alimento ingerir, mais radicais livres serão produzidos e mais rápido será o envelhecimento. Amanhã. De bruços. Avenidas enfermas. Os dedos congelados. Bota ortopédica. Estrabismo. Nada mexe em meu corpo. A febre me insulta, nada me retém. Minhas mãos e pés possuem cinismo. Quando a sombra sai de dentro, eu me calo.

– E desde quando você está dormindo?

Alarmes, buzinas, sirenes. Não quero acordar. Avenidas ardem aqui dentro. Tenho medo.

– Acorda!

– Temos que assistir ao pôr do sol de mãos dadas.

Alarmes, buzinas, sirenes. Não quero acordar. Febre. Palpitações. Me deixem em paz. A chuva sussurra um segredo. Receitinhas contra a insônia.

– É idiota. Completamente idiota!

Quando a sombra sai, ela me ilumina.

A Pisadeira lá em casa. Todo dia. Toda noite. Magra e cavernosa. Lá vinha a alcoviteira. Era só eu me deitar para ela aparecer. Eu não conseguia me mexer, ela aproveitava o meu medo e se deitava em cima do meu peito, me sufocando. Tirava tudo de mim – os sonhos, a morte, tudo. Quando ia embora, só me restava essa casca dura. Ela morava no quarto dos fundos. Lá, na primeira casa. Moscou. Essa é a história do meu pai. Do meu país. Brasil? A minha origem está misturada aos livros, aos sonhos, às memórias dos parentes.

Então, finalmente, adormeci. Viemos na escuridão. E a Pisadeira ficou em mim, pra sempre. Pode acender a luz agora?

Um estranho abajur globo-terrestre iluminado por dentro. Ela desliga o interruptor e dá corda num despertador. Revira-se na cama e observa o abajur, bem ali onde está o Brasil. Seus olhos piscam... E entram.

É puxada cada vez mais para o fundo até cair num lugar muito bonito, cheio de cavernas e grutas, coração da mata. Quando atina, está dentro de uma caverna. Ali corre um rio corre, e um peixe albino e cego desfecha uma cabeçada na rocha. Ela o segue. Nova cabeçada. A mulher está cara a cara com o peixe. Ele foge e adentra cada vez mais fundo a caverna.

Errante, perde-se no breu.

A voz a faz estremecer da cabeça aos pés. Ela é lançada para fora do rio, como se tivesse sido pescada. Sobre a superfície da crosta terrestre, ela se debate:

A voz diz: “Acorda!”