NOITE-DIA ARQUEOLOGIA – GUINÉ-BISSAU

MAURICIO SALLES VASCONCELOS


Publicado em dezembro de 2023 pelas Edições Esgotadas (Lisboa), o ensaio Mapas Caminhantes – Poesia do Tempo e da Terra estuda algumas produções poéticas a partir dos anos 1970 em Angola, no Brasil, em Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, São Tomé e Princípe, Timor Leste e Portugal. O livro tem sua origem na conferência realizada em Lisboa (UCCLA/União das Cidades Capitais de Língua Portuguesa 2017), a convite da Missão Brasil (Ministério das Relações Exteriores) em parceria com a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP).


 

                                          “Meu grito de revolta

                                                           (...)

                                                 Confraternizou todos os Homens

                                                 E transformou a Vida...”

                                                           (Amílcar Cabral)

 

Uma viva diferença se faz nítida quando se leem poetas guineenses posteriores a Amílcar Cabral, Antonio Baticã Ferreira, Vasco Cabral, entre outros, especialmente aqueles nascidos nos anos 1950 como é o caso de  Félix Sigá e Toni Tcheka. Em viva ruptura com a retórica modernista (embasada no patrimônio lírico brasileiro da época), fundadora, aliás, do sistema literário na Guiné a partir dos anos 1940, esses autores identificáveis como “de outra geração” mostram com clareza não apenas o corte feito a uma retórica da militância timbrada pelo metaforismo telúrico-natural tão corrente em África, antes e depois da independência dos países colonizados.

Num paralelo com a produção de João Vário, especialmente no que toca ao corte genealógico de Exemplo Coevo[1] ––, é possível se obter uma correspondência bem diferenciada, moldada em toque coloquial e flagrante realista no projeto-título de Sigá, publicado em 1996, Arqueólogo de calçada. 

 

Em terras do sol,

não cantam galos

nem mugem bois

gemem ao peso do sol

seres que História fazem  (Sigá, 1996: 17)    

 

O poema “Reportagem”, do qual extraí o trecho acima citado, revela em seu título o intuito de registro direto, bem característico da poesia escrita em português nos anos 1990. Algo que se acentuará nessas duas décadas do novo século, e já pode se perceber no livro Mãos do tempo, de Nok Nogueira.

Ressaltado fica o elemento documental, que poetas como João Vário e Ruy Duarte Carvalho (munido da câmera cinematográfica e do prisma etnográfico) operam em vias diferenciadas, seja por meio do “levantamento” em torno dos elos da captura de uma história-de-vida e do transcurso de uma época como se lê no autor caboverdeano, seja através do projeto de Observação direta, construído por Duarte de Carvalho. Nos livros mais recentes deste angolano, grafa-se um misto de diário com pauta de escrita experimental – notas de viagem cultural (conduzidas por um contorno roteirístico próprio de quem atua como cineasta) – concepções de textos oralizados entre a contemporaneidade poemática e o arcabouço etno.

 

Ainda que os dados definidores de uma verdadeira cultura documental, perceptível nos últimos anos 2000 em vários campos artísticos (não apenas na órbita do audiovisual), estejam presentes na produção de Félix Sigá, é preciso lê-los no processar de uma dinâmica não apenas plasmadora da neutralidade e da provisoriedade dos registros. Além do interesse em captar a polifonia de vozes, ritmos e diferentes emissões/dicções mescladas ao andamento enunciativo da poesia, um escrito como “Reportagem” – indicador do projeto/processo de Siga enquanto “arqueólogo da calçada” –, mostra a importância do ingresso no plano fabulativo do documento.

 

 

Uma indispensável assinatura recriadora e inquiritiva sobre a instantaneidade não impede que o sentido do imediato compareça com toda uma força de figuralidade e um poder de manter ativa, ampliada, a fiação dos motivos sinalizadores de uma ambiência – A rua, a lida cotidiana, a cena social em sua motricidade, nervura e face diversa, para além do controle de um foco-enquadramento verbais.

Senhora de pano tingido e sutiã branco

Também cuspia de vez em quando

Entre o cheiro da farinha e do óleo sabi

Arrefecia da cerca pr’ali atrás

E a terra úmida cheirava

Doutra maneira         (Ibid.)

 

Em sincronia com os estilos pós-modernos, dando sinal de uma mudança nos repertórios e nas retóricas sacralizadoras da autoria (ou o autor como supremo inventor) – tal como poder-se-iam definir os modos escriturais em vigor desde a segunda metade do século XIX e a eclosão dos modernistas (até o período em que se deflagra a Segunda Guerra Mundial)  – evidenciável desde os anos 1960 se mostra um movimento sem manifestos a favor da coloquialidade. Ganha relevo a marca contingente do trabalho escritural por meio do efêmero das “notações” mais e mais incorporadas por poetas de todas as latitudes. Uma tendência que se estende até o presente século/milênio e ganha um especial contorno quando é apreendido o empenho de Sigá, simultaneamente configurado pelas ações do “repórter” e do “arqueólogo”. 

O espaço da rua não se restringe à ordem de um realismo meramente fotográfico, circunstanciado pela contundência do que é visto em desordem e desabrigo no que envolve a vida social. Evidente se torna o gesto de um contranaturismo, dotado da nota suplementar acerca dos “seres que História fazem”. Justamente, aqueles colhidos numa convivência tão brutal quanto indicadora de uma paisagem humana, animal, ambiental, inseparável do andamento modular de um ethos capaz de fazer do documental no âmbito da poesia o que uma estudiosa como Corinne Maury concebia como “lugares afetados e habitados” (Maury, 2011: 56). Uma ação afinada com o entendimento de que o real não é aquilo de que se fala/filma e daqueles que se põem a falar – no “calor da hora” – dentro da já exauridada modelação do plano/contraplano do doc-entrevista (ainda que oriundo de uma “pesquisa de campo” sob controle do autor-documentador). Importantes são o polimorfismo e o ecletismo singulares (segundo os termos de Maury) que despontam à medida de cada instante/espaço de real posto em foco. Destacada fica a imersão no mundo que se filma e passa a envolver um projeto eminentemente metamórfico do real tomado por um prisma minudente, radicado no dinamismo inapartável de ver/ser visto, na pulsação de um flagrante tão vivo quanto disposto por sua abertura de vias documentais imprevistas.

 

O documentário, nessa via tomada pela ensaísta, se reinventa no compasso da paisagem humana e cultural a ser investigada. O que se faz à distância de um protocolo-programa enrijecido no escaninho “cinema do real”.

Tais paisagem – panorama – porção do mundo em mútua habitação de documentalidade e vida material – a partir das presenças e testemunhos registrados nos mais diferentes loci – se dão simultaneamente à projeção do contemplador/projecionista em transformação. Em face do que não se sabe a não ser quando se passa a ver/arquivar/conhecer. Muito ao contrário do documental das teses prévias, montado em critérios de objetividade/verdade.

A leitura de Maury em torno das mutações do documentário contém considerações sobre elementos de pesquisa e critérios de realidade/factualidade, que se ligam à observação feita por um etnógrafo da importância de Viveiros de Castro quando pontua o dado de que “não basta orientalizar, africanizar as “ficções do imaginário ocidental” (Viveiros de Castro, 2009: 4)”. Não é assim que se faz lançar a força dos ambientes/universos culturais documentados. Nada se descobre, dentro de tal estabilização da focagem – a partir da qual o mito da objetividade (de que trata Ana C. César quando analisa o cine nacional no gênero, V. Referências Bibliográficas) posiciona os lugares do sujeito projecionista e do objeto em registro, ainda que num pacto de troca, de “dar a fala” ao outro. Algo muito afim dos campos de estudos (a contar de uma bateria de perspectivas e terminologias fornecedoras de elementos prévios, padronizados, para o posicionamento fílmico dos documentaristas) centrados no olhar descolonizado, depois da colonização. Uma vez que a sistematização das linhas programáticas de crítica e criação dentro de um campo específico, cerradamente disciplinarizado, não deixa de incidir em “um certo pós-colonialismo teórico”, compreensível como “último estádio do etnocentrismo” (Ibid.: 5)

O repórter enquanto arqueólogo se atém a um local nada solene para seu ato documental, implicando-se com o que vê e o que não é visto. À maneira de Grifi e Sarchielli quando acompanham os passos da garota anônima que dá título ao já clássico Anna. Tudo se mostra interiorizado – intransferível em relação aos processos da protagonista focalizada pelo filme – e, na mesma velocidade de segundo/batimento fílmico, se abre para uma conversação coletiva. A reportagem desponta na rua e não dissolve o trato feito num domínio circunstante, impossível de ser aplastado, convertido à simples impressão prismática do olhar que registra. As margens do imediato-local se desbordam.

Assim como se dá no doc. Anna, o poema de Félix Sigá deixa à mostra os materiais que compõem o contexto de uma observação/transcrição do real. No caso, a escrita comparece em implicação, enquanto visão/documentação/reportagem. Não impõe o mecanismo consecutivo de uma voz automaticamente compreensível como operação de um olhar.

Entre ver e dizer, em termos inscritivos/escruturais, um espaçamento referente ao movimento do transcrever, mediar, registrar, se dá como componente do empenho documental –

 

Uma noiva com o primeiro bambaram

Cabelo tecido pequenino-pequenino

Brincos que dançam

Com os vira-virar cabeça dela

Lábios pretos e gengivas azuis

– Parecem picados

 

A minha boca calada

Sentado num mucho bonito

Parecia que nem ouvia

As passadas que contavam

Saudades de Contum de Bissau (Ibid: 101-102)

 

Como acontece em Cabascabo, filme impressivo do nigeriano Oumarou Ganda, no interior do fotograma se realiza o esmiuçamento de microcamadas de realidades, flagrantes interiores, gestos/cenas todos ligados por vivências e prismas de uma historicidade tomada entre o acosso cotidiano e os sinais dispersos de uma clamorosa, mais que urgente, ação político-social. Tudo é filmado em grande correspondência com as linhas que se montam em “Reportagem”, poema no qual os os diversos planos de fala estão em intercâmbio com uma concepção marcadamente visual (através de verdadeiras “tomadas” de cenas e criaturas/criaturas as mais diversas, verso a verso).

Não só se compacta um dado instante, mas os mínimos, motrizes pontos em que um quadro/enquadramento societal ganha relevo enquanto fomentação fabular do que se vê e não se diz, do que é dito e o campo visual faz destacar para além de uma fixação determinista. O doc. como emergência comunitária se ergue entre todos os pontos dados em off e as disposições declarativas dos que estão em cena – Desde o “Cabelo tecido pequenino-pequenino”, assimilado numa dimensão mais indagadora do que assertiva (”Parecem picados”) até o retorno do verbo parecer registrado a respeito do sentimento de “Saudades do Contum Bissau”: o que se dá nas “passadas que contavam” à medida em que “Parecia que nem ouvia”.

Poetas como Sigá e Tcheka se encontram em sintonia com o quadro da política real, nutrida por policiamento-crime-militarização-guerra, bem atuante em todas as conjunturas continentais do mundo. O que se agudiza na África ainda tomada como vasto terreno mantido em defasagem e contínua pilhagem por parte das políticas ocidentais. Algo que se alastra por todas as fronteiras, beiras-de-lugar, zonas periféricas instaladas nos meios centrais/capitais das nações do presente tempo-contexto.

 

Esta nova era é o da mobilidade global. Uma de suas principais características é que as operações militares e o exercício do direito de matar já não constituem o monopólio exclusivo dos Estados, e o “exército regular” já não é o único meio de executar essas funções. A afirmação de uma autoridade suprema em um determinado espaço político não se dá facilmente. Em vez disso, emerge um mosaico de direitos de governar incompletos e sobrepostos, disfarçados e emaranhados, nos quais sobejam diferentes instâncias jurídicas de facto geograficamente entrelaçadas, e nas quais abundam fidelidades plurais, suseranias assimétricas e enclaves. Nessa organização heterônima de direitos territoriais e reivindicações, faz pouco sentido insistir na distinção entre os campos políticos “interno” e “externo”, separados por limites claramente demarcados.

 (Mbembe, 2018: 52-53)

 

Nada parece acontecer fora daí – não parece haver História – nessas superposições entre vida doméstica e calçada – polícia e política – crime organizado e superdeterminação dos espaços cabíveis ao socius.

Ao desabrigo da rua, dia e noite se aglomeram sem deixar uma via materializada fora de um sentido de cerco formado por todas as instâncias entrelaçadas (como muito bem focaliza Mbembe). Sobreposições dadas em contiguidades e iminências que os poetas, em produção posterior às primeiras décadas de independência em Guiné-Bissau, acabam por colocar em cena sob a ética do registro –

Em atenção aos micromotivos vibrantes nos planos mais estanques de uma época de estagnação quanto às transformações sociais, na qual impera a necrose do tecido político, em contágio gritante, asfixiante ao fim do segundo decênio desse nosso novo milênio.   

Curioso se torna ver uma complexidade de recepção indesligável de uma captação no campo da poesia –

Precisamente, onde se performa um elo com as órbitas audiovisuais do contemporâneo e, mais especialmente, no que toca a arquivo/arte em um vivo enlace ou de um modo mais ampliado àquilo passível de se compreender como cultura documental em paralelo aos antiuniversais do planeta-em-rede.

[1] Obra relacionada com uma extensão de livros – 9 tomos publicados da série Exemplos – capazes de relatar a história africana, entre 1960 e o fim dos anos 1990, interna à recepção do universo poético moderno/contemporâneo e das emissões de palavra/verbo, tendo como referências nucleares os repertórios matriciais (da Bíblia à literatura clássica).


REFERÊNCIAS:

 CARVALHO, Ruy Duarte de. A Câmara, a Escrita e a Coisa Dita – Fitas, Textos e Palestras. Luanda: INALD, 1997.

 CASTRO, Eduardo Viveiros de. Métaphysiques cannibales: Lignes d'anthropologie post-structurale. Paris: PUF, 2009.

 CÉSAR, Ana Cristina. Literatura não é documento. Rio de Janeiro: FUNARTE, 1980.

 MAURY, Corinne. Habiter le monde: éloge du poétique dans le cinéma du réel. Paris: Yellow Now, 2011.

 MBEMBE, Achille. Necropolítica. Trad. Renata Santini. São Paulo: n-1, 2018.

 NOGUEIRA, Nok. As mãos do tempo. Vila Nova de Cerdeira: Nóssomos, 2012.

 SIGÁ, Félix. Arqueólogo de calçada. Bissau: Kebur, 1996.

 VÁRIO, João. Exemplo coevo. Praia/Cabo Verde: Spleen, 1998.

___________. Exemplos. Livros 1-9. Mindelo: Pequena Tiragem, 2000.

Publicado em 13/03/2024