OFICINA ORBITAL

Kafka de férias

(Damián Tabarovsky)

Foto de Marcelo Ariel da capa de Kafka de férias.

Gilles Deleuze escreveu em Diferença e repetição que um livro de Filosofia deve ser, por um lado, um tipo particular de romance policial – os conceitos intervêm, com uma zona de presença, em resoluções locais –, e, por outro, uma espécie de ficção científica – a coerência desses conceitos consiste justamente em compreender a especificidade dos problemas em suas mutações, apreendê-la em seus aspectos por vir. “Só escrevemos na extremidade de nosso próprio saber, nesta ponta extrema que separa nosso saber e nossa ignorância e que transforma um no outro.”1

Kafka de férias não é um livro de Filosofia. Ou talvez não o seja somente a título de catalogação. Pois a história nele contada encena um gesto mínimo da Filosofia, toca, de modo bem peculiar, sua própria matéria: demonstra o procedimento da escrita enquanto flagra o animal que escreve. Literatura desnudada. Tempo, espaço, pensamento, coexistência, conceitos e personagens se manifestam nessa brevíssima novela numa espécie de presença em desaparecimento, deixando seus mais discretos vestígios em uma trama marcada pela falha da cognição. Fábula posta a nu. E em queda. Desmemoriada simulação do abismo narrativo em sua ausência de fundo.

Publicado em 1998, o livro cria uma conexão enviesada com Memórias do subsolo: apesar de relatar sua queda, o narrador encontra-se destituído daquela faculdade analítica de desvelamento e ocultação ainda presente no “homem subterrâneo”, a consciência. Na contramão da prolixidade paranoica do romance pós-moderno, este pequeno volume tornou-se invisível às abastadas edições globais. Isso é curioso, pois, além das reciclagens culturais capitalizadas pelo mercado e a academia nas últimas décadas do segundo milênio, em poucas páginas a narrativa confere forma consistente e inovadora a um problema muito caro à filosofia ocidental: o liame entre humanidade e animalidade.

Em Kafka de férias a atitude literária de produzir uma linguagem fabuladora por despojo e subtração chega ao extremo. Talvez seja possível traçar uma genealogia proveniente de Dostoievski, Kafka e Beckett, na qual Damián Tabarovsky figuraria como quarta pessoa do singular.


-Tiago Cfer



Tiago Cfer é doutor em Estudos Comparados pela Universidade de São Paulo. Seu ensaio Desabrigo-mundo – narrativa século XXI será publicado em breve. Traduziu, junto com Ciro Lubliner, o livro Literatura de esquerda, de Damián Tabarovsky. E também, deste mesmo autor, a novela Kafka de férias (trecho publicado abaixo).



1 Deleuze, Gilles. Diferença e repetição. Tradução Luiz Orlandi e Roberto Machado. Rio de Janeiro: Graal, 2006, p. 18.




* * *



É curioso, mas agora me lembro: ela sempre tomava café, tomava litros diários de café, e muitas vezes me servia, me servia na cama e o aroma nunca me indispôs, ao contrário, toda cena se desenrolava dentro da mais absoluta normalidade... tudo nela era tão distinto!... E como pude ter chegado a esse estado? A essa confusão? Como pude chegar tão fundo só porque ela me abandonou? Éramos tão ideais... um para o outro... a harmonia... Me lembro dela sempre disposta, útil, pronta para o pedido, entregue para a oferta. Eu lhe dizia “traga-me isto”, e ela me trazia, “faça aquilo”, e ela fazia. Tudo nela era entusiasmo. A mais absoluta devoção. Eu lhe pedia um favor, e lá ia ela, eu a via caminhar e escutava seus passinhos “tiqui tiqui tiqui”, voltava e novamente eu escutava “tiqui tiqui tiqui”; lá está ela outra vez, e eu via seu rabinho se movendo, balançando de um lado para o outro, sempre em prontidão, esbelto; tiqui tiqui tiqui, seu rabinho; tiqui tiqui tiqui, balançava... nunca me disse não, nunca se opunha a nada, fazia tudo, ia, voltava... tiqui tiqui tiqui... seu rabinho... seus passinhos... Era tão boa comigo, tão fiel, tão treinada que, mais do que minha mulher, parecia um cachorrinho... mas... mas...


então... não, não é possível... Por Deus não!... Sim!... Agora vejo claramente: era um cachorrinho! Uma cachorrinha de verdade! Como não me dei conta antes! Como pude ser tão cego! Como não percebi isso antes! Como pude ser tão idiota, tão confiante!... Como me apaixonar por um animalzinho!... Isso é terrível! Minha cabeça está girando feito uma bolinha de pingue-pongue, como numa partida de tênis... ou melhor, feito um carrossel, os carrosséis dão voltas, as bolinhas vão e vêm... que estado de confusão... agora vejo tudo tão claro... tão obscuro... tudo tão difuso... tão diáfano... vejo tudo com meus dois olhos, meus dois olhos me vêm observando a situação com meus dois olhos... Tenho quatro olhos! Sou disforme! Preciso me tranquilizar, nada é tão terrível... Mentira, tudo é terrível!: meu amor me abandonou, meu amor era uma cachorrinha e... sou disforme! As três coisas são terríveis, sinistras. Qual das três é mais terrível? Pode uma coisa ser mais terrível que outra? Terrível não é o absoluto, o máximo, o incomensurável infinito? Se fosse assim, não haveria um terrível mais terrível que outro, e seria possível que meus três terríveis valessem o mesmo, ou, em outros termos, não estaria experimentando agora o jugo de sofrer com três problemas terríveis, mas um – já que terrível é sempre o Um –, somente um embora terrível. Isso implicaria que meus três problemas são apenas um... tenho dois problemas a menos! Mas quais? Primeiro, não sou disforme: tenho apenas dois olhos... Que tonto, devia ter notado isso antes!... Como não me dei conta de que estou usando somente um par de óculos, e que obviamente tem apenas duas lentes, uma para cada olho... se tivesse quatro olhos teria que portar óculos de quatro lentes, e isso teria me chamado atenção. Agora preciso descartar um dos outros dois problemas. Descarto que meu amor me abandonou ou que meu amor era uma cachorrinha? Que dúvida! Que escolha!... a escolha, qualquer escolha, é sempre terrível... sinistra... essa é chave de todos os meus problemas... Tudo é terrível, sinistro! Me caso, é terrível. Me separo, é sinistro. Gozo, é sinistro; sofro, é terrível. Não posso fazer algo, então quero. Não quero, então faço. Minha cabeça está saturada... mas ao menos, mas... que estou dizendo? Perdi o fio?... Não posso escolher entre dois absolutos... a dor é a pura empiria e o sinistro sua teoria... É como se estivesse se desenvolvendo em mim uma espécie de fenomenologia privada, uma fenomenologia minha, que se aplica somente a mim... como uma fenomenologia superando a fenomenologia tradicional que foi minha vida até agora: não dar conta de nada. E como dei conta agora? Como caí? Como passei de um estado a outro? Como acedi a esse estado ao qual no fim posso perguntar?... Minha mente está completamente perdida... são várias de uma só vez... mentes são muitas, natureza uma só. Tenho que voltar ao estado de natureza, ao que foi minha vida: poucas perguntas, muitas certezas... Como cheguei nesse estado? Me sinto como se fosse mais de uma, como se eu fosse duas, três, duzentos e dezesseis mentes... Me sinto acompanhado por infinitos eu mesmo... Cada um de nós ocupa sua própria posição no mundo e tem sua própria perspectiva... é fácil deixar-se deslizar dessa verdade óbvia até uma noção confusa de relativismo conceitual... o ponto de partida não é mais que o relativismo – familiar e inócuo – da posição que se ocupa no espaço e tempo... posto que cada um de nós ocupa com exclusividade um determinado volume de espaço-tempo, dois de nós não podemos estar no mesmo lugar e ao mesmo tempo exatamente... Chega de epistemologia!... Como posso pensar nisso numa situação como essa!... O que faz uma garota como você num lugar como este? De onde tirei esta frase, de qual filme?... Me lembro de ter dito a ela, eu cheirando a whiscola, ela a café. Tudo era tão romântico, tão autêntico... como pude ser tão cego e dizer essa frase a uma cachorrinha! Me lembro como a noite continuou, como terminou... não... Não!... Não!... Afaste-se de mim, recordação!... Que asco!... Puajjjj!... Huuugchhhh!... Ahhhhhhhjjj!... Fiz amor com um animal! Com uma cadela!... Como pude fazer isso! Durante semanas, meses, anos! Sou um doente! Um amoral!... Mas ela gostava... eu também... Como posso ter esses pensamentos! Tudo que fiz é horrível!... Não posso olhar-me nos olhos, olho-me e não me vejo, vejo tudo escuro, preto... não posso nem pensar no que fiz... Como pude me apaixonar tanto por uma cadela!... Como pudemos fazer amor tão bem, por tanto tempo!... estou acabado... perdi a condição humana... Tenho nojo de mim!... Sou um animal! Ela também é um animal! Somos dois animais! Por isso nos dávamos tão bem!... É tão óbvio como que a fisiologia subjacente a toda conduta sexual é universal para todos os mamíferos, inclusive a espécie humana... sobre questões sexuais, dá no mesmo experimentar com humanos ou com animais... Poderia ter sido tudo um experimento? Fomos cobaias de algum jogo?... E o amor?... E a paixão?... E os miminhos?... E o “te quero monstrinho”?... E o “eu também bichinho”?... Seria o amor algo experimental?

Capa da edição argentina de Kafka de vacaciones

TABAROVSKY, Damián. Kafka de férias. Tradução Tiago Cfer. São Paulo: Editora Córrego, 2019.