DO PODRE AO PAUVRE
— OU,
QUALQUER BOBAGEM
Um grito soa incompreensível em meio ao largo da hora de agora, qualquer bobagem: “Do podre ao pauvre!”. Um grito soa sem nenhuma repercussão ao longo do largo mais extenso albergue da hora de agora.
Tempo abafado. É em em meio ao largo da hora de agora cheio de mesas ocupadas por personagens advindos de oficinas existenciais espalhadas aos borbotões por aí nessa exata hora, agora, em que soa e é calado um grito:
“Do podre ao pauvre!”
A literatura corre por aí sem língua nem radiotransmissão – nas nuvens. Esperneia o comando de autômatos mortos postos em cena no quadro dessa hora de agora por deuses mamulengueiros, títeres da bolsa financeira. Eis o teatro de marionetes da literatura da hora de agora que é a mesma língua da bolsa onde está aplicado todo dinheiro do mundo neste próprio instante do presente vivo: Bolsão Total de Merdas.
Premiação neste largo de governantes e promoters mamulengueiros não passa de um bolsão de... Merdas: vão às merdas de vocês! Antes que eu me esqueça como se fala essa língua de merda da hora de agora.
“Então fala, Mangueira!”, ressoa o samba nas caixas do bar espalhadas pelo calçadão do largo sobrepondo-se à frase nascida sem corpo nem repercussão possíveis: “Do podre ao pauvre!”
“Esqueçam os mortos que eles não levantam mais”, logo depois de Língua transmite a canção modo stream randômico sem fim de agora, nesse exato instante em que uma escrita se arrisca a falar sobre uma provável literatura de agora. Ela não passaria de uma falastrona aos seus mortos fingindo criar uma nova linguagem para essa hora?
Tal literatura não estaria reiterando desde muito a mesma e nauseante fala financeira? Fala bolsa, fala jabuti, diga-nos ABL! Quem administra as finanças? Quais os comandos? Bolsões!
A hora de agora por acaso não seria desprovida de uma literatura? Mas tal cobra fugidia como essa não estaria desde sempre, e já, atravessando os buracos de roedores financistas ao longo da Terra bem antes dessas questões idiotas ganharem um lugar de fala?
Ranhuras. Uma escrita tenta existir aqui, nessa mesma hora. Tenta, mesmo nascendo toda riscada numa civilização apagada aos esfregões de palha de aço. Seus fósforos foram queimados antes do bolo. Parabéns. Um inesperado gesto entra em cena por alguém riscando carvão contra carvão: fiat lux!
A escrita está aí, ali, em qualquer atrito. Fricção, esfregação, conflito. Uma escrita provável para essa hora de agora: um risco no exato instante de um passo a passo de um corpo desastrado/errante em sua (única) tentação de existir.
A escrita: notas das experiências mais bestas em sua tentação de existir. Ao menos desde Lascaux, neste mundo ocidental cuja duração historiográfica é a de seu próprio incêndio e explosão, poente em chamas. Isto é: a escrita entreposta por meras vírgulas na vastidão das escrituras de incontáveis épocas e civilizações incineradas. Texturização de um tempo sem correspondência possível. Fumaça, a escrita, agora, bem nessa hora: anotação/testemunha do que se dá neste instante bem fora de qualquer recepção imaginável. Alô, alguém aí? Noite em volta?
TRANSFORMATION PUPPET / TLINGIT / XVIII-XIX
Uma palavra, antes de mais nada nessa noite universal: um corpo surge no horizonte. Seu negativo: a palavra calada, grafia sem som, som sem escuta: um morto ensaia aparecer no horizonte desta cena de agora. A palavra sem corpo (o fantasma) não cessa de circular por aí em torno da breve chama da vida. Ela não estaria nos calando até este silêncio mais brutal jamais imaginado?
Alô, quem fala? Língua? Linguagem? Palavra?
Uma frase: – Quem? O fim.
Que zombaria é essa repetindo o indesejado pesadelo oroboro? Círculo vicioso: canção sem letra, canto-refrão feito último cântico antes do próximo.
Um cancioneiro se apresenta sem nenhum puto no bolso, ninguém à vista. O cancioneiro sem público canta sua morte a crédito. Isso, aqui, ele canta a escrita ensaiada nessa mesma hora de agora em que propagam aos montes-entre-nuvens cartazes e informes a respeito de eventos festivos literários ocorrendo luxuriosamente nessa mesma hora de agora em que a escrita ensaiada aqui desvia no canto de um cancioneiro sem ouvinte em sua única tentação de existir na cidade minada de crateras de ouro roubado. Cidade velha, caminho apagado pelo longo extermínio do ouro. Depois petróleo. Combustão.
Digamos: um casal transborda. Diário de um ladrão (Genet) cai feito luva, o mais fiel livro de cabeceira para o duplo. Eles dormem contando um ao outro o romance de alguém muito próximo ao romance de suas vidas mal vistas e mal ditas que atravessam o tempo da eterna noite suja de uma cidade: São Paulo.
Pois então: se já estão queimados, por que não resolvem virar heróis?
Eis a hora em que se dá uma escrita de agora, no exato instante em que seus acontecimentos ardem:
O casal vai buscar vinho português barato na vendinha do chinês. Noite de primavera tropical. Quente, úmida. O estabelecimento está cheio de pessoas quase nuas: tapa-sexos de todos os gêneros e brilhantinas se agitam em uma espécie de noite de domingo de um carnaval extemporâneo, antigo, absolutamente anacrônico. Eles vestem roupas de frio, calças, casacos, coturnos em variações de preto. Colares, anéis. Fizeram a toiallete para a atuação de sombras entre cores de todos os carnavais passados a limpo: ela raspou seus vértices e extensões epidérmicos: canelas, coxas, mamilos, virilhas, buceta; ele tosou os pelos da cabeça, dos braços, peito e abdômen para realçar uma impressiva variação de prestímanas tatuagens.
Diante da estante de vinhos disposta na entrada do mercadinho logo após umas nove geladeiras verticais de cervejas e refrigerantes ao rodo:
“Boa noite, senhor Ting!”, soa a voz dele, rouca, cavernosa, embora até pareça, inusitadamente, entusiasmada: “Eloquente ou Taverna da Sé, senhor Ting?”
O chinês faz sinal negativo com a cabeça enquanto pronuncia “eu é que não sei, tem é que falar com ela”, aponta com a cabeça para a moça do caixa. Do celular suspenso na palma da mão esquerda do senhor Ting, tela aberta, ele observa o sistema de câmeras de vigilância do comércio.
“Oh, sim, muito obrigado senhor Ting!”, ri para o dono da venda.
Ele pega a garrafa de vinho português Eloquente e sai caminhando pelos corredores abarrotados de mercadorias enquanto ela vai buscar o Nissin Talharim instantâneo e a Pepsi dois litros para que eles possam compor o jantar de duas pessoas esgotadas. Sim, deixe que os portugueses cantem as nossas mínguas. Elas, porém, transbordaram Carne dos Deuses ao longo da tarde de um domingo primavera tropical surpreendido por um carnaval extemporâneo bem na hora de o pensamento ser roubado por essas duas pessoas esgotadas bem na mercearia do Sr. Ting.
Na fila ele ainda pergunta se ela gostaria de uma caixa de Bis – aponta para a promoção sobre o balcão que afunila até o caixa: “Eu não quero. Você quer?” “Não também, deixa pra lá.”
Na esteira de metal ele lembra do Halls quando pega um azul de menta e dá para ela passar no leitor de códigos de barras. Tenta abrir a sacolinha de plástico com sôfregas mãos há muito ressecadas do outro lado da esteira. Ela dá um gritinho, pronta para agir novamente e então agir, agir...:
“Ah, quero um Torcida de pimenta mexicana. Você quer?” “Não, muito obrigado senhorita M., mas vá sim buscar tranquilamente enquanto passamos e embalamos nossos produtos aqui, não é dona moça?”, ri uma franca alegria para a operadora de caixa do mercado.
Antes de se abraçarem, ele tira o casaco pesado no mesmo momento em que põem os pés sobre a calçada e olham, cúmplices silenciosos, a lua cheia sobre o edifício Varão bem do outro lado da rua. Segura o casaco estendido pelas costas por dois dedos em gancho sobre um dos ombros – desde a ponta do capuz. Eles se abraçam e sobem a rua em direção ao apartamento que preparam fria, porém festivamente para o abandono.
Enquanto passam pelo Oxxo ela gentilmente o lembra em gesto cordial e voluptuoso com o braço a mão e os dedos da cabeça aos pés revestidos por velhos, desgastados calçados:
“Ficamos de comprar cigarros. Vamos agora ou depois? Acho que temos o suficiente para depois, não é?”
“Sim, sra. M. Agora temos de acender a fogueira para darmos início à nossa festa na mais altíssima pobreza dessas duas pequeninas existências. Bora pra casa, logo mais saímos numa outra e feliz colheita. Quem sabe?”
Ela fecha a porta da sala e ele coloca sobre a mesinha de entrada, retirados de seu casaco à mão, o celular, o isqueiro, uma caixa de Bis, requeijão Catupiry, um pote de maionese Hellmann’s e um saco de Salamitos Sadia. Ela coloca o Eloquente, o espaguete instantâneo, Halls azul e Torcida sabor pimenta mexicana sobre a mesma mesinha antiga, estampada com ossos cranianos e flores ruge esfumados por muitas variações de diferentes dois.
Enquanto ele tira as botas e arranca a camiseta, ela pergunta se ele quer o espaguete agora.
“Eu não, pensei em fazer uma caipirinha com o limão que temos na fruteira e a meia lata de Pitú há tempo esquecida na geladeira. Dá-lhe gelo, metafísica do drink. Mas por que não beliscamos Torcida e Salamitos para acompanhar nossas bebidas? Quer, senhorita M.?” “Caipirinha não. Põe um bocado de Pitú num copo de Pepsi com gelo pra mim, faz favor?” “É pra já sra... Poderia dar o play no celular ali dentro do Orin boca aberta sobre a prateleira de livros mais alta naquela canção para a exata hora de agora, companheira M.? Aquela do Ave Sangria daquele disco da capa com um Papagaio de Pirata drag queen sozinho no deserto. Bora imprimir algum tom musical na composição dessa nossa noite de primavera tropical carnaval extemporâneo!?”
“Pra já, companheiro de barbas negras!”, dá as costas para o parceiro dançando esvoaçante em torno de si mesma uma música a caminho.
Não se iluda, minha calma não tem nada a ver... Sou bandido, sou sem alma e minto. Minha casa é o reino do mal, o meu pai é um animal. Minha mãe há muito que enlouqueceu. Só resta eu com a minha faca e a minha nau...
“Sra., aceite uma porção de Torcida sabor pimenta mexicana, Salamitos Sadia e um charuto de presunto/queijo restante da geladeira. Posso besuntá-lo de maionese que acabamos de adquirir?”, riem intensamente.
“Tome um gole dessa caipirinha, Sra. Perdoe-me, mas a senhorita aceita um cigarro?”, senta na poltrona velha e ela se ajeita no colchão de solteiro sobre o chão. M. coloca o cinzeiro transparente ao lado da perna esquerda. Acende um cigarro. “Um brinde, Sra. M. À vida bandida, ao não-saber do grande e ilustríssimo, nosso magnânimo magnífico magnificente cliente: Sr. Ting! Do podre ao pauvre, senhorita!”
Também ele acende um cigarro e o casal então sintoniza-se numa gargalhada nitidamente involuntária. É uma gargalhada bem safada, como se ambos compartilhassem um segredo muito valioso, podre de tão almejado pelo pobre e multitudinoso povo.
Ela abre Les Fleurs du Mal para oferecer ao companheiro uma leitura, uma bobagem qualquer. Um pouco antes vira os olhos para ele que já a observava com um dos olhos fechados atrás de uma das mãos na qual um cigarro entre longos e desinteressados dedos esfumaça-lhe o rosto:
“Teríamos por aqui um tapa-olho, senhorita M.? Pois já ando há muito tempo com os olhos cegos de tanto ver. Algum deles precisa de agora em diante nos dar a próxima, sempre a próxima e melhor chance de pegarmos o que é nosso enquanto estivermos aqui.”
Fora da janela da sala de um pequeno apartamento no centro da cidade à noite ouve-se um corte de canção “Sertão vai virar mar, dá no coração o medo que algum dia o mar vire Sertão” pela moda sertaneja, como se uma noite brilhasse na paisagem agreste as maiores festas de piratas e escravos de todas as línguas e continentes, foragidos e desaparecidos em galerias de grutas ou cavernas abertas entre as rochas de um arquipélago ressurgente em todas as paisagens. Um arquipélago irrompe imediatamente na vista árida de uma rodovia sertaneja. Veredas: vazamentos cerebrais ligados a uma crescente fiação com as estrelas.
Ai ai ai cabelo loiro, por você sofro demais. Ninguém mais não me consola, só você me satisfaz. Se você não me quiser aqui eu não vivo mais. Vou partir para bem longe, nosso amor é desiguais... Ai ai ai cabelo loiro...
Segue a noite de um contínuo carnaval neste trópico fissurado. A fumaça de um cigarro abandonado no cinzeiro evola para além da janela aberta da sala em penumbra. Alguém dá a descarga e sai do banheiro sempre pronto para continuar bebendo da hora de agora madrugada a dentro até o sono fático do ébrio.
Minha mulher tá brigando comigo, quer que eu compre um fogão a gás. Um dia desse até ameaçou que não deixaria que eu comesse mais. Estou culpando a minha vizinha, diz que não usa mais fogão a lenha. O que ela tem lá na casa dela
fica querendo que a minha mulher tenha...
Modo randômico – a seguir, resta um radio-celular em cena:
Perhaps I’ll die on that train. I’m going to Nowhere, the place that I’ve started from...
Tiago Cfer é escritor, ensaísta e romancista. Autor de Mutações da escrita na época do Vampirismo Pornográfico (ensaio), Gradiente Spectrum (romance) e Escaravelho (romance), escreve no momento Narciso Necrosado (romance) enquanto prepara para publicação em livro seus ensaios Samuel Rawet: Pensamento-Prosa e Desabrigo-Mundo: Narrativa Século XX.