MUTAÇÕES DA ESCRITA NA ÉPOCA DO VAMPIRISMO PORNOGRÁFICO (PARTE 2):

GUERRAS SEM SANGUE

(Tiago Cfer)


Tiago Cfer é escritor, pesquisador e tradutor. Seu ensaio

Desabrigo-mundo: narrativa século XXI será publicado neste ano.


VAMPIRISMO PORNOGRÁFICO



Os livros com os códigos de lei do juiz de instrução sobre a mesa de uma sala de audiência vazia estão repletos de imagens pornográficas, é o que verifica Joseph K. em O processo. Kafka entrevê o paradigma da pornografia tornada metonímia dos litígios do século em que escreveu.

Mais recentemente Paul B. Preciado demonstrou que no contexto da Guerra Fria a forma-de-vida Playboy fez emergir uma sexualidade multimídia[1] a nível global. As guerras e guerrilhas topológicas da segunda metade do século XX se dão sobre o pano de fundo da indústria pornô e do tráfico de armas e drogas em âmbitos transcontinentais. Viagens, exibições, comércios, consumição desenfreada de objetos e não-objetos, entorpecentes de todas as espécies e lugares do planeta. Trocas de papeis, complôs generalizados, disputas/slans culturais, prestidigitações, publicidades, são alguns aspectos do socius que emerge simultâneo à propagação da arquitetura playboy. Trata-se da edição comportamental americana concomitante às crises e guerras televisionadas do petróleo. Guerras sem sangue, destruição/reciclagem de corpos e culturas apresentados e transmitidos como imagens – povos, hibridações coletivas ganham matizes espectrais em telas e valas – para o entretenimento audiovisual nas grandes ou pequenas mansões do império televisivo.

The Addiction/O vício (1995), de Abel Ferrara


O que se chama, com todos os prefixos, neoliberalismo, capitalismo, transfunde-se em políticas vampirescas distribuídas numa incontida economia farmacopornográfica mundial. Uma produção fílmica como a de Jean Rollin testemunha esse sintoma que permeia o cinema pós-guerra: o das produções estéticas que extraem seu sustento do sangue do mundo – tráficos de drogas, corpos, sexo, objetos, marcas e perfis. O diretor de Lábios de sangue (1975) estreia um gênero nos anos 1960 lançador de luz sobre esse estranho-familiar modo de vida que se configura na virada do século XX para o XXI, o vampirismo pornográfico.


ERÓTICA eXistenZ


O que a ontologia da história aprende com o niilismo do século passado é o aspecto mutante, irrestituível e infindável da existência. A sequência infinita de cortes e rupturas entre apresentações e representações de mundo ao longo do tempo só vem afirmar a natureza transitória e irreparável da linguagem e da palavra, sua errância generalizada. Agamben considera que todo “grande texto filosófico é a gag que exibe a própria linguagem, o próprio ser-na-linguagem como um gigantesco vazio da memória, como um incurável defeito de palavra”[2].

Esquecimento e falha perseguem o sujeito que pensa, fala, documenta. Ele faz de tudo para evitar essas propriedades da linguagem, exilando e dissimulando-se na verdade da palavra dita, escrita, distribuída em livros e mídias. Quer estar aí/lá apresentando-se em sua verossimilhança sem corpo. Seus papeis o abstêm da presença para que ele possa fabricar, à distância, jogos de simultaneidades, encontros, eventos cada vez mais editados e alinhados a uma ampla rede de controle sobre a vida.

No filme eXistenZ (1999), de David Cronenberg, o jogo continua somente quando as personagens deixam de medir suas palavras. É a palavra desmedida que introduz a ação, dá sequência para um acontecimento. Cada partida ganha consistência em planos desmembrados da temporalidade cronológica sem, por isso, dissociar-se da vida. Abre planos – superfícies para deslocamentos aleatórios, singularidades e objetos aberrantes, biografias escritas em quarta pessoa do singular.



eXistenZ (1999), de David Cronenberg


Uma copulação irrefreável de vidas paralelas em jogo vem irrigar com suas fiações os canais ressequidos do desejo por meio de “bioportas” instaladas na base da espinha dorsal humana. Derrubadas as transcendências das designações, as profundidades e alturas patológicas dos comandos morais, o sujeito em jogo, desajustado, revela-se na superfície dos gestos que encenam, em sua hesitação desmedida, uma atuação desdobrada em dimensões que extrapolam os eventos e as ordens dos dias. O jogo como efetivação da ficção desobriga a linguagem humana de sua tarefa mais imediata de classificar e inventariar a morte, ou o que morre. Solta o ato de criação na liberação de formas de existência inéditas que implicam a individuação do indivíduo criador, garantindo assim sua vitalidade, modos de duplicação “no calor” dos acontecimentos.

Talvez seja com a filosofia existencial de Kierkegaard que o discurso filosófico tenha restituído seu direito de tomar os “princípios como gritos, em torno dos quais os conceitos desenvolvem verdadeiros cantos” (Mil platôs). Se para Hegel a filosofia sempre chega tarde demais, com Kierkegaard ela inicia seu despertar para a noite. A coruja de Minerva levanta voo ao cair do crepúsculo. Enquanto o pensador humanista estanca melancólico em sua pátria, numa consciência crepuscular refém de suas próprias especulações, o pensamento existencial alça voo para uma filosofia noturna e visionária. Diferentes animais biográficos compõem a cena primordial da filosofia moderna.

Mas o que é isso, a filosofia?

“No tocante aos conceitos existenciais, o desejo de evitar definições é uma prova de tato”, anota Kierkegaard em seus Discursos edificantes. O dado originário da filosofia deixa de associar-se à admiração das formas e descrições intelectuais para ligar-se às informidades da existência. Enquanto a filosofia especulativa fez da necessidade sua norma de conduta, produzindo ideias e escolas baseadas em obrigações, a filosofia existencial kierkegaardiana não toma a virtude ética como antídoto para o pecado ou a insuficiência humana, mas a liberdade – da fé, que para o filósofo é a luta pelas possibilidades. Nos tremores do desespero e do terror, o pensamento se transforma e adquire novas formas e forças.

É notável que imperativos éticos aparecem em momentos em que o pensamento especulativo necessita declarar à humanidade o que ela deve fazer, sobretudo quando as ordens colapsam, tal como nos mostra a história da razão. A filosofia da existência de Kierkegaard se desprende desse pathos lançando-se ao incognoscível. “Sacrifica Hegel, suspende a ética, renuncia à razão e a todas as grandes conquistas que, graças à razão, a Humanidade tem podido realizar ao longo de sua história milenar. Frente a tudo o que até então haviam ensinado seus mestres, responde, como em uma espécie de sonho, não por meio de palavras, mas por meio de sons quase incompreensíveis para nossa inteligência. Para ser mais exato: não responde, uiva”[3].

O ataque às leis eternas da natureza por meio de alaridos e maldições – vozes clamando no deserto – confere forma a uma filosofia completamente despojada das regras e competências da ética racional, estadista, ativando no discurso filosófico tonalidades eróticas capazes de convertê-lo em destino (inventado) contra o destino (dado).

O “ódio indestrutível” de Kierkegaard – como observa Léon Chestov, indestrutível justamente por não causar destruições, mas ativar as forças da criação – contra “o ético”, que é seu modo também de glorificar uma nova ética, não pautada na promessa e na esperança, mas no desespero e no espanto (novamente a filosofia tem restituído o seu direito de tomar os “princípios como gritos...”), faz de sua filosofia e seus livros uma espécie de mostruário das atrocidades justificadas pela razão.

Da crueldade do absurdo a loucura vem mostrar – e não dizer – aos vícios racionais os mecanismos de seu desespero. Como o vampiro recluso, abstêmio de sangue há quarenta anos, Peina (Christopher Walken), do filme O vício/The Addiction, mostra à protagonista Kathleen Conklin (Lili Taylor) depois de capturá-la num contragolpe que a leva aos limites do delírio: “O vício tem uma natureza dupla: satisfaz o apetite que gera o mal, mas também vaporiza nossa percepção para que esqueçamos as doenças que temos. Bebemos para esquecer do fato de que somos alcoólicos. A existência é a busca do alívio do nosso vício. E o nosso vício é o único alívio que encontramos”.

Diante de monstros vampirescos, tornar-se o vampiro de si. O doppelgänger, como a figura do sósia, faz do vampirismo a arte de ver a si próprio[4]. Na luta empreendida por Kierkegaard pela liberdade, essa arte adquire condições de “movimentos estranhos, com frequência incoerentes, às vezes quase convulsivos” (Léon Chestov).

A ira, a coragem de romper radicalmente com o vigente para se elaborar um novo estado de vida, é o lugar na filosofa onde Eros e política se tocam. O momento em que a escrita devolve àquele que escreve, duplicado, tudo o que ele então já tinha. É quando ocorre a transfiguração filosófica: “A fortuna de minha existência, sua singularidade talvez, está em sua fatalidade”, escreve Nietzsche em Ecce homo. No limite, a vida escrita encontra a repetição. Jó repete-se em Kierkegaard que repete-se em Nietzsche que repete... O desespero e a paciência incerta do profeta, manifestos contra a neurose das explicações necessárias que ratificam a filosofia especulativa, incidem como disparadores de erotismo na palavra. Se bem sustentados esses stimmungen, eles coroam a vida, fazendo convergir existência, arte e política num jogo ilimitado de criação de signos.

Como escreve Friedrich Kittler a respeito de Nietzsche: “Não existe negação ou oposição ao prazer trágico. Ele se encontra na própria criação de signos”[5]. No gesto criador, a palavra irradia dos itinerários da vida – nascer/morrer – com sua positividade trágica: “quando a verdade sair em luta contra a mentira de milênios, teremos comoções, um espasmo de terremotos, um deslocamento de montes e vales como jamais foi sonhado. A noção de política estará então completamente dissolvida em uma guerra dos espíritos, todas as formações de poder da velha sociedade terão explodido pelos ares – todas se baseiam inteiramente na mentira: haverá guerras como ainda não houve sobre a Terra. Somente a partir de mim haverá grande política na Terra”[6].

(continua)



[1] PRECIADO, Paul B. Pornotopia – Playboy e a invenção da sexualidade multimídia. Tradução de Maria Paula Gurgel Ribeiro. São Paulo: N-1 Edições, 2020.

[2] AGAMBEN, Giorgio. Meios sem fim: notas sobre a política. Tradução Davi Pessoa Cerneiro. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2015, p. 61.

[3] CHESTOV, Léon. Kierkegaard y la filosofia existencial. Traducción de José Ferrater Mora. Buenos Aires: Editorial Sudamericana, 1947, p. 64.

[4] Carvalho, Bruno Berlendis de (org.). Antologia do vampiro literário. São Paulo: Berlendis & Vertecchia, 2010, p. 506.

[5] Kiettler, Friedrich. A verdade do mundo técnico: ensaios sobre a genealogia da atualidade. Organização Hans Ulrich Gumbrecht; tradução Markus Hediger. Rio de Janeiro: Contraponto, 2017, p. 54.

[6] Nietzsche, Friedrich. Ecce homo: como alguém se torna o que é. Trad., notas e posfácio Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 110.