Um dos poetas brasileiros mais inventivos e maduros no modo de dispor diferenciadas dicções em seus projetos escriturais, com um senso percuciente e bem trabalhado de composição, Amâncio reuniu em Ata (2007) sua produção. Desde então, vem surpreendendo de livro a livro, passando pela elaborada revisita ao universo cultural, verbal e mítico das fontes judaicas, permanentes numa série infindável de linguagens e saberes humanos (como se lê em Matula, 2016), até alcançar um perfil luminescente, ao mesmo tempo severo, no talhe de versos breves, plenos de incandescência, de fatura tão impactante quanto penetrante em sua obra mais recente.
De Câmara Escuro (2022), apresentamos alguns de seus poemas, com a alegria de ver em parte revelada a esmerada arte de um criador merecedor de leituras e revisitas constantes.
MSV
Deserto desinências,
nenhum inseto, apenas
o que nunca se vê.
Direita nem esquerda,
arriba nem abaixo
com o apagou-se o vento.
um corvo morre a encosta
inverso cornucópia
soma-se em não em não.
de que
água vieram os cães
barrela
contra algumas nuvens
estrelas
derretem seus olhos
do olho poliedro
forma-se
o sol todo
breve que desforma
a visão da mosca
foco se verá
num viés crisântemo
a meio caminho do meio dia
entre colunas vermelhas
e cordões dourados
a flor brota
súbito
do tilintar da montanha
- ninguém - mas por quê?
a neblina apaga a distância
abre um mundo
entre todas as coisas
olhar a neblina
única presença
tão invisível
o que não varre a chuva?
a nuvem a montanha
o rio o vento o mar
o que não lavra a chuva?
a nuvem a neblina
em sua escrita reescrita
ousadíssima centopeia
corvo na pele
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ver o céu. entretanto se inédito –
um clichê. renovado por si
nessa carne bem outra em comum
na corrente nas farpas moicanas
sempre sobre não dentro da pele
superfície no fundo que a cor
se revela mergulho sem volta
mais as nuances do negro degraus
mais um gesto a tornar o impossível
algo ao teu e também seu algum -
o dispor de um dragão uma flor
feita de ossos e plena de sons.
*
a incisão alicerça o qual mapa
vário rumo ao mais fora possível
extrair do veneno vital
o contido na seiva que urgente
a passagem nenhuma travessa
da sarjeta até a lua e o contrário
nesse fluxo total o sanguíneo
correm seta o viés todo o enxame
olhos vidros malfeitos pedaços
cada gota sorri celacanto
*
encontrar numa carne se exposta
evitando o gastar das anêmonas
visto dentro de quais discrepâncias
quem lo sabe já brota o relance
bem inglês de qualquer dinamarca
visto o corvo se esbate na pele
*
os insetos em nó numa agulha
por ser única escrevem completo
esse mesmo glossário palavras
pespontadas se fixam matéria
na pletora das déboras feras
de uma vez louquecidas penélopes
a mesmice somada a outro igual
a escrever dicionário sentidos
em que os termos se livram de si
e se juntam em frases a cor.
*
de onde os muitos embaçam o voo
confundindo essa luz a eles mesmos.
vão balenos. tão plenos. Somemos
ou quiçá de escrever não se trata
pois leitura treinada refém
sendo o método sempre reparte
num fisgar sempre após e vem rente
cada ponto será novo menos
expalavras não prontas fazendo
a si mesmas da coisa o requinte
o dragão e outros monstros pletora
feito carne eles sangram e ficam
para o mais até a luz se apagá-los
do estertor e comum fica o quis
*
nunca pode picar esse insecto
na segunda o que foi hoje sexta
mas então este ponto terá
um sentido diverso no agora
sendo o espanto se crava com raio
recomeço do vago abre o livro
a partir de qualquer estocada
ao bater a mecânica fúria
a investir o seu sol na romã
*
talho torna-se aberto o motivo
pelo qual foi banida tal prática
na primeira escritura velada
no correr da fatura agonia
imitar tão completo escrever
deixa a cópia de lado equipara
a costura o bordado contudo
a propor qualquer nova feitura
pergaminho tão carne que sangra
sem espera só ponto final
*
sim então vem ao caso trocar
nova pele matéria vencida.
cada ponto floresce no rito
e contrato lavrado mil volts
volta igual as histórias não são
mal repicam contrários enfim
vezes ponto retine a si tanto
descantar responder cantochão
do seu doido seguir num deserto
o vermelho mal brota da areia
nele está certa forma o vermelho
*
começar pelo plano vazio
estrutura crescida osso a osso
com os dentes mecânicos quais
uma fome roer a si próprios
dos marfins restará coisa alguma
a não ser a retorta ossatura
para os brindes antigos reserva
os vampiros o pórtico o fogo
de uma sarça comer as areias
*
o mover crepitante dos ratos.
regurgitam abrôlhos em festa
esses cães o perfeito cianeto
sob a chuva por falsos contrastes
a não ser vagabundos luar
palimpsestos. estrelas. Lagunas
*
a costura. fagulha. não nunca
o prender mas corrente uma gralha
permanente por veste um adorno
a palavra tornada matéria
pela mão em seu transe desponta
a minúcia revela o que nunca
ao teu olho se expor deveria
porta aberta não fecha jamais