MAREMOTO DISCO CLUB - Cristina Judar

EXTRATO DE UM ROMANCE A CAMINHO

Foram 144 batidas em câmera lenta até que se formasse a massa compacta com o peso de uma nuvem de grandes proporções e o impacto de mil rosas brancas, feito uma condensação de ectoplasma sem qualquer conexão com alma de outro mundo – já vivíamos assombrados o suficiente. Um montículo de Vênus, um precipício para o extremo foi o que encontrei entre os lençóis de sua cova rósea, sarcófago raso destituído de decoração ostensiva, o quarto situado no 23º andar de um edifício do centro da cidade de São Paulo.

Dali, ouviam-se as vozes do alto – um coro de sujeitos bacanas com selo de certificação, vestidos com ternos, suspensos por fios invisíveis, portando microfones de cores piscantes e bateria recarregável. Flutuavam ao redor de uma torre de rapina, recheada com imagens de cruzes que picavam a pele inflamada do céu.

Dali, ouviam-se as vozes do mais profundo – um coro de corpos de ave e cabeças de leão, a entoar cânticos em línguas desconhecidas. Flamejantes em nossas origens, éramos parceirus na queda e decifrávamo-nus, tolerantes uns com os outros, afastando as lagartas do asfalto que procuravam nos engolir, a começar pelos pés. Antes disso acontecer, as esmagávamos, sem dó, deixando nas calçadas rastros verde-neon de seus corpos liquefeitos.

Eu precisava juntar meus pedaços perdidos pelo cômodo para voltar a me olhar no espelho, a dizer boa tarde, a engolir, a tremer. Vesti as calças, as botas e a jaqueta de couro falso que depois de um ano de uso começou a esfarelar, o pó cinza da superfície sujava minhas digitais e toda a glória de um passado que eu insistia em manter vivo. Eu precisava de um gin, de um carro que me levasse à zona da erupção do desejo pra adquirir mais combustível e permanecer desperte por pelo menos outras 24 ou 48 horas.

Aos farelos, saí, as partes que me compunham estavam como que 70% encaixadas, se tanto, logo depois de assistir Lúnen espreguiçar, coçar sua tatuagem mais recente e jogar o lençol pro alto num gesto tão rápido que, de imediato, pensei ser resultante de uma possessão ou algo do tipo.

Há quanto tempo eu não te via, DellaVi, disse o porteiro com o olhar estendido, assim que saltei do elevador para o hall de mármore e espelhos com manchas de oxidação que, de tão próximas a feições fantasmagóricas hiper-realistas, mais pareciam os rostos de pessoas aprisionadas no lado inverso do mundo.

*

Assim que DellaVi saiu do apartamento, fui para a janela que dava para a praça e a noite, ela se emoldurava como uma pintura móvel, com vontade própria, suas luzes e linhas em suave colisão favoreciam uma espécie de visualização tridimensional que me levava a lugares impensados ou alterava as velocidades da memória.

O que também me transportava a um futuro despedaçado, a um passado intacto ou às zonas intermediárias da inexperiência humana, zonas ainda sem nome pelo fato de não serem consideradas reais ou, quando muito, um desses cenários absurdos do reino dos sonhos.

À minha direita, o prédio circular tinha apenas uma janela acesa. Os faróis traseiros dos carros aglutinados no início da avenida Consolação pareciam as brasas de uma fogueira que não se sabe se vai vingar ou apagar de vez. Aqueles pontos vermelhos, ao se movimentarem assim que o farol abriu, me fizeram lembrar de alguém que também costumava vagar por aquele território e espiar por janelas.

Há um ano, mais ou menos, ele resolveu voltar pelo caminho de onde veio, desistir quando todo mundo seguia, retornou à origem, se resumiu a um único corpo dando braçadas na direção oposta, sem carcaça, guitarra ou disco com capa de banana pra chamar de deus ou garantir algum salvamento. Com uma coragem de Hércules, com um medo dos diabos, munido apenas da loucura, do silêncio e da caligrafia dos mais sensatos, além de uma muralha compacta, impenetrável, só sua, o que muito vulgarmente era interpretado como timidez.

Os seus olhos de entender o mundo eram tão, mas tão despertos, que viver passou do limite do suportável. Era o mesmo que carregar o planeta terra no estômago. Ao meu modo, imagino o que isso significa. Pois não havia escrito, ruído, melodia ou vácuo capaz de conter tanto. Nem mesmo arte sublime, ação derradeira, projeto belamente forjado ou manifesto. Então o melhor foi vazar de si mesmo. Como o compreendo. Como o queria aqui. Como entendo sua partida. Como me recuso a aceitar a sua decisão. Restei em partes, tentando assimilar o astro enorme que explodiu à minha frente.

Naquela manhã, o telefone tocou e eu não ouvi, o telefone tocou e eu não atendi, o telefone tocou e eu não entendi, as sílabas não traçavam palavra, eu as sentia entrarem em colisão sem compor sentido, eu não compreendi o que se chorava, ao telefone eu indaguei, ao telefone eu já sabia antes mesmo de ouvir: um salto, a ausência do chão, um escuro sem luz ao fim, uma existência que eu não mais teria por perto, uma ausência que estaria entre as mais presentes de toda a minha vida.

A cidade, nem tão generosa, toda trincada, serviu como espaço dos prazeres zelosos para nossas incursões pelas zonas da descoberta sensorial, seu apartamento um set propenso às nossas experiências com extratos líquidos, me lembro da cenográfica sanfona e da lâmpada verde na ante-sala, a capa do disco do Bob Dylan, ele nos observava circular pelo ambiente com um sorriso de quase Mona Lisa, não sei se a nos analisar criticamente ou se a nos amparar, solidário, paternal; o biombo japonês interdimensional, estrategicamente posicionado, que atravessávamos sem ter a menor consciência das transformações atômicas pelas quais passávamos e que, hoje, são tão evidentes; a infinidade de ladrilhos brancos do banheiro com capacidade pra abrigar uma festa com ao menos umas 40 pessoas e sem que houvesse qualquer patrulha.

Corríamos a esse nosso bunker, situado três andares acima do asfalto da Rego Freitas, sempre que o mundo nos estrangulava a ponto de perdermos o ar que nos mantinha sobre os dois pés, embora jamais tivéssemos sido enraizadus. Nada tínhamos de alicerce ou de segurança material, somente um quê de senhoras góticas-homo-lesbi-gay-transalternatives-de-garagem-do-predinho-velho-e-sem-porteiro-do-centro, algo que usávamos como maquiagem, arma, capa cerimonial, protetor solar/lunar e verniz antimofo. Por incrível que pareça, funcionava.

Cristina Judar é natural de São Paulo, capital. Escreveu as HQs Lina (2009) e Vermelho, Vivo (2011), e o livro de contos Roteiros para uma Vida Curta (Menção Honrosa no Prêmio SESC de Literatura 2014). Seu romance Oito do Sete foi finalista do Prêmio Jabuti 2018 e ganhador do Prêmio São Paulo de Literatura 2018. Lançado em 2021, seu segundo romance, Elas marchavam sob o sol, teve os direitos de publicação e tradução vendidos para países como Moçambique, Egito e Itália. Atualmente, Cristina faz Mestrado em Letras na USP, com foco em representações transgênero na literatura contemporânea.


Publicado em 10/01/2024