Um kafkafarabeuf
aproximações à poética de Mario Bellatin
(Apresentação e tradução: Lucas Miyazaki)
Mario Bellatin nasceu na Cidade do México e cresceu no Peru, onde deu início à sua insólita trajetória na literatura com o romance Mujeres de sal (1986), editado e vendido de forma independente. Quase uma década depois de sua primeira obra, retornou à Cidade do México, onde ainda vive e a partir de onde tem se dado a sua prolifera atividade como artista prosador, sendo reconhecido como um dos nomes mais inventivos da literatura hispano-americana de hoje, ao lado de autores como César Aira, Margo Glantz e Roberto Bolaño. Dentre as mais de trinta narrativas publicadas, algumas como Salão de beleza, Lecciones para una liebre muerta, El gran vidrio, Cães heróis e Flores já são consideradas clássicos.
Ainda que o autor misture referências reais a fabulações fictícias, está longe de estabelecer, em seus romances e novelas, uma representação realista ou uma simples ambiguidade entre ficção e realidade — fatores que erroneamente o aproximariam da literatura fantástica ou da chamada autoficção. Percebe-se, ao contrário, uma verticalidade na vida por meio da escrita. Vemos a própria existência sendo gestada a cada linha narrada: um movimento contínuo que está entre o atestado e a livre fabulação.
Não são raras, portanto, as aproximações da poética bellatiniana com uma práxis de cunho performático, uma vez que seus livros podem ser considerados como processo de uma performance contínua. Sentimos, em cada uma de suas obras, a fisicalidade do texto como atestado de uma vida que se faz presente: narradores que contam a história de seus manuscritos, as histórias das máquinas que utilizavam e suas técnicas e procedimentos que tornaram possíveis o romance. Outros elementos catalisadores, sempre em órbita em suas escrituras, são: a ciência e a medicina; personagens japoneses; personagens muçulmanos; cachorros; corpos multilados; a própria arte e literatura (é o caso da novela Um kafkafarabeuf, ainda em processo de tradução, cujas primeiras páginas o leitor terá acesso aqui.)
Ainda referente ao empenho performativo da literatura de Bellatin, seria propício ressaltar que a sua atuação em vida pública está constantemente tensionada com a escrita ficcional, uma vez que o autor instaura uma presença peculiar no interior das discussões literárias, entre mercado editorial, academia e crítica. Performando e trazendo proposições à possibilidade mesma com que a literatura pode reivindicar-se como arte, os textos de Bellatin vazam, circulam às margens ou em tensão com as dinâmicas empresariais de grandes editoras ou visões de uma literatura comunicativa: vazam por meio do livro para novas possibilidades do romance e da arte da escrita.
— Apresentação e tradução por Lucas Miyazaki.
Um kafkafarabeuf
(A narrativa será publicada no Brasil em 2022,
pela coleção Vírus, editora Córrego.)
O kafkafarabeuf se rebelou contra mim. Haverá agora alguém disposto a cumprir essa função? Qual é o ponto onde reside a dor? São perguntas que sempre me faço. Sobretudo agora que me encontro em Kassel, depois de ter sido convidado por uma monja com um passado curioso. É certo, o kafkafarabeuf fugiu. Aproveitou que eu estava longe. De viagem. Nos últimos tempos talvez não fui radical o suficiente no trato que estava acostumado a dar-lhe. Pode ser que eu tenha falhado em alguns pontos. Dentre outros, me lembro que ao voltar de uma travessia dei-lhe um lenço recolhido do chão. Um objeto qualquer achado de maneira casual. Sujo, impregnado de bactérias. Alguém que estava próximo de mim logo notou. Afirmou que tal oferenda podia significar um retrocesso na nossa relação. Eu não devia dar-lhe coisa alguma, por mais ínfima que fosse. Aquele lenço podia ser motivo de confusão sobre a natureza do vínculo que nos unia. Então quer dizer que fui eu, com essa dádiva torpe, quem propiciou o estado atual em que as coisas se encontram? Meu kafkafarabeuf manteve a sua condição durante alguns anos. O sistema que estabelecemos após nos conhecermos passou por diferentes etapas. A primeira foi a aceitação pelo meu gosto desmedido de estar sempre rodeado pela maior quantidade possível de cachorros. Eu o via lá, todas as manhãs, do lugar onde ele dormia. Na verdade escutava, como um vago rumor, como levava para passear os cinquenta cães, cifra máxima resultante de minha pulsão naquela época. Essa ação, de sair à rua com os animais, ele costuma realizá-la várias vezes ao dia. Fazia-os correr em um parque próximo. Especialmente a uma cachorra magra e amarela. Ele também se preocupava com as datas de vacinação, dos banhos e escovações de pelo que os animais requeriam. Da compra de alimento e dos vermífugos que tinha de administrar a cada certo tempo. Além de cuidar deles, outra de suas missões era desenvolver um sentimento profundo por cada um. Eu observava como ele ia sendo tomado por um carinho com eles. Sobretudo com a cachorra amarela. Também apreciava como esse amor ia tornando-se recíproco. Entretanto, só permitia que tal intercâmbio fosse levado a cabo até certo ponto. Nenhum dos dois, nem os cachorros nem o kafkafarabeuf, podiam relacionar-se entre si em um grau maior ao do amor que eram obrigados a professar por mim. Parecia tratar-se de um kafkafarabeuf com experiência. De nascimento, podia-se dizer. É por isso que eu era capaz de entender muitos de seus comportamentos. Mas o que acontecia na psique dos cães era um verdadeiro mistério. Não sei como eles sabiam, sem titubeios e apesar das mostras de carinho exacerbado que o kafkafarabeuf devia mostrar-lhes, quem era o verdadeiro amo. O kafkafarabeuf demonstrava o estoicismo próprio dos kafkafarabeufs quando chegava o momento de ir se livrando de cada um dos cachorros. Pela mesma razão com a qual eu logo sentia a necessidade de viver rodeado de cães, um impulso semelhante me obrigava, de um momento a outro, a me desfazer deles. O kafkafarabeuf nunca disse uma palavra. Creio ser importante ressaltar a maneira em que encontrei um kafkafarabeuf assim. Aconteceu de forma um tanto vulgar: por meio de uma rede social. Lembro-me que em uma noite, certa pessoa começou a fazer comentários na minha conta virtual de forma recorrente. Também começou a me enviar fotos suas. Seus cabelos eram longos, cacheados de tal maneira que pareciam uma versão nativa dos autorretratos de Dürer. Me chamou a atenção o fato de deixar evidente, desde a primeira mensagem, sua condição de kafkafarabeuf. Nessa época, eu estava em uma situação na qual podia me considerar dono de mim mesmo. Um estado que me faz sentir capaz de tomar decisões cotidianas a partir de uma perspectiva racional. Perguntei-lhe então o que desejava me oferecer. “Posso te dar meu corpo”, respondeu sem rodeios. “Seu corpo?”, pensei. Será que valeria a pena envolver-se com tal cópia de Dürer? Por acaso esse kafkafarabeuf não conhecia as diversas maneiras que a cidade proporciona para se estabelecer, a qualquer momento, a relação que ele desejava? Tenho certeza que ele o sabia perfeitamente. Que era consciente de que o argumento de oferecer o corpo não ia despertar o mínimo interesse em mim. No entanto, ao expressá-lo, em sua aparente falsa inocência, percebi sua verdadeira natureza como kafkafarabeuf. Acredito ter sido isso o que fez com que me interessasse por sua proposta. A maneira absurda como foi formulada. Combinamos uma data. No momento de fechar o acordo, fez uma vã tentativa de complicá-lo. Ele quis mostrar algo de dignidade. Então compreendi que estava me testando. Eu devia, naquele momento, estabelecer quem era o amo e quem era o kafkafarabeuf. Além disso, deixar claro que tipo de amo. Sinalizei então um dia e um horário como únicos para o encontro. Ou ele aparecia ou acabava tudo. Ao perceber a contundência de minhas palavras, o kafkafarabeuf deixou de lado os aparentes compromissos que usou como desculpa e o encontrei sentado na mesa do café onde tínhamos combinado, inclusive minutos antes do horário que eu havia definido. A conversa foi breve. Para que o acordo se firmasse, não foram necessárias palavras fúteis. A partir daí, fomos viver em um falanstério das redondezas e começamos a rotina prevista nas mensagens. Já se passou muito tempo desde então. Tempo em que as leis de intercâmbio foram sujeitas a modificações. Pouco depois de nos instalarmos, começaram a aparecer os cachorros.