DAMIÁN TABAROVSKY, foto de JULIETA BUGACOFF/ REVISTA RUDA
Apresentação
Damián Tabarovsky é escritor de romances, ensaios e editor argentino. Nascido em 1967 em Buenos Aires, vem publicando romances inovadores desde os anos 1990. Foi editor da Interzona, onde traduziu na argentina a filosofa Avital Ronell, além de diversos outros autores. Colabora para o jornal Clarín.
Sua narrativa Kafka de vacaciones, de 1997, foi traduzida no Brasil por Tiago Cfer e publicada em 2019 pela editora Córrego (Coleção Vírus). Romances como La expectativa (2006), Autobiografia medica (2007) e Una belleza vulgar (2011) formam um belo panorama inventivo para a arte romanesca de agora, justamente por se disporem a uma experimentação de linguagem narrativa rompida com os pressupostos do cânone romanesco desde o Bildungsroman sem perder a arte de colocar figuras, personagens em movimento e atrito com a problemática do mundo, testemunhando assim, entre relato e ficção, a política existencial daquele que escreve em seu próprio presente. Romances mais recentes são El amo bueno (2016) e Lo que sobra (2023).
Seu livro Literatura de izquierda, um ensaio de 2004 que já pode ser considerado um clássico contemporâneo da crítica literária, foi traduzido para nove ou mais idiomas. A tradução brasileira, de Ciro Lubliner e Tiago Cfer saiu em 2017 pela Relicário Edições. El fantasma de la vanguardia, ensaio de 2018 cujo trecho será apresentado abaixo, está sendo vertido para o português por Pedro Magalia e Tiago Cfer. A tradução e publicação deste livro encontram-se sob os cuidados editoriais da Ar Livre Edições.
Tiago Cfer
Fantasma da Vanguarda
I.
Por que falar, por que seguir falando, por que sempre me enroscar com a vanguarda? Poderia dar uma primeira resposta: por que não? Porém essa resposta carrega uma excessiva carga de arbitrariedade. Devia dar uma resposta argumentada, sustentada (porém para sinalizar constantemente que falar da vanguarda, ou ainda mais, da arte e da literatura, implica estar possuído de arbitrariedade). Talvez convenha começar assegurando que neste momento – o momento de um raio – algo foi tocado. A arte roçou algo, algo difícil de definir, quem sabe impossível, algo diretamente ligado à experiência de uma mutação radical. Ocorreu em uma época, algum vento entre Flaubert e Baudelaire, e Autorretrato em espelho convexo, de Ashbery, em um horizonte no qual, jamais harmônico, e sim pontilhado de desacordos, tensões, incompreensões e decepções mútuas, a arte se instalou e se pôs à frente de um diálogo que alcançava a política, a cultura, a sexualidade e a própria economia. Instalou-se no horizonte do novo que tudo renova.
Tal horizonte desvaneceu. Pertence ao passado, à morte. Mais: é a própria morte. A morte mesma. O que fazer, nós outros, aqui e agora com essa mesma morte? Lamentarmos seu fracasso? Festejar a decessão? Esta é a época dos empreendedores por todos os lados, inclusive na arte e na literatura. Época de projetos, da pragmática, dos cronogramas de trabalho. Essa já não é a época da morte, mas da pós-morte: a época dos zumbis. Deveríamos prestar mais atenção na onda das séries, comics, filmes sobre zumbis. O zumbi é o lado B do empreendedor, uma câmara obscura que acede sua intimidade. Pois então, como voltar, como colocar a questão sobre a vanguarda? Uma pergunta por aquilo que nos pertence? Proponho pensar sob o signo do fantasma da vanguarda. Não se trata de exortar a vanguarda em uma forma de melancolia, o chamado pelo elo perdido, a nostalgia pelo que já passou, ou talvez, em nosso caso, a nostalgia por algo que não vivemos. Tampouco trata-se de reconstruir a corroída fé no futuro, em uma arte proveniente do futuro para aniquilar o presente, transformá-lo todo, para não deixar pedra sobre pedra, feito um chamado messiânico – mesmo que eu ainda deva falar sobre o messianismo, sobre sua relação com a vanguarda e a política –, feito um caminho que deveria terminar em alguma forma de redenção. Não, não há nada disso. Aqui e agora assunto invocar a vanguarda como um fantasma. Um fantasma é algo que já morreu, entretanto, de algum modo está aí. Algo com o qual poderíamos dialogar. Não é como com os zumbis que são a morte depois da morte, a morte de um morto que caminha, com quem não é possível conversar. Um fantasma, em compensação, está aí flutuando, entrando e saindo, aparecendo e desaparecendo. O fantasma é a própria vanguarda. E por isso conversamos com ele num mal-entendido: às vezes o fantasma nos fala e não escutamos. Às vezes falamos e ele não responde. No entanto, esse diálogo impossível segue sendo um horizonte imprescindível para a literatura contemporânea. A arte da literatura seria, pois, sobretudo a arte de falar de um modo impossível com o fantasma.
Mas o que o fantasma nos traz? De onde vem? É uma voz vinda de outro lugar, uma espécie de monólogo interior no qual o narrador se surpreende, os personagens e a narração mesma. É uma ruína. Um vestígio. O recuo do fantasma chama aos vestígios e os vestígios às ruínas: estamos no terreno da literatura. Ou melhor: do literário. Porque se a política do fantasma, ao menos desde Hamlet, é esse recuo, esse fundo falido, sua tradução então converte-se em narração literária: seria necessário estabelecer uma distinção entre o literário e a literatura. Se em nossa época o que recua é o literário, se sua ausência deslumbra, é justamente porque o que transborda, o que enche, o que preenche é a literatura (entenda-se aqui a literatura como um sistema de gestão administrativa). Nosso tempo se esvazia do literário e está cheio de literatura. Por onde passamos trombamos com a literatura: é a escrita sem interesse, a sintaxe sem atributos da maioria dos romances do presente, a novidade que nada renova do mercado editorial.