EU AMO CHRIS, encenação de Verônica Veloso a partir do livro muito cultuado e mobilizante I LOVE DICK, de Chris Kraus, se apresenta como uma proposição de teatralidade muito vigorosa. Indaga vários modos de existir arte, sexualidade, vínculo com o presente. LÁPIS publica uma parte substanciosa desse programa interativo, performático, inquietantemente atual, trabalhado pelo grupo Dodecafônico. Montada no Teatro TUSP, São Paulo, em setembro e outubro de 2024, a peça lança um lastro de posturas e trilhas intelectivas, inventivas, interventivas para os corpos humanos em estado de criação, desejo e radicação na história agora.
Foto: Camila Rios
Foto: Camila Rios
Foto: Camila Rios
Foto: Camila Rios
Sobre a peça Eu Amo Chris – uma pequena coleção de fracassos
Texto de Carla Kinzo, Gabriela Cordaro e Verônica Veloso
uma discussão em torno do fracasso como algo inerente à vida das mulheres, uma reflexão sobre as diferenças de gênero, o patriarcado e a misoginia.
Fracassar como condição
Em Eu Amo Chris – uma pequena coleção de fracassos, o Coletivo Teatro Dodecafônico propõe uma reação ao livro Eu Amo Dick, de Chris Kraus (1997). Para o Coletivo, reagir a uma obra significa responder a ela, deixar-se inspirar ou atravessar pela obra de outra artista, somando novas camadas à referência original. Reagir se configura como uma conversa com a artista de referência, como se o grupo prolongasse a criação de Chris Kraus com sua encenação.
A peça se divide em duas partes: a primeira acontece dentro do espaço cênico e a segunda, a partir de uma experiência de caminhada, na qual os espectadores se dividem em quatro grupos para seguir uma das atrizes que vivem o papel de Chris K (pseudônimo que remete à autora do livro), guiados por audiotours que culminam no mesmo ponto, onde ocorre a cena final da peça.
Refletir sobre as questões de gênero e revelar os nossos fracassos é um modo de expor as condições desiguais de produção e realização artística, bem como as configurações sociais que fazem com que o deslocamento pela cidade e as pausas no espaço público se tornem operações refletidas e não banais quando se trata de corpos femininos. O que se propõe então é a exposição de fracassos que poderiam ser tanto nossos como de outras mulheres cis ou pessoas trans na contemporaneidade.
Fracassar é falhar, destruir ruidosamente, frustrar-se: uma tática de ação para percorrer esse tempo espaço precário. Cartografar os fracassos, pequenos ou grandes, é ação necessária, em diálogo com Chris Kraus, não como exposição pessoal, mas para expor as circunstâncias do fracasso ou da objetificação de algumas em detrimento de outros. Refletir sobre os processos de subjetivação e compor uma pequena coleção de fracassos se configura como tática de reinvenção de formas de vida e de questionamento da normalização dos processos de gênero, como bem nos ensina o filósofo Paul Preciado1.
O tema do fracasso aparece na medida em que se percebe a impossibilidade de manter e sustentar um sistema pautado em uma lógica desigual, injusta e antidemocrática. Os discursos impregnados nos modos de vida, nas comunicações, nas relações pessoais exaltam e focam um sucesso plastificado e inalcançável. Ninguém está imune ao fracasso, ninguém conseguiria alcançar os parâmetros estabelecidos para o que se considera sucesso. Fracassar é uma questão de tempo. No raciocínio de um sistema estruturado pela desigualdade, fracassam as pessoas individualmente – sem emprego, violentadas física ou emocionalmente, e coletivamente, tanto nas ruas, quanto em suas casas.
A busca pelo amor continua
Eu Amo Chris – uma pequena coleção de fracassos, peça manifesto, é um processo de ruminação de diferentes situações nas quais se opera a misoginia. O encontro com o livro Eu Amo Dick foi o disparador para a articulação de uma série de procedimentos de criação e para a percepção de que quando se nasce mulher, fracassar é uma condição. Isso aparece com recorrência nas narrativas amorosas, nas tentativas de corresponder a expectativas relacionadas ao gênero feminino, mas também na busca por realização profissional. Organizar e exibir uma pequena coleção de fracassos é um ato de resistência e, ao mesmo tempo, de acolhimento. Ao amar Chris, tentamos outras formas de caminhar, de estar no mundo e de afirmar junto com bell hooks que “a busca pelo amor continua”2.
A realidade mais concreta na qual se insere nossos debates e encenação é uma problemática histórica: a hierarquia, assimetria ou desigualdade entre gêneros, presente na história mundial, e ainda mais aguda no contexto brasileiro. Tal desigualdade se expressa por vezes por meio da divisão social do trabalho, que hierarquiza funções e salários, mas também se expressa pelo assédio, violência e assassinato de mulheres e pessoas trans. A forma mais comum de agredir, degradar ou discriminar a mulher por preconceito ao sexo feminino é a misoginia, que pode ser incluída na Lei 7.716, de 1989, a mesma lei que trata dos crimes de racismo, homofobia e transfobia. Segundo estudos de grupos que combatem a violência na escola, por exemplo, a misoginia supera o racismo no cooptação de crianças e adolescentes para realização de ataques às escolas em nosso país.
Com uma equipe formada por uma maioria de mulheres, cis, heterossexuais e lésbicas, um homem cis e um homem trans, estudamos o livro de referência, criando cenas que derivavam de maneira mais ou menos explícita das discussões presentes no romance. Dessa forma, a peça não conta a história de Chris, Dick e Sylvère (os três personagens centrais do romance autoficcional), porém uma das cenas narra diretamente o encontro no qual Chris se relaciona sexualmente com seu objeto amoroso: o Dick do título. As demais cenas são derivações, composições livres e reações as mais diversas aos assuntos evocados pela referência bibliográfica. Alguns procedimentos de criação também foram extraídos de ideias do livro, como a escrita de cartas a Dick ou a ação performativa de colar essas cartas em um carro estacionado (que se constituiu como a cena final da encenação).
As muitas dimensões do fracasso associado ao gênero feminino podem ser percebidas desde a coleção de fracassos amorosos exposta logo na chegada do público ao espaço cênico, às tentativas de manutenção de relacionamentos amorosos desiguais, até a exibição do portfólio imaginário das encenações não realizadas pelo Coletivo Teatro Dodecafônico nos últimos dez anos.
A perspectiva do fracasso como tática reflexiva e insurgente, como estética possível, especialmente para mulheres na sociedade contemporânea, surge desde as trajetórias corporais e sociais das integrantes do Coletivo até o reconhecimento de que não se trata de uma perspectiva pessoal, isolada e casual, mas de algo recorrente na vida de tantas outras mulheres.
Trechos da dramaturgia:
Palestra performance da diretora Verônica Veloso:
Esta peça tem como ponto de partida o livro “Eu amo Dick”, de Chris Kraus, uma bruaca, uma kike, uma poeta, uma cineasta fracassada e ex-dançarina de boate. [o termo kike é um modo pejorativo de se referir a uma pessoa judia].
O título do livro causa impacto e faz de tudo para se esquivar da pecha de ser chamado de feminino: ele traz o pinto na capa e põe o pinto na boca de todo mundo. Para quem não sabe, “dick” em inglês é uma gíria para se referir ao pênis, ao órgão genital cis masculino, é também o diminutivo do nome próprio Richard e um modo de se referir a uma pessoa babaca.
Trata-se de um título performativo. Daí decorre a nossa questão: o que pretendemos afirmar? Nós realmente amamos Dick e tudo aquilo que dick representa?
O título do livro inspira o título da peça. Ao propor essa inversão do enunciado, de “Eu amo Dick” para “Eu amo Chris” propomos um novo endereçamento para o amor. Ao dizer o título da peça, todos amam Chris, todos assumem a condição de amantes, mesmo aqueles que não a amam, que a desprezam e que a desconhecem. Chris, uma mulher desimportante, uma artista mediana como tantas de nós, a quem os críticos tratam segundo um recorte de gênero: uma artista que escreve, versa ou age no feminino. Vocês já viram algum artista criando uma peça masculina?
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um programa escrito por Chris Kraus e exibido e performado pelo Coletivo Teatro Dodecafônico:
Caro Dick,
Lamentamos nosso desencontro na manhã de domingo. É engraçado, nós dois pensamos muito sobre seu vídeo — tanto que tivemos uma ideia para uma obra colaborativa, contando com sua participação. É algo tipo uma obra da Sophie Calle. Escrevemos cerca de cinquenta páginas nos últimos dias e esperamos poder filmar com você em Antelope Valley, antes de irmos embora.
Nossa ideia era colar as cartas que escrevemos para você de modo a cobrir seu carro, sua casa e o jardim de cactos. Nós (eu e Sylvère) iríamos gravar a mim (Chris) fazendo isso — um plano aberto das folhas todas agitadas ao vento. Então, se quiser, você pode aparecer e descobrir o que fizemos.
Acho que essa obra tem a ver com obsessão, embora não passe pela nossa cabeça usar imagens que lhe pertencem sem sua autorização. O que você acha? Está dentro?
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texto dito por Beatriz Belintani enquanto se projeta fotos de corpos femininos inertes:
A origem do mundo é um buraco
A origem do mundo é uma boceta
Ela coletou a frase e a guardou nela. Como muitas de nós ela era uma coletora, um recipiente. Alguém que guarda.
Mais tarde ela conheceria o dono da frase. E mesmo que a frase e o homem lhe tivessem atravessado o peito, ela não foi morta por eles.
Mesmo que ela o tenha conhecido empunhando uma lança, ela não pertencia a uma história de guerras. A sua era outra, em tom menor; uma história contra a História, uma que recusava a destruição.
Então, mesmo tendo caído, ela se levantou. Como muitas de nós ela
teima em olhar para trás,
desobedecendo a ordem divina: NÃO OLHE!
não se vire para as caravelas chegando, não encare a terra arrastada, a filha da filha da filha caindo, a irmã agarrada pelo cabelo, o ventre invadido, a desconfiança, as bruxas sua bruxa, sua safada, sua gostosa, medíocre, a loucura sua louca, mulherzinha, vadia, invejosa, não se volte pra trás para ver sua mãe, filha da mãe.
Mas ela é desobediente e se vira.
(todas se viram):
Era sua primeira vez na cidade. Assim que pisou nela, topou com uma esquina. E com uma frase num lambe que dizia:
a cidade que atravesso é a mesma que me atravessa
Até hoje ela pode ver a si mesma olhando pela primeira vez aquela parede, sentir o corpo transpassado por um tremor antigo. Mesmo que tenha de cair mais uma vez,
(que é pra não olhar a nuca dos que obedecem sempre pra frente,
ou não se sentir só nos dias sem colo,
ou aplacar a raiva de ter caído a primeira vez,
e ser transformada em estátua de sal, ela não se importa,
cair de novo e de novo e de novo)
ela se vira,
e olha um maço de cigarros:
“O Ministério da Saúde Adverte: Fumar é Prejudicial à Saúde.”
Como algumas de nós, ela seguiu fumando, porque tinha começado aquilo com ela.
Mesmo depois que cada uma seguiu para um lado
depois dos muitos anos, um casamento, uma filha,
ainda hoje quando se encontram, elas acendem um cigarro.
E enquanto fazem isso não porque não saibam o que fazer com as mãos,
mas porque não sabem mais o que fazer com as palavras,
outra mulher, do outro lado da cidade, se vira e encara
uma cartela dos comprimidos de todos os dias,
e toma um deles com água.
Ela abre muito os olhos e percebe que
a escuridão não caiu do céu, nem uma fenda me podou o passo.
Todos os dias, como tantas de nós, ela se levanta não do chão mas da cama,
e se hoje rodopia enquanto tropeça é pra sentir que se cair será uma dança,
então ela abre os olhos para que durante a queda possa dar um salto,
olhar de frente a cidade abandonada,
a cidade de concreto emparedada,
onde, um dia, anos atrás,
ela se esborrachou.
Mas foi com o rosto no chão que ela ouviu muito fundo no solo ainda um rio,
a água indicando um caminho.
Então ela se levantou,
sem nunca se esquecer das que deram a vida por um olhar
e não conseguiram mais se levantar.
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texto do vídeo performado por Ierê Papá:
Caro Dick,
“A masculinidade me foi impedida.”
Quando falei essa frase pela primeira vez, logo senti a ideia pronta, como se estivesse reproduzindo um discurso. Por que tinha que entrar nesse mundo? E se entrasse nele, ia conseguir permanecer?
Mas antes, muito antes disso: eu tinha um propósito? Um propósito político? Pessoal? Ou nenhum...?
Eu me perguntava quais eram as perguntas que tinha de fazer. Comecei a pensar que aquela frase podia operar como um mapa, uma constelação que criaria outro céu, outra história. Outro corpo.
Quem tinha me impedido a masculinidade? Precisava de um nome para deixar as coisas evidentes. Foi aí que você surgiu, Dick.
Você me mostrou o que eu não deveria ser, se apresentou como aquilo que eu tinha de desejar, na velha concepção do desejo entendido como falta.
É curioso que quando penso em mulher me vem a imagem da minha buceta. Mas quando penso em você, Dick, me vem muitas imagens: um cacetete, um taco de baiseball, uma metralhadora, um pedaço de madeira, um soco, uma voz autoritária, o rosto de um senhor sábio no céu olhando por nós, ou seria para nós?
Quando penso em você, penso também em todos os homens. O que eles podem que não posso?
Em mim, o campo simbólico da mulher é reduzido à minha buceta. Essa é a história que tem sido contada. Até agora.
Já o campo simbólico que você prolifera em mim é: a concentração e a acumulação de capital, a intolerância às diferenças, os arranha-céus, as vias urbanas de alta velocidade, os rios canalizados embaixo das avenidas, a redução do espaço público. Um arcabouço de operações de um mundo totalmente centrado em você.
E eu me sinto vazio, Dick. Oco.
Ainda tenho um sentimento ambíguo em relação a você, porque tem uma coisa sua que me interessa. Duas, vai. O pênis e a testosterona.
Eu não fui uma sapatão que queria que os homens sumissem da face da Terra. Sempre me interessei pelo seu corpo, seus pelos, seus músculos, sua voz.
Depois que comecei a tomar a testosterona, comecei a sentir falta de um pênis.
Espero continuar assim, na falta. Sem preenchimento, vazio do falo como centro. Será possível?
É assim que você me move, Dick, como um fantasma. E sabe, fantasmas não morrem.
O que quero de você, Dick, é o corpo a que nos acostumamos chamar de seu.
Se como mulher, no meu imaginário, estou reduzido a uma buceta, e ela não é o centro do nosso mundo, o que não está dado precisa ser escrito. E você ainda sim estará lá, Dick.
Com repulsa e tesão,
Chris.
ficha técnica:
Encenação: Verônica Veloso
Elenco: Beatriz Belintani, Biagio Pecorelli, Clarissa Kiste, Katia Lazarini e Olívia Niculitcheff
Performer vídeo: Ierê Papá
Dramaturgia: Carla Kinzo
Dramaturgismo: Gabriela Cordaro
Cenário: Heloísa Sousa e Luiza Saad
Adaptação do cenário: Jenn Cardoso
Contrarregragem: Jenn Cardoso
Figurino: Heloísa Sousa e Jorge Wakabara
Iluminação: Aline Santini e Gabriela Ciancio
Operação de Luz: Marina Gatti
Videomapping: Soraia Costa
Operação de som e videomapping: Larissa Siqueira
Design Gráfico: Ierê Papá
Edição de Audiotours: Ierê Papá
Produção Geral: Coletivo Teatro Dodecafônico e Júnior Cecon – Plural Produções Artísticas e Culturais
Assistente de produção: Flávia Santos
Colaboraram no processo: Heloísa Sousa, Hideo Kushiyama e Paulina Caon
Crítica da Lena Giuliano para quem quiser ler mais sobre a peça:
https://citricacritica.com/untitled/
1 PRECIADO, Paul. Manifesto Contrassexual. São Paulo: n-1 Edições, 2014; PRECIADO, Paul. Texto Junkie - Sexo, drogas e biopolítica na era farmacopornográfica. São Paulo: n-1 Edições, 2018; PRECIADO, Paul. Um apartamento em Urano. Rio de Janeiro: Ed. Zahar, 2019, entre outros.
2 HOOKS, Bell. Tudo sobre o Amor: Novas Perspectivas. São Paulo: Elefante, 2021.