CVs, PPTs e pins metálicos:
Precarização e improdutividade no romance contemporâneo
(José Palumbo)
(José Palumbo)
A prometida era de trabalhos flexibilizados com auxílio da evolução tecnológica rapidamente converte-se, após 2008, na intensificação incessante e massiva da precarização. Os tentáculos da transformação chegam a todas as partes, tornando-a ampla e multiforme: um sucesso do projeto neoliberal.
Com a contrarreforma vigente desde 2017 no Brasil, trabalhadores encontram-se profundamente fragmentados e heterogeneizados em seu sentido coletivo, com acesso inviabilizado aos recursos jurídicos dos quais antes dispunham, mesmo que insuficientemente. O teletrabalho ganha força como estrutura ideal para a proliferação da informalidade, visto que o patronato deixa de ser obrigado a fornecer condições e equipamentos fundamentais à execução do serviço; os cuidados com a saúde laboral são repassados ao próprio corpo explorado. Ou seja, “no contexto em que o trabalho passou a ser submetido cada vez mais às metas de produtividade e às avaliações de desempenho” pode-se observar “a instituição do trabalho sem limites, sem direito à desconexão, alheio a qualquer proteção”[1].
Antônio, protagonista de Curriculum Vitae, não fica por muito tempo em nenhum emprego — ou porque não se adapta, ou por desmandos de suas chefias. Lida com admissões e demissões recorrentes, “fora os bicos, biscates e outras dessas coisas informais, como é mesmo o nome... freelancer” [2]. Ao tomar esta elasticidade como foco do desgaste, pode-se vislumbrar as razões pelas quais o narrador tantas vezes manifesta seu asco ao gesto do trabalho ou à necessidade de trocar tempo por dinheiro. Quando questionado pela entrevistadora ao longo do imenso inquérito a respeito de desejos e virtudes profissionais, o narrador faz questão de explicitar sua predileção pelas palavras cruzadas em detrimento das atividades entendidas como funcionais dentro de uma entrevista de emprego.
A personagem é motivada pelo anseio de encontrar quadrados vazios que nunca se repetem e neles depositar seu banco de horas, exercendo o conhecimento que detém acerca do vocabulário, aprimorado para esse fim. Ao longo do romance, são reproduzidos alguns enunciados tipicamente utilizados nesse tipo de jogo, lançando luz sobre a afeição do homem que detesta a funcionalidade: “Onze letras. Ação ou efeito de desperdiçar, de não aproveitar da maneira como deveria; falta de proveito; perda”[3].
Sendo assim, o emprego de fruição do tempo se concentra em uma atividade voluntária, ociosa e, sobretudo, estabelecida enquanto não-trabalho, uma das definições que Roger Caillois empresta ao jogo[4]. Nas idealizações do narrador, mais tempo poderia ser dedicado à prática concebida como desperdício dentro da perspectiva produtivista da qual se vale sua recrutadora e, muito provavelmente, a empresa cuja vaga aparece em disputa ao longo do texto. Ao jogar o cruzamento de palavras, Antônio não trabalha. Fosse um cruzador profissional, ele não mais jogaria, exerceria um ofício. “Com efeito, uma característica do jogo é não criar nenhuma riqueza, nenhum valor. Por isso, se diferencia do trabalho ou da arte. No fim do lance, tudo pode e deve voltar ao ponto de partida, sem que nada de novo tenha surgido: nem colheitas, nem objetos manufaturados, nem obra-prima, nem capital acrescido”[5].
Enquanto o texto de Felipe Souza se empenha em construir uma figura comprometida com o mínimo esforço possível, exceto pela seriedade lúdica com a qual encara seu Tetris vernacular, a leitura se depara com brechas emocionais do humano corrompido, entre outras ranhuras sistêmicas, pela obrigatoriedade do trabalho. Seja na delação do colega-concorrente, seja na perda do amigo que vira superior-do-setor, Antônio coleciona decepções de toda ordem neste âmbito, não restando alternativas para além da conformidade e da recusa, manifesta principalmente em forma de preguiça/jogo.
Semelhante ato de rejeição pode ser verificado na elaboração de uma pauta às pressas pela voz narrativa de Gradiente Spectrum. Ao acompanhar o desespero digno de quem precisa levar trabalho para cama — afazer que nunca finda — a leitura encontra alguém que tornará o pouco tempo livre restante em lição de casa, ressoando diretrizes para a Educação Básica do país: “As ideias que tive na noite em que a urgência de Estado veio (...) a partir de agora irão circular pelas bocas e cabeças de uns trezentos professores, mais ou menos vinte e três mil alunos”[6]. Transformado em criador de slides através de prazos irreais, o servidor público se vê obrigado a tomar as rédeas da burocracia intempestiva como maneira única de manter a própria subsistência. Sua posição é alcançada por meio de um certame no qual concorre com semelhantes; anos de estudo são investidos no sentido de encarar questões pedagógicas criticamente e toda sua volúpia produtiva de repente se resume a cumprir recomendações temporãs da Secretaria, da Diretoria e de quaisquer outras instâncias.
Em meio ao suor, à vontade de rir e um datashow expondo prolegômenos, o fruto irritado ganha forma no livro de Cfer. Trabalho feito, humilhações à parte, encontra-se um alívio em saber, no íntimo, como se processou a atribulada concepção das diretrizes. Foi preciso deixar de se masturbar e/ou escrever uma história a respeito de si para que o cronômetro fosse alcançado, isto é, um sacrifício pela exploração, mas um sacrifício dotado de escárnio e desforra. Texto livre e erotismo dividem ponteiros iguais, correm por fora do expediente, ocupando espaços também jogáveis, onde o corpo se lança para uma volta sobre si, texto jorrado além da lógica de produção. A história a se escrever ou o onanismo latente potencializariam uma existência fugidia em relação à feitura torpe do cotidiano obrigatório: o escambo forçado por demandas hierárquicas aqui se configura nitidamente como desmancha-prazeres.
Cabe notar que, a partir das associações vinculadas ao tempo de não-trabalho, abre-se uma brecha para a aproximação entre escrita e jogo, afinal, ambos se situam no âmbito da voluntariedade improdutiva, onde um conjunto de ações, balizadas por convenções, tende a um processo de órbita própria, em mergulho ou escavamento. O estado circunscrito da composição literária, embora conectado ao chamado mundo real pelos mais diversos cabeamentos óticos, implica o contato ativo com algo em sondagem, externo à matéria palpável. Ou, para dizer com Duras, “é o desconhecido que trazemos conosco: escrever, é isto o que se alcança. Isto ou nada (....) antes de escrever, nada se sabe do que se vai escrever. E em total lucidez”[7].
BR-Clítoris, de Ana Pavla, por sua vez, se vale de ritmo ligeiro quando escancara algumas artimanhas do corporativismo reconfigurado: “A área de Recursos Humanos chama-se agora Gestão de Gente (...) a empresa se tornaria muito mais humana”[8]. As companhias vislumbram a modernização chamando funcionários de “colaboradores”, ao passo que o ambiente de trabalho submete-se a company culture. Funções seguem as mesmas, no entanto os cargos ganham novos nomes: atribuições iguais, outra job description. Uma das personagens é levada a enxertar mensagens motivacionais em cartolinas e dar nova significação (qual?) às bexigas graças a um evento corporativo por ela organizado. Ao longo do dia, elementos do jogo são cooptados em prol de seu antônimo maior, o trabalho. Novos funcionários são obrigados a competir entre si e o trabalho disfarçado de jogo ocorre por meio da suposta integração. Gamification: importa mais é não se perceber trabalhando. Aos vencedores, os pins metálicos, honrarias a atestar vitórias mal remuneradas.
No escritório, é silenciosamente recomendado às colaboradoras usar certo nível de maquiagem, com respeito à opacidade desejável da pele. O controle se estende dos poros à postura na rotina de quem precisa abrir mão do reduzido horário de almoço para se exercitar e assim lidar com contingências da já abdicada saúde. “O dia segue ente trilhas de planilhas, ficções com paradeiros contábeis. Buscam resultados inatingíveis, mas que ajudam a ordenar os corpos. Não, ali é impossível ser mulher”[9]. O espaço tradicionalmente demarcado como lugar de trabalho emerge restritivo de canto a canto, reforçando amarras adicionais aos modos de existência tão atacados em várias outras esferas. Ali é impossível tanto quanto ou ainda mais alhures e tal impossibilidade reside nas imposições, subliminares ou evidentes, de uma ambientação onde se aprende a tolerar violência em nome da manutenção. Há um planejamento executado com extremada minúcia pelos entornos a conduzir um sem-número de subjetividades à aceitação dos assédios, porque não restam/parecem não restar alternativas.
Nesse caso, a devolutiva insurgente se ergue através dos deslocamentos talhados desde o título no romance de Pavla. Por aviões, motocicletas e barcos a leitura é levada a experimentar cenários diferenciadamente transcorridos, sem qualquer gestão de gente. Na estrada, evocando Kathy Acker, ou nos caminhos espiralados de uma caminhada notívaga, BR-Clítoris enfim se dirige à vivência antes cerceada pelo trabalho. Fora do evento corporativo, o texto coordena mundos internos e paisagens amplas, consagrando a abrangência do corpo distante das planilhas, do microgerenciamento e das falsas contendas, caracterizadas tão somente pela distração competitiva na tentativa de emular o jogo real: “Segue a estrada de pernas semi-abertas e muito vento. Urgência de espaço. Velocidade sobre distância. A moto inteira entre as pernas. O motor nas mãos, pelo guidão. Controle. É preciso muita estrada”[10]. A viagem lhe permite abarcar a estrada inteira, tomá-la para si, numa autoafirmação voraz denotada pelo domínio dos trajetos; domínio não impositivo, porém, nem herdeiro da objetividade comum às sobreposições binárias, mas vinculado ao devoramento dos instantes, move-se em incorporação. Fissuras se coadunam e rompem, aos poucos, a produtividade em dois polos, quatro lábios entreabertos — queda d´água e lençol freático — ”e, como não sendo possível à revelia da natureza cidades só de homens, eis que surgem os viados, as prostitutas, insetos”[11]: fora do trabalho, a possibilidade de ser mulher em tempo integral.
Os recortes aqui apontados nestas ficções contemporâneas são representações distintas de um cenário marcado, entre outros acintes, pelo trabalho plataformizado, de grande tração na conjuntura nacional ao longo da última década. Ainda que vários paralelos possam ser traçados, existem particularidades cujo realce ulula. Se “o novo paradigma informacional de trabalho e mão de obra não é um modelo simples, mas uma colcha confusa”[12], cabe apontar as facetas variadas com as quais a precarização se apresenta. Diante dela, há a chance intranquila da improdutividade armada como resposta, cujas táticas são também passíveis de incontáveis articulações. Ingrato seria reduzir a potência das três narrativas brasileiras aqui comentadas a uma jornada de 60 horas semanais (ou mais), porém parece proveitoso destacar, mesmo que brevemente, como cada uma lança seus personagens, narradores ou cenas em rota de afronta perante o moedor ruidoso que os aguarda no dia seguinte.
[1] ANTUNES & PRAUN (2020, p. 185)
[2] SOUZA (2019, p. 42)
[3] Ibid., p. 85.
[4] CAILLOIS (1990, p. 25)
[5] Ibid.
[6] CFER (2023, p. 27)
[7] DURAS (1994, p. 47)
[8] PAVLA (2023, p. 27).
[9] Ibid., p. 39.
[10] Ibid., p. 52.
[11] Ibid., p. 57.
[12] CASTELLS (2021, p. 303).
José Paulo Palumbo é mestrando nos Laboratórios de Criação pela FFLCH/USP.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ANTUNES, Ricardo; PRAUN, Luci. A demolição dos direitos do trabalho na era do capitalismo informacional-digital. In: ANTUNES, Ricardo (Org.). Uberização, trabalho digital e indústria 4.0. São Paulo: Boitempo, 2020.
CAILLOIS, Roger. Os jogos e os homens. Trad.: José Garcez Palha. Lisboa: Cotovia, 1990.
CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. Trad.: Roneide Venancio Majer. 23a ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2021.
CFER, Tiago. Gradiente spectrum. São Paulo: Córrego, 2023.
DURAS, Marguerite. Escrever. Trad.: Rubens Figueiredo. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.
PAVLA, Ana. BR-Clítoris. São Paulo: Córrego, 2023.
SOUZA, Felipe. Curriculum vitae. São Paulo: Patuá, 2019.